domingo, 19 de maio de 2024
A ocasião e a maldade
É inegável que a ocasião faz o ladrão, mas não é a única coisa que a ocasião faz.
O argumento da tentação é moralmente duvidoso – não é só por encontrar uma carteira cheia de dinheiro que somos tentados a roubar – mas funciona, porque todos somos capazes de imaginar o ladrão preguiçoso que é incapaz de dar um passo para roubar, mas não resiste quando é Deus Nosso Senhor a pôr-lhe as pérolas da marquesa no caminho.
“Estava mesmo ali à mão de semear” é uma desculpa que põe os juízes de todo o mundo a bocejar. As pessoas que sorriem quando a ouvem, ou quando lêem Oscar Wilde a dizer que resiste a tudo menos à tentação, já acharão menos graça quando é o violador a dizer que a vítima estava de minissaia.
Mas o argumento é sempre o mesmo: um homem não é de ferro e a ocasião é que faz o ladrão, pelo que, no fundo, senhor doutor juiz, a culpa não é só minha!
Na minha vida, tenho-me espantado com pessoas que, não sendo sempre maldosas, são capazes de actos de grande maldade. Se calhar, também elas não resistem à tentação de ser más. A diferença é que não podem ser apanhadas, nem apresentadas a nenhum juiz – precisamente porque só são más quando pressentem que não há maneira de serem castigadas.
Estas maldosas ocasionais são moralmente piores do que as maldosas permanentes, porque estas últimas não têm remédio e é fácil detectá-las e evitá-las.
São más quando têm a faca e o queijo na mão. Não resistem à vertigem da desigualdade. Abusam sempre que o abuso é possível – e indetectável. Isto é, abusam sempre que o abuso não impede que possam continuar toda a vida a abusar.
Diriam estas pessoas, caso pudessem ser chamadas à pedra, que é a ocasião que faz a maldade? Que são como criancinhas, com a crueldade das criancinhas, mas também a inocência?
A verdade é que as ocasiões só despertam o que já lá está. Acontece a mesma coisa com o bem: há muita gente que agradece uma oportunidade de ajudar os outros. A tentação nunca tem culpa.
O argumento da tentação é moralmente duvidoso – não é só por encontrar uma carteira cheia de dinheiro que somos tentados a roubar – mas funciona, porque todos somos capazes de imaginar o ladrão preguiçoso que é incapaz de dar um passo para roubar, mas não resiste quando é Deus Nosso Senhor a pôr-lhe as pérolas da marquesa no caminho.
“Estava mesmo ali à mão de semear” é uma desculpa que põe os juízes de todo o mundo a bocejar. As pessoas que sorriem quando a ouvem, ou quando lêem Oscar Wilde a dizer que resiste a tudo menos à tentação, já acharão menos graça quando é o violador a dizer que a vítima estava de minissaia.
Mas o argumento é sempre o mesmo: um homem não é de ferro e a ocasião é que faz o ladrão, pelo que, no fundo, senhor doutor juiz, a culpa não é só minha!
Na minha vida, tenho-me espantado com pessoas que, não sendo sempre maldosas, são capazes de actos de grande maldade. Se calhar, também elas não resistem à tentação de ser más. A diferença é que não podem ser apanhadas, nem apresentadas a nenhum juiz – precisamente porque só são más quando pressentem que não há maneira de serem castigadas.
Estas maldosas ocasionais são moralmente piores do que as maldosas permanentes, porque estas últimas não têm remédio e é fácil detectá-las e evitá-las.
São más quando têm a faca e o queijo na mão. Não resistem à vertigem da desigualdade. Abusam sempre que o abuso é possível – e indetectável. Isto é, abusam sempre que o abuso não impede que possam continuar toda a vida a abusar.
Diriam estas pessoas, caso pudessem ser chamadas à pedra, que é a ocasião que faz a maldade? Que são como criancinhas, com a crueldade das criancinhas, mas também a inocência?
A verdade é que as ocasiões só despertam o que já lá está. Acontece a mesma coisa com o bem: há muita gente que agradece uma oportunidade de ajudar os outros. A tentação nunca tem culpa.
Palavra mata
Foi um dia fatal aquele em que o público descobriu que a palavra é mais poderosa que o seixo, e que pode tornar-se mais prejudicial que uma pedradaOscar Wilde
Desinformação no Brasil: da polarização às tragédias
O mais sincero e bem intencionado interesse em se informar se amplia durante um evento como uma emergência sanitária ou um desastre climático. Quanto mais a audiência cresce e a opinião pública se envolve maior é sua disputa por diferentes meios comunicacionais e vertentes políticas. Desde que as chuvas intensas causaram inundações e tragédias jamais vistas ao sul de nosso território, assistimos também uma batalha comunicacional. Guerra travada entre os envolvidos na cobertura da tragédia, grosso modo a mídia profissional e a rede comunicacional formada nas redes sociais online.
A mídia profissional é a mais antiga e também a que tem seus interesses e equívocos mais conhecidos, o que ajuda a entender por que perde progressivamente confiança e audiência. Pesquisas internacionais afirmam que o fenômeno da desinformação é inseparável do distanciamento e desconfiança do público dos veículos de imprensa estabelecidos. O que não será resolvido com a demonização das redes sociais e o retorno à hegemonia da “grande imprensa”.
No sistema que se instalou desde meados da década de 2010, destacam-se digital influencers e afins, no que já podemos chamar de uma rede cada vez mais poderosa de comunicação alternativa ou paralela. Fenômeno possibilitado pelas plataformas comerciais que transformam espectadores em emissores competindo com a mídia profissional. A comunicação capilarizada é um mercado voltado ao lucro por meio da monetização dos canais. Influenciadores digitais buscam atenção porque ela se materializa em renda e a rede de comunicação que formam tem vantagens competitivas em relação às profissionais. A começar pela quase ausência de regulação de sua atividade, o que lhes permite adotar estratégias mais radicais na busca pela audiência.
A partir do exposto, não é de se estranhar que durante a tragédia gaúcha esse novo modelo comunicacional, que se consolidou entre nós nos embates políticos da década de 2010 e se expandiu durante a pandemia de Covid-19, tenha se voltado ao que se passa no Rio Grande do Sul. Influenciadores digitais vão aonde os holofotes estão, pois vivem em eterna competição por aparecerem e serem reconhecidos como relevantes. Ainda que desconheça a existência de um manual com estratégias explícitas para entrar, manter-se e competir no mercado da atenção é possível identificar algumas e explicitar a que objetivos correspondem.
A primeira tática de busca de audiência é ir, ou ao menos focar, no tema do momento, o que ajuda a compreender porque desde ex-BBB, medical influencers, celebridades de Instagram, entre outros que não tinham atuação associada ou treinamento para resgates, terem passado a criar e postar conteúdos sobre a tragédia. A segunda é “vender seu peixe” afirmando que sua visão é a verdadeira, o que costuma ser feito desviando a atenção de seus interesses por meio da acusação de que outros – sobretudo a concorrente mais poderosa, a mídia profissional – mente, erra ou atende a objetivos imorais. A terceira estratégia – claramente inspirada nos antigos programas policiais de rádio e nos sensacionalistas de tevê – é criar conteúdo que mobilize e possa ser mais disseminado por quem o consumir, daí os vídeos com senso de urgência e denúncia.
Enquanto um canal de tevê ou jornal prioriza fatos ou entrevista autoridades e especialistas produzindo o que compreendemos como informação, um digital influencer cria e divulga conteúdo concorrente que a audiência pode tomar como informação a despeito de poder ser mera opinião, boato ou posicionamento ideológico. Em contextos críticos como o de polarização política nacional, uma emergência de saúde ou uma tragédia humanitária ampliam exponencialmente as oportunidades para disseminar conteúdos sensacionalistas monetizando as visualizações de seus perfis em diferentes plataformas de vídeo e texto.
Sem poder competir com a estrutura dos órgãos profissionais de imprensa e suas equipes, foi mais simples para alguns desses empreendedores digitais criar vídeos denunciando supostas barreiras às doações, erros de atuação das forças governamentais ou apelar ao sobrenatural e à exploração da fé de sua audiência. Tal conteúdo se volta a dois públicos: o das redes sociais e o que costuma receber cortes via aplicativos de trocas de mensagens. Repassados por familiares e amigos, os cortes ganham confiabilidade em relação às notícias de um veículo de comunicação que o expectador pode associar a valores e interesses que lhes são distantes. As estratégias dos criadores de conteúdo que, em conjunto, formam redes de coprodução desinformativa, vão ao encontro de um público desconfiado da grande mídia, dos políticos e, como vimos durante a tragédia gaúcha, também do Estado.
Alguns atribuíram a tentativa de desqualificar o resgate empreendido pelo governo federal e estadual a uma rede organizada da extrema-direita, mas – a partir de longa pesquisa sobre desinformação – considero a hipótese de que a extrema-direita tenha afinidades com a rede desinformativa contextualmente formada sem que necessariamente a controle. Fato que não diminui as consequências da desinformação tampouco o poder de segmentos políticos radicais na nova paisagem informacional.
Afinidade ideológica é liga suficiente para tornar um aparato descentralizado e aberto de produção desinformativa a linha de frente de uma estratégia de comunicação política exitosa assim como vimos desde as eleições municipais de 2016 e que, de certa maneira, contou com o apoio da grande mídia. À época, a imprensa profissional cobria a ascensão do que então chamava de Nova Política, uma suposta resposta ética à corrupção que a operação Lava Jato afirmava combater, e que hoje reconhecemos como um movimento de extrema-direita em contínua mobilização pela rede de comunicação paralela centrada nas plataformas online. A rede desinformativa tornou-se poderosa o suficiente para tirar audiência da imprensa profissional, conquistar apoiadores para ideologias radicais, vencer eleições e até impor seu próprio enquadramento sobre a tragédia humanitária no Rio Grande do Sul. Foto: Pedro Piegas/PMPA
Em vez de visibilizar as forças federais e estaduais integradas no resgate, atendimento e distribuição de donativos arrecadados em todo país, o enquadramento disseminado pela rede de desinformação online foi o de que a sociedade estaria agindo sozinha e o Estado e a mídia profissional apenas atrapalhando. Quando tudo parece incerto e perigoso maior é a adesão a esse tipo de visão. A revolta em relação aos governantes e ao Estado que não tomaram medidas para evitar o desastre se soma ao risco de perder o pouco que se preservou tornando os atingidos afeitos tanto à retórica anti-Estado da nova extrema-direita como aos discursos empreendedores que vicejam entre os que formam a rede desinformativa.
Assim como se passou durante a pandemia, muitas pessoas tendem a confiar em quem compartilha perspectiva política e valores e desconfiar de medidas – mesmo que corretas em termos técnicos e científicos – quando propostas ou colocadas em prática por aqueles de quem discordam. O sistema comunicacional que emergiu junto com a polarização política em nosso país, se consolidou durante a pandemia e voltou a ganhar evidência durante a tragédia gaúcha é – no que se refere ao seu poder de fidelizar seguidores pela desinformação – inseparável de contextos de crise. Além disso, em emergências, o apelo ideológico ao indivíduo frente ao Estado pode evocar ideais de masculinidade arraigadas em contextos como o sulista e até o contrapor à atuação das Forças Armadas.
A despeito da maioria tratar desinformação como fenômeno atual é possível retraçar suas origens há muito tempo. Paralelos com um passado distante em que boatos e rumores causaram tragédias podem ser enganosos. É melhor situar as origens da desinformação quando as relações sociais e entre as nações passaram a se organizar dentro de um sistema informacional articulado. A Primeira Guerra Mundial pode servir de ponto de origem já que foi um marco que serviu de base a um conjunto de estudos sobre notícias falsas, controle da informação e suas consequências internacionais, assim como abordou Walter Lippmann em seu clássico Opinião pública (1922).
Na época de Lippmann, a opinião pública era uma promessa a despeito dos desafios e contradições sociais para lidar com as formas de produção, disseminação e consumo informativo. Em razão da experiência de guerra, o Estado parecia um potencial obstáculo ao impacto positivo da emergente opinião pública na vida social e política. Atualmente, em outro ecossistema comunicacional e em sociedades hiperconectadas como a brasileira, enfrentamos desafio diverso: como lidar com um novo sistema informativo descentralizado, autônomo e moldado radicalmente pelo mercado em detrimento de interesses coletivos, não comerciais e pautados por valores como a solidariedade?
Ao contrário de afirmações correntes de que o mundo todo está polarizado politicamente ou que a desinformação grassa por toda parte, há evidências de que elas vicejam mais em contextos de crise e têm características locais. A batalha comunicacional sobre como enquadrar e apresentar a tragédia humanitária gaúcha é parte da história que começou nos protestos de 2013 e seus desdobramentos: desde a divisão política radicalizada no Brasil que moldou as últimas eleições até como vivenciamos a emergência sanitária durante a pandemia de Covid-19. Vivemos a tragédia climática atual e a sanitária recente sob a disputa entre os enquadramentos da mídia profissional e da alternativa, entre atores próximos às instituições e os que se voltam contra elas em busca de atenção, lucro e votos.
As estratégias comunicacionais que emergiram na disputa política e eleitoral de meados da década de 2010 têm se revelado cada vez mais corrosivas para as relações interpessoais e a vida comunitária em nosso país. Durante a pandemia de Covid-19, o combate desinformativo ao isolamento social por meio de soluções individuais como o consumo de medicamentos e tratamentos ineficazes viabilizaram o lucro de um segmento da área de saúde e atenderam interesses de políticos extremistas em detrimento da saúde de milhões e da morte de centenas de milhares. Diante da tragédia climática, essas redes desinformativas se recompõem buscando lucro e, mais uma vez, contribuindo para transformar um movimento de solidariedade e união nacional em motivo de discórdia e fidelização política a segmentos extremistas.
Talvez a maior afinidade entre as redes desinformativas e a extrema-direita resida no que denomino em minha pesquisa como “negócio da discórdia”. São momentos de crise, inclusive humanitária, que criam oportunidades para atores disputarem atenção semeando desconfiança e divisão social por meio de plataformas de comunicação que são, desde a origem, também de empreendedorismo. Vale lembrar que é às vésperas de uma campanha eleitoral que influenciadores buscam fidelizar seguidores com essa afirmação ideológica oportunista da sociedade frente ao Estado. Afinal, muitos são contra o Estado que se organiza e age em favor da população atingida, mas almejam serem eleitos e fazer uso dele para seus interesses pessoais e até familiares.
A mídia profissional é a mais antiga e também a que tem seus interesses e equívocos mais conhecidos, o que ajuda a entender por que perde progressivamente confiança e audiência. Pesquisas internacionais afirmam que o fenômeno da desinformação é inseparável do distanciamento e desconfiança do público dos veículos de imprensa estabelecidos. O que não será resolvido com a demonização das redes sociais e o retorno à hegemonia da “grande imprensa”.
No sistema que se instalou desde meados da década de 2010, destacam-se digital influencers e afins, no que já podemos chamar de uma rede cada vez mais poderosa de comunicação alternativa ou paralela. Fenômeno possibilitado pelas plataformas comerciais que transformam espectadores em emissores competindo com a mídia profissional. A comunicação capilarizada é um mercado voltado ao lucro por meio da monetização dos canais. Influenciadores digitais buscam atenção porque ela se materializa em renda e a rede de comunicação que formam tem vantagens competitivas em relação às profissionais. A começar pela quase ausência de regulação de sua atividade, o que lhes permite adotar estratégias mais radicais na busca pela audiência.
A partir do exposto, não é de se estranhar que durante a tragédia gaúcha esse novo modelo comunicacional, que se consolidou entre nós nos embates políticos da década de 2010 e se expandiu durante a pandemia de Covid-19, tenha se voltado ao que se passa no Rio Grande do Sul. Influenciadores digitais vão aonde os holofotes estão, pois vivem em eterna competição por aparecerem e serem reconhecidos como relevantes. Ainda que desconheça a existência de um manual com estratégias explícitas para entrar, manter-se e competir no mercado da atenção é possível identificar algumas e explicitar a que objetivos correspondem.
A primeira tática de busca de audiência é ir, ou ao menos focar, no tema do momento, o que ajuda a compreender porque desde ex-BBB, medical influencers, celebridades de Instagram, entre outros que não tinham atuação associada ou treinamento para resgates, terem passado a criar e postar conteúdos sobre a tragédia. A segunda é “vender seu peixe” afirmando que sua visão é a verdadeira, o que costuma ser feito desviando a atenção de seus interesses por meio da acusação de que outros – sobretudo a concorrente mais poderosa, a mídia profissional – mente, erra ou atende a objetivos imorais. A terceira estratégia – claramente inspirada nos antigos programas policiais de rádio e nos sensacionalistas de tevê – é criar conteúdo que mobilize e possa ser mais disseminado por quem o consumir, daí os vídeos com senso de urgência e denúncia.
Enquanto um canal de tevê ou jornal prioriza fatos ou entrevista autoridades e especialistas produzindo o que compreendemos como informação, um digital influencer cria e divulga conteúdo concorrente que a audiência pode tomar como informação a despeito de poder ser mera opinião, boato ou posicionamento ideológico. Em contextos críticos como o de polarização política nacional, uma emergência de saúde ou uma tragédia humanitária ampliam exponencialmente as oportunidades para disseminar conteúdos sensacionalistas monetizando as visualizações de seus perfis em diferentes plataformas de vídeo e texto.
Sem poder competir com a estrutura dos órgãos profissionais de imprensa e suas equipes, foi mais simples para alguns desses empreendedores digitais criar vídeos denunciando supostas barreiras às doações, erros de atuação das forças governamentais ou apelar ao sobrenatural e à exploração da fé de sua audiência. Tal conteúdo se volta a dois públicos: o das redes sociais e o que costuma receber cortes via aplicativos de trocas de mensagens. Repassados por familiares e amigos, os cortes ganham confiabilidade em relação às notícias de um veículo de comunicação que o expectador pode associar a valores e interesses que lhes são distantes. As estratégias dos criadores de conteúdo que, em conjunto, formam redes de coprodução desinformativa, vão ao encontro de um público desconfiado da grande mídia, dos políticos e, como vimos durante a tragédia gaúcha, também do Estado.
Alguns atribuíram a tentativa de desqualificar o resgate empreendido pelo governo federal e estadual a uma rede organizada da extrema-direita, mas – a partir de longa pesquisa sobre desinformação – considero a hipótese de que a extrema-direita tenha afinidades com a rede desinformativa contextualmente formada sem que necessariamente a controle. Fato que não diminui as consequências da desinformação tampouco o poder de segmentos políticos radicais na nova paisagem informacional.
Afinidade ideológica é liga suficiente para tornar um aparato descentralizado e aberto de produção desinformativa a linha de frente de uma estratégia de comunicação política exitosa assim como vimos desde as eleições municipais de 2016 e que, de certa maneira, contou com o apoio da grande mídia. À época, a imprensa profissional cobria a ascensão do que então chamava de Nova Política, uma suposta resposta ética à corrupção que a operação Lava Jato afirmava combater, e que hoje reconhecemos como um movimento de extrema-direita em contínua mobilização pela rede de comunicação paralela centrada nas plataformas online. A rede desinformativa tornou-se poderosa o suficiente para tirar audiência da imprensa profissional, conquistar apoiadores para ideologias radicais, vencer eleições e até impor seu próprio enquadramento sobre a tragédia humanitária no Rio Grande do Sul. Foto: Pedro Piegas/PMPA
Em vez de visibilizar as forças federais e estaduais integradas no resgate, atendimento e distribuição de donativos arrecadados em todo país, o enquadramento disseminado pela rede de desinformação online foi o de que a sociedade estaria agindo sozinha e o Estado e a mídia profissional apenas atrapalhando. Quando tudo parece incerto e perigoso maior é a adesão a esse tipo de visão. A revolta em relação aos governantes e ao Estado que não tomaram medidas para evitar o desastre se soma ao risco de perder o pouco que se preservou tornando os atingidos afeitos tanto à retórica anti-Estado da nova extrema-direita como aos discursos empreendedores que vicejam entre os que formam a rede desinformativa.
Assim como se passou durante a pandemia, muitas pessoas tendem a confiar em quem compartilha perspectiva política e valores e desconfiar de medidas – mesmo que corretas em termos técnicos e científicos – quando propostas ou colocadas em prática por aqueles de quem discordam. O sistema comunicacional que emergiu junto com a polarização política em nosso país, se consolidou durante a pandemia e voltou a ganhar evidência durante a tragédia gaúcha é – no que se refere ao seu poder de fidelizar seguidores pela desinformação – inseparável de contextos de crise. Além disso, em emergências, o apelo ideológico ao indivíduo frente ao Estado pode evocar ideais de masculinidade arraigadas em contextos como o sulista e até o contrapor à atuação das Forças Armadas.
A despeito da maioria tratar desinformação como fenômeno atual é possível retraçar suas origens há muito tempo. Paralelos com um passado distante em que boatos e rumores causaram tragédias podem ser enganosos. É melhor situar as origens da desinformação quando as relações sociais e entre as nações passaram a se organizar dentro de um sistema informacional articulado. A Primeira Guerra Mundial pode servir de ponto de origem já que foi um marco que serviu de base a um conjunto de estudos sobre notícias falsas, controle da informação e suas consequências internacionais, assim como abordou Walter Lippmann em seu clássico Opinião pública (1922).
Na época de Lippmann, a opinião pública era uma promessa a despeito dos desafios e contradições sociais para lidar com as formas de produção, disseminação e consumo informativo. Em razão da experiência de guerra, o Estado parecia um potencial obstáculo ao impacto positivo da emergente opinião pública na vida social e política. Atualmente, em outro ecossistema comunicacional e em sociedades hiperconectadas como a brasileira, enfrentamos desafio diverso: como lidar com um novo sistema informativo descentralizado, autônomo e moldado radicalmente pelo mercado em detrimento de interesses coletivos, não comerciais e pautados por valores como a solidariedade?
Ao contrário de afirmações correntes de que o mundo todo está polarizado politicamente ou que a desinformação grassa por toda parte, há evidências de que elas vicejam mais em contextos de crise e têm características locais. A batalha comunicacional sobre como enquadrar e apresentar a tragédia humanitária gaúcha é parte da história que começou nos protestos de 2013 e seus desdobramentos: desde a divisão política radicalizada no Brasil que moldou as últimas eleições até como vivenciamos a emergência sanitária durante a pandemia de Covid-19. Vivemos a tragédia climática atual e a sanitária recente sob a disputa entre os enquadramentos da mídia profissional e da alternativa, entre atores próximos às instituições e os que se voltam contra elas em busca de atenção, lucro e votos.
As estratégias comunicacionais que emergiram na disputa política e eleitoral de meados da década de 2010 têm se revelado cada vez mais corrosivas para as relações interpessoais e a vida comunitária em nosso país. Durante a pandemia de Covid-19, o combate desinformativo ao isolamento social por meio de soluções individuais como o consumo de medicamentos e tratamentos ineficazes viabilizaram o lucro de um segmento da área de saúde e atenderam interesses de políticos extremistas em detrimento da saúde de milhões e da morte de centenas de milhares. Diante da tragédia climática, essas redes desinformativas se recompõem buscando lucro e, mais uma vez, contribuindo para transformar um movimento de solidariedade e união nacional em motivo de discórdia e fidelização política a segmentos extremistas.
Talvez a maior afinidade entre as redes desinformativas e a extrema-direita resida no que denomino em minha pesquisa como “negócio da discórdia”. São momentos de crise, inclusive humanitária, que criam oportunidades para atores disputarem atenção semeando desconfiança e divisão social por meio de plataformas de comunicação que são, desde a origem, também de empreendedorismo. Vale lembrar que é às vésperas de uma campanha eleitoral que influenciadores buscam fidelizar seguidores com essa afirmação ideológica oportunista da sociedade frente ao Estado. Afinal, muitos são contra o Estado que se organiza e age em favor da população atingida, mas almejam serem eleitos e fazer uso dele para seus interesses pessoais e até familiares.
Precisamos acreditar na fábula humanista atribuída a Margaret Mead
A história circulou no rastro do furacão Katrina, que em 2005 devastou Nova Orleans e deixou a cidade 80% submersa. Também foi lembrada em várias línguas durante a pandemia mundial de Covid-19 e seu agoniante corolário de mais de 7 milhões de mortos. Agora, diante da destruição pelas águas de todo um modo de viver gaúcho, ela volta à baila. Compreende-se: em tempos de dor coletiva, referências edificantes viram bálsamo — mesmo quando não são, necessariamente, verdadeiras. Conta-se que a cultuada antropóloga americana Margaret Mead, quando questionada sobre que marcador da evolução considerava ser a primeiríssima evidência de uma sociedade civilizada, citou um fêmur humano de 15 mil anos atrás, encontrado num sítio arqueológico. Nem ferramenta primitiva, nem artefato religioso, nem qualquer forma rudimentar de organização comunal, mas um fêmur — um fêmur fraturado que havia sarado.
Mead explicou que, no reino animal daquela Pré-História, quebrar uma perna equivalia a morrer de fome, sede ou como presa de outros animais, por não ter tido tempo de sarar. Um fêmur sarado significava que alguém havia decidido ajudar o ferido, transportara-o a lugar seguro e permitira que se recuperasse. A conclusão da mestra: a civilização começa quando alguém ajuda outra pessoa que precisa de ajuda.
Nem os biógrafos de Mead nem pesquisadores de sua obra — que inclui uma formidável palestra de 1968 sobre o tema “Quando uma cultura se torna civilização?” — encontraram referência precisa do diálogo entre a antropóloga e um aluno (Data? Local? Contexto? Nome do interlocutor?). Mesmo assim, a história passou a ser adotada como plausível e repetida como saber científico sempre que dele necessitamos, como agora. São tempos de transição, ou “liminalidade”, termo do antropologuês que designa nossa ambiguidade e desorientação durante transformações e rupturas.
Há vezes em que cataclismos naturais ou criados pelo ser humano aceleram a História, revelando o caminho para o qual determinada sociedade já embicava sem saber. Outras vezes, a ocorrência de pragas, pandemias ou guerras altera de forma fundamental a própria trajetória de sociedades. Ainda é cedo para prever o que emergirá das ruínas e devastação humana em Gaza e prematuro imaginar que, da calamidade em curso no Rio Grande do Sul, brote um Brasil visionário, capaz de pensar, agir, prevenir, colaborar, pagar sua cota individual e coletiva de engajamento. Como já disse um sábio, a verdadeira generosidade com o futuro consiste em dar o melhor de si no presente.
Por enquanto, o momento gaúcho ainda é emergencial, de empatia coletiva e afoiteza geral para conseguir atravessar um dia a mais. A destruição no Sul tem sido comparada a um cenário de guerra, então convém apertar os cintos: os períodos do pós-guerra costumam ser lembrados pelos sobreviventes como mais difíceis e amargos que a própria guerra. Explica-se: antes de uma guerra estourar, vigora um sistema e existem regras, não importa se boas ou ruins. Cada um sabe onde mora, faz parte de uma sociedade, conhece os caminhos do sustento. Em tempos de guerra, o sistema colapsa, regras podem ser quebradas na busca de um abrigo ou alimento. O foco está em sobreviver. Quem não consegue, morre antes de poder contar sua história para a História.
David Laderoute, coronel reformado do Exército canadense, descreve assim o que vem depois: “No pós-guerra, o sistema continua quebrado, moradias estão em ruínas, lavouras foram abandonadas, o comércio de alimentos sofre restrições. Mas as regras voltaram — deixou de ser possível e permitido fazer qualquer coisa para poder sobreviver”. O inimigo passa a ser a ausência de instituições em pleno funcionamento, a precariedade na subsistência. Faltam alimento, saúde, escolas, a retomada da vida anterior se revela distante.
Durante a guerra predomina a esperança/certeza de que um dia ela haverá de terminar, ficando para o day after a possibilidade de encararmos os destroços que sobraram. Cansaço, impaciência, desilusão, raiva se infiltram no tecido social diante da dimensão da empreitada. Quase 30 anos depois do fim da guerra na Bósnia, o país ainda não conseguiu descontaminar seu solo de aproximadamente 80 mil minas terrestres. Serve como metáfora.
Assim sendo, melhor acreditar na fábula humanista atribuída a Margaret Mead: “A civilização começa quando uma pessoa ajuda outra que precisa de ajuda”.
Mead explicou que, no reino animal daquela Pré-História, quebrar uma perna equivalia a morrer de fome, sede ou como presa de outros animais, por não ter tido tempo de sarar. Um fêmur sarado significava que alguém havia decidido ajudar o ferido, transportara-o a lugar seguro e permitira que se recuperasse. A conclusão da mestra: a civilização começa quando alguém ajuda outra pessoa que precisa de ajuda.
Nem os biógrafos de Mead nem pesquisadores de sua obra — que inclui uma formidável palestra de 1968 sobre o tema “Quando uma cultura se torna civilização?” — encontraram referência precisa do diálogo entre a antropóloga e um aluno (Data? Local? Contexto? Nome do interlocutor?). Mesmo assim, a história passou a ser adotada como plausível e repetida como saber científico sempre que dele necessitamos, como agora. São tempos de transição, ou “liminalidade”, termo do antropologuês que designa nossa ambiguidade e desorientação durante transformações e rupturas.
Há vezes em que cataclismos naturais ou criados pelo ser humano aceleram a História, revelando o caminho para o qual determinada sociedade já embicava sem saber. Outras vezes, a ocorrência de pragas, pandemias ou guerras altera de forma fundamental a própria trajetória de sociedades. Ainda é cedo para prever o que emergirá das ruínas e devastação humana em Gaza e prematuro imaginar que, da calamidade em curso no Rio Grande do Sul, brote um Brasil visionário, capaz de pensar, agir, prevenir, colaborar, pagar sua cota individual e coletiva de engajamento. Como já disse um sábio, a verdadeira generosidade com o futuro consiste em dar o melhor de si no presente.
Por enquanto, o momento gaúcho ainda é emergencial, de empatia coletiva e afoiteza geral para conseguir atravessar um dia a mais. A destruição no Sul tem sido comparada a um cenário de guerra, então convém apertar os cintos: os períodos do pós-guerra costumam ser lembrados pelos sobreviventes como mais difíceis e amargos que a própria guerra. Explica-se: antes de uma guerra estourar, vigora um sistema e existem regras, não importa se boas ou ruins. Cada um sabe onde mora, faz parte de uma sociedade, conhece os caminhos do sustento. Em tempos de guerra, o sistema colapsa, regras podem ser quebradas na busca de um abrigo ou alimento. O foco está em sobreviver. Quem não consegue, morre antes de poder contar sua história para a História.
David Laderoute, coronel reformado do Exército canadense, descreve assim o que vem depois: “No pós-guerra, o sistema continua quebrado, moradias estão em ruínas, lavouras foram abandonadas, o comércio de alimentos sofre restrições. Mas as regras voltaram — deixou de ser possível e permitido fazer qualquer coisa para poder sobreviver”. O inimigo passa a ser a ausência de instituições em pleno funcionamento, a precariedade na subsistência. Faltam alimento, saúde, escolas, a retomada da vida anterior se revela distante.
Durante a guerra predomina a esperança/certeza de que um dia ela haverá de terminar, ficando para o day after a possibilidade de encararmos os destroços que sobraram. Cansaço, impaciência, desilusão, raiva se infiltram no tecido social diante da dimensão da empreitada. Quase 30 anos depois do fim da guerra na Bósnia, o país ainda não conseguiu descontaminar seu solo de aproximadamente 80 mil minas terrestres. Serve como metáfora.
Assim sendo, melhor acreditar na fábula humanista atribuída a Margaret Mead: “A civilização começa quando uma pessoa ajuda outra que precisa de ajuda”.
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