segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Messias da morte


Ter Bolsonaro como presidente, durante a pandemia, foi uma das piores coisas que poderiam acontecer com o Brasil. Espero muito que ele seja chutado do cargo
Giorgio Parisi, Prêmio Nobel de Física de 2021

Favelas são evidências do defeito estrutural do capitalismo brasileiro

Em duas semanas, pude observar o nascimento de uma favela nas proximidades do Hospital Universitário da USP. Num dia não havia nada num terreno grande que, dizia-se, pertence à Sabesp. Duas semanas depois, o terreno já estava ocupado por barracos, os de frente para as ruas devidamente numerados. Tomaram o cuidado de seguir o critério de numeração das construções que já existiam na rua, o critério da prefeitura.

Ou seja, o favelado não quer apenas uma moradia, por precária que seja. Quer também um endereço, a casa como lugar identitário, o endereço como nexo relacional com a sociedade, com todos. Mesmo com aqueles que não reconhecem a inevitabilidade dos fatores de surgimento da favela.

No que foi um muro, foram abertas portas, e o trecho correspondente à porta foi pintado de cor diferente da moradia do vizinho. Também definição de identidade. Negação comparativamente forte em relação a apartamentos, que são o cenário do repetitivo da habitação.

Surgiu ali até uma pequena infraestrutura comercial. Num Bar do Vô, o dono pintara na fachada: “Whisky Cavalo Branco, R$ 20,00”. Mais adiante, na fachada de outro barraco: “Mini Padaria. Temos pão, leite, café, ovos...” Pinturas caprichadas de pães e de um bule derramando café numa xícara contrastam com a pobreza do tapume da fachada.


Numa favela vizinha, já antiga com sinais evidentes de que está consolidada, há duas igrejas evangélicas. Confirmam que até Deus é favelado.

Nas favelas que conheço, a habitação é a negação do linear e da linearidade, o traço do que é repetitivo. Colocando-se entre parênteses a pobreza evidente, é singular e imaginativa. Expressão da criatividade, da diferença e da originalidade. O material de construção pobre e a construção pobre não significam pobreza de espírito.

O barraco tende a ser obra de concepção artística, porque inventiva. Já vi, por fora e por dentro, barracos de incrível originalidade. Num deles, o barraco pequeno tinha dois pavimentos. Na frente do cômodo de cima, uma varanda, o dono na rede deitado apreciando a cidade. Sua casa é plástica e pós-moderna porque indefinida. Com os materiais de que dispõe, ele lhe dá a forma que lhe convém, quando convém, se convém.

Todos se lembrarão da grande repercussão da notícia sobre Estevão Silva da Conceição, baiano de origem, que ergueu na favela de Paraisópolis, em São Paulo, um verdadeiro palácio, original e criativo. Lembra a arquitetura de Gaudí. Tem até um jardim suspenso. Sua casa foi fotografada por Bob Wolfenson. A fotografia repercutiu, e Estevão foi convidado a ir a Barcelona para conhecer a obra de Gaudí, cujo estilo, sem o saber, ele recriava.

A competência criativa dos que têm necessidades sociais injustas permite-lhes fazer muito com o pouco, dar utilidade ao que é inútil, beleza ao que é feio. O antropólogo Oscar Lewis definiu a cultura dos restos e resíduos como cultura da pobreza, matéria-prima de reinvenção material e social. Aparentemente, não há campo da atividade humana em que os favelados não atuem criativamente.

A menos de 1 km da favela que está nascendo agora, nasceu e se firmou há muito a Favela do Jaguaré. Era ali a fazenda de uns 340 hectares do engenheiro agrônomo Luís Dumont Villares, sobrinho de Santos Dumont. Ele tinha um sonho e o narrou no livro “Urbanismo e indústria em São Paulo”.

Visitou complexos residenciais e industriais na Inglaterra e nos EUA, inspirou-se. Villares pensava o urbano e a cidade na perspectiva da utopia socialmente libertadora. Doou 150 mil m2 à prefeitura para que ali construísse um conjunto esportivo para o bairro, coisa que ela não fez. O terreno foi invadido e se transformou numa das maiores favelas de São Paulo.

Justamente na favela houve várias iniciativas de criatividade. Dois irmãos que nela cresceram trabalharam em padaria e confeitaria da Lapa. Já adultos, decidiram abrir uma padaria na favela. Ocuparam um terreno e organizaram o estabelecimento, que se tornou uma das melhores padarias da região. Estive lá, uma vez, provando pães e doces.

As favelas brasileiras são a evidência mais notável do defeito estrutural do subcapitalismo brasileiro: a renda da terra como fundamento limitante da economia. O capitalismo é incompatível com o primado da renda fundiária, que para ele representa uma irracionalidade, dedução do capital para produção. Uma irracionalidade e um fator de redução da taxa de lucro.

Aqui se consideram o trabalho e o salário como inimigos do lucro. Governo e empresas conspiram contra o trabalho e o salário todo o tempo. Mas não conspiram contra a propriedade fundiária, urbana e rural, cujos preços especulativos inviabilizam a expansão dos setores modernos do capitalismo produtivo e da atividade do capital.

Pensamento do Dia

 


Monstros e fantasmas

Alguns otimistas imaginam que o governo Bolsonaro acabou. Desgraçadamente, não é verdade. A crescente impopularidade parece estimular seu implacável projeto de destruição do País. Semana passada, o Capitão pôs abaixo a área de pesquisa, ciência e tecnologia.


Não foi corte. Amputação orçamentária. Tão profunda que o servil ministro Marcos Pontes ousou criticar o ato essencialmente bolsonarista. Até que peça para sair, Pontes esperneia pelas redes sociais. Entendeu, finalmente, sua insignificância. Pode fechar para balanço.

Do magro orçamento de R$ 690 milhões – restou a cifra de R$ 89 milhões. Cientistas e pesquisadores, penalizados por um governo predador, vêm agora ameaçadas centenas de pesquisas em andamento. Bolsonaro não cansa de arruinar tentativas de recuperação de áreas vitais para o País.

E nada será mais dramático do que o enfrentamento da miséria que voltou a indignar os brasileiros. O governo genocida exibe os piores indicadores sociais e econômicos das ultimas décadas, herança maldita de um capitão defenestrado pelo Exército, em 1988, por planejar atentados terroristas. O monstro da inflação, a maior dos últimos 30 anos, associado ao desemprego, trouxe de volta a fome e a indigência.

Mais de 600 mil mortos na pior pandemia desde a gripe espanhola não constrangeram Bolsonaro. Pelo seu roteiro, muita gente ia morrer mesmo. A pobreza menstrual também não incomoda o Capitão. Vai tirar da Educação ou da Saúde, como ele diz, para comprar absorventes. Traduzindo sua estupidez: vai tirar dos pobres e dar para os miseráveis.

Entre os fantasmas do Presidente da República não há um faminto, um pobre, um doente, um desempregado, um artista, um professor, um profissional de saúde. Assombrando está o presságio da derrota em 2022, o fantasma da rejeição. O monstro que cresce a sua volta não é só o da inflação, é o da certeza de que perdeu milhões de votos que um dia foram seus – mais de 60% do eleitorado brasileiro não votará nele em qualquer circunstancia.

Quantos séculos pegará Bolsonaro?

Será possível somar os crimes de Bolsonaro em qualquer contabilidade conhecida pela lei?

No dia 7 de abril de 2019, uma patrulha do Exército, com quatro soldados, um cabo, um sargento e um tenente, suspeitou de um carro em Guadalupe, Zona Norte do Rio, e não conversou. Disparou 82 tiros de fuzil e pistola, dos quais 62 atingiram o veículo e nove acertaram o motorista, que morreu na hora. Dentro do carro, além do homem, estavam sua mulher, dois filhos e um idoso, seu sogro, que também foi ferido. Um transeunte tentou socorrer o homem, foi alvejado e também morreu, 11 dias depois.

Nenhum deles era bandido. O motorista era um músico, a caminho do trabalho num aniversário de bebê. O rapaz que tentou ajudá-lo, um catador de latas. Os militares não precisavam de grande esforço intelectual para chegar a essa conclusão. Bastar-lhes-ia olhar. Ao ver a bordo uma mulher, duas crianças e um velho, talvez identificassem uma família. Mas preferiram atirar e perguntar depois. Ou não enxergaram direito ou tremeram diante do que poderia vir do carro. Míopes, covardes ou as duas coisas?


Dias depois, Jair Bolsonaro, sempre atracado aos baixos meridianos de algum militar, classificou a chacina como “um incidente”. Ali, aos quatro meses de mandato, ele oferecia ao país uma das primeiras demonstrações de sua incapacidade de compaixão. Claro que, na pandemia, essa incapacidade seria escancarada —sua resposta às pilhas de brasileiros mortos e sendo enterrados em vala comum foram os passeios de lancha, o não-tou-nem-aí, o esgar de deboche. E aquilo era só o começo.

A Justiça Militar acaba de condenar os membros da patrulha assassina a até 31 anos de prisão. Se eles chegarão a cumprir a pena ou se, bem à brasileira, logo estarão de volta às ruas, armados e rindo da Justiça, é algo a ver.

Só me pergunto se o crime desses homens, por mais hediondo, não empalidece diante dos cometidos por Bolsonaro —que parecem impossíveis de caber em qualquer contabilidade conhecida pela lei.

O teatro do astronauta

 Em 2006, o governo Lula gastou US$ 10 milhões para que um tenente-coronel da Aeronáutica pegasse carona na nave russa Soyuz. O passeio foi mais lucrativo para o astronauta do que para o país. De volta à Terra, ele abandonou a carreira militar e passou a faturar com a venda de chaveiros, canecas e bonequinhos.


A fama instantânea abriria novos negócios. Marcos Pontes virou palestrante, “master coach” e garoto-propaganda de um tal “travesseiro da Nasa”. Apesar da sigla, o produto não tinha nada a ver com a agência espacial americana. Em letras miúdas, informava ser um “Nobre e Autêntico Suporte Anatômico”.

Aposentado aos 43 anos, o astronauta se candidatou a deputado pelo Partido Socialista Brasileiro. Não foi eleito. Depois girou à direita e tentou emplacar como vice de Jair Bolsonaro. Fracassou de novo. Como prêmio de consolação, virou ministro da Ciência e Tecnologia.


Se o governo fosse uma novela, Pontes estaria no elenco de apoio. Só é lembrado quando o capitão precisa de figurante para suas lives. O ministro lavou as mãos quando Bolsonaro tentou maquiar os números do desmatamento e demitiu o diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Depois omitiu-se diante de sucessivos cortes no orçamento.

Na semana passada, a pasta perdeu mais R$ 600 milhões. O dinheiro estava reservado para financiar pesquisas e bolsas de estudo. Por decisão de Paulo Guedes, foi remanejado para outros sete ministérios.

“A ciência nunca foi prioridade para este governo. A questão é saber se eles fazem isso por falta de noção ou se existe uma política deliberada de desmonte”, afirma o professor Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.

Na sexta-feira, Pontes se disse “muito chateado” e insinuou que poderia entregar o cargo. Dois dias depois, reclamou de “falta de consideração”. Tudo teatro. Ontem o astronauta reapareceu, sorridente, na visita de Bolsonaro à basílica de Aparecida. Ao que parece, prefere continuar como ministro decorativo a voltar a vender travesseiros.