sábado, 12 de outubro de 2019
Sete dias de chabu
Uma semana para o governo esquecer. Nada deu certo. Crise conjugal com o PSL; vazamento de petróleo atropelando as queimadas na Amazônia; denúncias de torturas no presídio do Pará; Censura da Caixa arrolhada pelo Ministério Público; ministro do Turismo convocado pelo Senado para explicações sobre o laranjal; secretário-geral da ONU cobrando calote do Brasil; Trump negaceando apoio à entrada do Brasil na OCDE; campanha do pacote anticrime brecada pelo TCU; afora os sucessivos vexames dos ministros mais adestrados nessa especialidade, as bisonhas bravatas do presidente e as quase diárias patacoadas de 01, 02 e 03.
Ao fundo ou redor, a intranquilizadora, mas não se sabe ainda se virótica, revolta popular contra o presidente do Equador. Sem contar os prêmios Camões e Nobel.
O Camões foi anunciado em maio, mas ao se negar, no meio da semana, a pôr seu jamegão no diploma a se entregar a Chico Buarque em 2020, o presidente se expôs uma vez mais ao ridículo. “Se ele não assinar, será como um segundo prêmio Camões para mim”, rebateu de primeira o premiado autor.
Quanto ao Nobel, os três que dividiram o de Física pareceram escolhidos a dedo para zombar dos criacionistas e terraplanistas que integram o núcleo mais paleolítico e biruta do bolsonato. O da Paz, bem, o da Paz virou quando Greta Thunberg, papa Francisco, Raoni e Lula se firmaram como os mais cotados nas bolsas de aposta, e que só acabou na sexta-feira, com a premiação do primeiro-ministro da Etiópia.
Que fase!
Nem as efemérides da semana contribuíram para aliviar a urucubaca governamental. Logo na segunda-feira, até porque não podia ser noutro dia, um site de notícias lembrou os 85 anos de uma histórica escaramuça nas proximidades da Praça da Sé, cuja exumação foi como falar em corda em casa de enforcado ou em cítricos no Planalto e no Alvorada.
Em 7 de outubro de 1934, anarquistas, comunistas, trotskistas e sindicalistas, aglutinados pela Frente Única Antifascista, quebraram o maior pau com os integralistas no centro de São Paulo, que por ali pretendiam marchar em comemoração ao segundo aniversário do manifesto do movimento, cuja palavra de ordem era o imperativo de um verbo bem ao gosto bolsonarista: “Armai-vos”. Bem armada estava era a polícia, mobilizada para manter a ordem na passeata, da qual resultaram seis mortos e dezenas de feridos. Os integralistas, com suas indefectíveis camisas verdes, escafederam-se, mas sem os braços erguidos, na tradicional saudação nazi-fascista por eles adotada, é claro.
No Jornal do Povo, o libertário gozador Apparicio Torelly, mais conhecido como Barão de Itararé, useiro e vezeiros em tratar os fascistas tupiniquins de “galinhas verdes”, desmentiu a manchete de um diário paulistano – “Integralistas saem correndo” – com uma singela explicação ornitológica: “Um integralista não corre, voa”.
Voavam, corriam, praticavam atentados terroristas (tramaram assassinar Getúlio Vargas duas vezes), ensaiaram um contragolpe no Estado Novo em 1937 e uma intentona em 1938. Pioneiros na criação de milícias no País, um dia sequestraram o Barão, levaram-no a um lugar ermo, próximo à Gruta da Imprensa, na Avenida Niemeyer, zona sul do Rio, onde o despiram, rasparam-lhe a cabeça e o obrigaram a engolir um artigo de sua autoria publicado no jornal A Manha.
O que dizia o artigo de Torelly? Que o marinheiro João Cândido, o líder negro da Revolta da Chibata, e não o almirante Tamandaré, era a grande figura histórica da Marinha.
Integralistas e antifascistas de variada coloração viviam se confrontando em diversos pontos do País, que às vésperas da guerra andava muito mais polarizado do que hoje e sem a válvula de escape das redes sociais. A AIB (Ação Integralista Brasileira) era um MBL com maior poder de arregimentação (chegou a ter um milhão de adeptos), mais audacioso e violento. Defendia um Estado forte, centralizado, de base religiosa, seus integrantes se diziam soldados de Cristo, templários da Pátria e da Família, a mesma farsa retórica dos demagogos e hipócritas de hoje e de sempre.
O que mais me espanta – e há muito queria dizer isso – não são as incontestáveis semelhanças entre o integralismo original (não seu patético ersatz que por aí vaga como alma penada) e o neofascismo chocado pelas galinhas, agora amarelas, que há dez meses chegaram ao poder, mas as suas diferenças. Ou, mais precisamente, o abismo existente entre os ideólogos da AIB e seus, por assim dizer, equivalentes atuais.
Esqueçam os ministros competentes de Getúlio, pensem apenas nos mais graduados galináceos da AIB: Plínio Salgado, Menotti del Picchia, Gustavo Barroso, Miguel Reale, Luís da Câmara Cascudo. E comparem qualquer um deles com o chanceler Ernesto Araújo e os ministros Abraham Weintraub, Ricardo Salles, Damares Alves, Osmar Terra, etc. Ou, quem preferir, com o aiatolavo da Virginia.
Plínio Salgado era catolicão, chauvinista, tão fanático nacionalista que em seu mais badalado manifesto homenageou a anta, o mamífero totem dos tupis, mas era homem inteligente e culto. Leu todos os clássicos das teorias políticas e conhecia bem literatura. Escreveu ensaios influenciados pelo conservadorismo de Alberto Torre e Farias Brito, e um romance, O Estrangeiro, que muito devia a O Selvagem, de Couto de Magalhães, e marcou presença no Modernismo.
Certamente ficaria horrorizado com a crassa e – o que é pior – soberba ignorância de nossas “otoridades”. E, para evitar errôneas atribuições, mudaria o título do Manifesto da Anta.
Ao fundo ou redor, a intranquilizadora, mas não se sabe ainda se virótica, revolta popular contra o presidente do Equador. Sem contar os prêmios Camões e Nobel.
O Camões foi anunciado em maio, mas ao se negar, no meio da semana, a pôr seu jamegão no diploma a se entregar a Chico Buarque em 2020, o presidente se expôs uma vez mais ao ridículo. “Se ele não assinar, será como um segundo prêmio Camões para mim”, rebateu de primeira o premiado autor.
Quanto ao Nobel, os três que dividiram o de Física pareceram escolhidos a dedo para zombar dos criacionistas e terraplanistas que integram o núcleo mais paleolítico e biruta do bolsonato. O da Paz, bem, o da Paz virou quando Greta Thunberg, papa Francisco, Raoni e Lula se firmaram como os mais cotados nas bolsas de aposta, e que só acabou na sexta-feira, com a premiação do primeiro-ministro da Etiópia.
Que fase!
Nem as efemérides da semana contribuíram para aliviar a urucubaca governamental. Logo na segunda-feira, até porque não podia ser noutro dia, um site de notícias lembrou os 85 anos de uma histórica escaramuça nas proximidades da Praça da Sé, cuja exumação foi como falar em corda em casa de enforcado ou em cítricos no Planalto e no Alvorada.
Em 7 de outubro de 1934, anarquistas, comunistas, trotskistas e sindicalistas, aglutinados pela Frente Única Antifascista, quebraram o maior pau com os integralistas no centro de São Paulo, que por ali pretendiam marchar em comemoração ao segundo aniversário do manifesto do movimento, cuja palavra de ordem era o imperativo de um verbo bem ao gosto bolsonarista: “Armai-vos”. Bem armada estava era a polícia, mobilizada para manter a ordem na passeata, da qual resultaram seis mortos e dezenas de feridos. Os integralistas, com suas indefectíveis camisas verdes, escafederam-se, mas sem os braços erguidos, na tradicional saudação nazi-fascista por eles adotada, é claro.
No Jornal do Povo, o libertário gozador Apparicio Torelly, mais conhecido como Barão de Itararé, useiro e vezeiros em tratar os fascistas tupiniquins de “galinhas verdes”, desmentiu a manchete de um diário paulistano – “Integralistas saem correndo” – com uma singela explicação ornitológica: “Um integralista não corre, voa”.
Voavam, corriam, praticavam atentados terroristas (tramaram assassinar Getúlio Vargas duas vezes), ensaiaram um contragolpe no Estado Novo em 1937 e uma intentona em 1938. Pioneiros na criação de milícias no País, um dia sequestraram o Barão, levaram-no a um lugar ermo, próximo à Gruta da Imprensa, na Avenida Niemeyer, zona sul do Rio, onde o despiram, rasparam-lhe a cabeça e o obrigaram a engolir um artigo de sua autoria publicado no jornal A Manha.
O que dizia o artigo de Torelly? Que o marinheiro João Cândido, o líder negro da Revolta da Chibata, e não o almirante Tamandaré, era a grande figura histórica da Marinha.
Integralistas e antifascistas de variada coloração viviam se confrontando em diversos pontos do País, que às vésperas da guerra andava muito mais polarizado do que hoje e sem a válvula de escape das redes sociais. A AIB (Ação Integralista Brasileira) era um MBL com maior poder de arregimentação (chegou a ter um milhão de adeptos), mais audacioso e violento. Defendia um Estado forte, centralizado, de base religiosa, seus integrantes se diziam soldados de Cristo, templários da Pátria e da Família, a mesma farsa retórica dos demagogos e hipócritas de hoje e de sempre.
O que mais me espanta – e há muito queria dizer isso – não são as incontestáveis semelhanças entre o integralismo original (não seu patético ersatz que por aí vaga como alma penada) e o neofascismo chocado pelas galinhas, agora amarelas, que há dez meses chegaram ao poder, mas as suas diferenças. Ou, mais precisamente, o abismo existente entre os ideólogos da AIB e seus, por assim dizer, equivalentes atuais.
Esqueçam os ministros competentes de Getúlio, pensem apenas nos mais graduados galináceos da AIB: Plínio Salgado, Menotti del Picchia, Gustavo Barroso, Miguel Reale, Luís da Câmara Cascudo. E comparem qualquer um deles com o chanceler Ernesto Araújo e os ministros Abraham Weintraub, Ricardo Salles, Damares Alves, Osmar Terra, etc. Ou, quem preferir, com o aiatolavo da Virginia.
Plínio Salgado era catolicão, chauvinista, tão fanático nacionalista que em seu mais badalado manifesto homenageou a anta, o mamífero totem dos tupis, mas era homem inteligente e culto. Leu todos os clássicos das teorias políticas e conhecia bem literatura. Escreveu ensaios influenciados pelo conservadorismo de Alberto Torre e Farias Brito, e um romance, O Estrangeiro, que muito devia a O Selvagem, de Couto de Magalhães, e marcou presença no Modernismo.
Certamente ficaria horrorizado com a crassa e – o que é pior – soberba ignorância de nossas “otoridades”. E, para evitar errôneas atribuições, mudaria o título do Manifesto da Anta.
Irmã Dulce, símbolo de um Brasil que está se esquecendo dos pobres
Irmã Dulce será canonizada no próximo domingo em Roma pelo papa Francisco. Trata-se de um acontecimento duplamente importante e significativo não só para os católicos, já que a religiosa se apresenta como uma série de símbolos do momento que este país vive nos aspectos político, religioso e social. É a primeira Santa do Brasil que não só viveu como também nasceu aqui, em Salvador.
Conhecida popularmente como a “mãe dos pobres”, Irmã Dulce será canonizada por Francisco, o papa de vida mais austera da época moderna. Eleito sucessor de Pedro, despojou-se dos ouropéis do poder, até em sua vestimenta, e preferiu viver em um quarto de hotel em vez dos luxuosos palácios pontifícios. Talvez a isso se deva que a nova santa brasileira seja canonizada tão poucos anos depois da sua morte. A Igreja esperou às vezes séculos antes de declarar alguém como santo.
O Brasil verá Irmã Dulce na glória dos altares em um momento quase de cruzada religiosa no país, onde a intolerância de alguns grupos de evangélicos extremistas perseguem outras religiões, sobretudo de origem africana. Irmã Dulce nasceu e atuou justamente na cidade com mais negros fora da África e a que melhor mantém suas tradições culturais e religiosas.
Será canonizada durante o Sínodo de bispos sobre os problemas da Amazônia, em plena polêmica do presidente Jair Bolsonaro, católico e rebatizado na Igreja evangélica, com o papa Francisco, a quem o governo brasileiro de extrema direita acusa de intromissão nos assuntos internos do Brasil, por criticar a queima das florestas e o abandono dos indígenas.
A nova Santa da Bahia estará rodeada por políticos brasileiros de todas as tendências neste domingo, na Basílica de São Pedro. A religiosa, intrépida e obcecada com os mais marginalizados da sociedade, dizia: “Meu partido é a pobreza”. Nunca teve escrúpulos em bater à porta dos políticos importantes do seu tempo, mas sempre para suplicar recursos para os mais abandonados, aos quais dedicou sua vida, e às obras por ela criadas exclusivamente para aliviar a dor e a pobreza.
O Brasil terá uma nova Santa que ainda adolescente, órfã de mãe, levava os doentes abandonados nas ruas para a sua própria casa, de família bem de vida, para lhes socorrer. Sua figura de mulher forte e doce ao mesmo tempo, e sua vida dedicada a ajudar a todos os abandonados, é o que faz que hoje, sobretudo os pobres, de qualquer fé, vejam na Irmã Dulce alguém, como me disseram na rua, “que parece que se preocupava com os que mais sofriam”. Pois são esses abandonados pelo poder à margem da sociedade que mais sensibilidade têm para analisar a verdadeira santidade de uma pessoa.
Nos primórdios do cristianismo, não era a Igreja, o Papa, que canonizava as pessoas. Era a própria comunidade cristã que decidia, às vezes já em vida, quem era santo e exemplo para os outros. Consta-me que o papa Francisco gostaria de voltar a essas origens e deixar que sejam as comunidades cristãs que decidam quem teve uma vida que mereça ser exaltada depois da sua morte.
Irmã Dulce, que como religiosa manteve sua visão moderna da mulher liberada que deve participar ativamente na vida pública, é canonizada justo neste momento em que a reivindicação da mulher por seus direitos e peculiaridades, sem discriminações, representa uma das grandes batalhas no mundo e particularmente no Brasil, um dos países com maior número de feminicídios, e que vive um momento de machismo e obscurantismo cultural e religioso.
Os símbolos são uma das grandes criações da inteligência humana. Foram eles que moveram o mundo para o bem ou para o mal. Do Brasil, hoje, onde o poder transformou os pobres e desassistidos em invisíveis, a nova Santa Irmã Dulce é o símbolo de uma nova resistência para recordar ao mundo e sobretudo aos cristãos em geral que são os pobres que acabam julgando o poder.
Conheci Irmã Dulce em julho de 1980, durante a primeira viagem do papa João Paulo II ao Brasil. Foi em Salvador, durante a missa campal do Pontífice. Eu havia viajado no seu avião como correspondente deste jornal na Itália e Vaticano. O Papa, na frente daquela multidão, chamou a religiosa ao altar onde celebrava a Eucaristia, abraçou-a e a abençoou. Os jornalistas estrangeiros não sabíamos quem era aquela freirinha privilegiada que arrastava visivelmente seu desgaste físico. Dela recordo, sobretudo, seu olhar profundo e grave. Seus olhos mais doces devia reservá-los aos invisíveis.
Conhecida popularmente como a “mãe dos pobres”, Irmã Dulce será canonizada por Francisco, o papa de vida mais austera da época moderna. Eleito sucessor de Pedro, despojou-se dos ouropéis do poder, até em sua vestimenta, e preferiu viver em um quarto de hotel em vez dos luxuosos palácios pontifícios. Talvez a isso se deva que a nova santa brasileira seja canonizada tão poucos anos depois da sua morte. A Igreja esperou às vezes séculos antes de declarar alguém como santo.
O Brasil verá Irmã Dulce na glória dos altares em um momento quase de cruzada religiosa no país, onde a intolerância de alguns grupos de evangélicos extremistas perseguem outras religiões, sobretudo de origem africana. Irmã Dulce nasceu e atuou justamente na cidade com mais negros fora da África e a que melhor mantém suas tradições culturais e religiosas.
Será canonizada durante o Sínodo de bispos sobre os problemas da Amazônia, em plena polêmica do presidente Jair Bolsonaro, católico e rebatizado na Igreja evangélica, com o papa Francisco, a quem o governo brasileiro de extrema direita acusa de intromissão nos assuntos internos do Brasil, por criticar a queima das florestas e o abandono dos indígenas.
A nova Santa da Bahia estará rodeada por políticos brasileiros de todas as tendências neste domingo, na Basílica de São Pedro. A religiosa, intrépida e obcecada com os mais marginalizados da sociedade, dizia: “Meu partido é a pobreza”. Nunca teve escrúpulos em bater à porta dos políticos importantes do seu tempo, mas sempre para suplicar recursos para os mais abandonados, aos quais dedicou sua vida, e às obras por ela criadas exclusivamente para aliviar a dor e a pobreza.
O Brasil terá uma nova Santa que ainda adolescente, órfã de mãe, levava os doentes abandonados nas ruas para a sua própria casa, de família bem de vida, para lhes socorrer. Sua figura de mulher forte e doce ao mesmo tempo, e sua vida dedicada a ajudar a todos os abandonados, é o que faz que hoje, sobretudo os pobres, de qualquer fé, vejam na Irmã Dulce alguém, como me disseram na rua, “que parece que se preocupava com os que mais sofriam”. Pois são esses abandonados pelo poder à margem da sociedade que mais sensibilidade têm para analisar a verdadeira santidade de uma pessoa.
Nos primórdios do cristianismo, não era a Igreja, o Papa, que canonizava as pessoas. Era a própria comunidade cristã que decidia, às vezes já em vida, quem era santo e exemplo para os outros. Consta-me que o papa Francisco gostaria de voltar a essas origens e deixar que sejam as comunidades cristãs que decidam quem teve uma vida que mereça ser exaltada depois da sua morte.
Irmã Dulce, que como religiosa manteve sua visão moderna da mulher liberada que deve participar ativamente na vida pública, é canonizada justo neste momento em que a reivindicação da mulher por seus direitos e peculiaridades, sem discriminações, representa uma das grandes batalhas no mundo e particularmente no Brasil, um dos países com maior número de feminicídios, e que vive um momento de machismo e obscurantismo cultural e religioso.
Os símbolos são uma das grandes criações da inteligência humana. Foram eles que moveram o mundo para o bem ou para o mal. Do Brasil, hoje, onde o poder transformou os pobres e desassistidos em invisíveis, a nova Santa Irmã Dulce é o símbolo de uma nova resistência para recordar ao mundo e sobretudo aos cristãos em geral que são os pobres que acabam julgando o poder.
Conheci Irmã Dulce em julho de 1980, durante a primeira viagem do papa João Paulo II ao Brasil. Foi em Salvador, durante a missa campal do Pontífice. Eu havia viajado no seu avião como correspondente deste jornal na Itália e Vaticano. O Papa, na frente daquela multidão, chamou a religiosa ao altar onde celebrava a Eucaristia, abraçou-a e a abençoou. Os jornalistas estrangeiros não sabíamos quem era aquela freirinha privilegiada que arrastava visivelmente seu desgaste físico. Dela recordo, sobretudo, seu olhar profundo e grave. Seus olhos mais doces devia reservá-los aos invisíveis.
O campo minado da fiscalização ambiental no Brasil
Antônio tomou conhecimento da mensagem graças a um informante, em outubro do ano passado. O agente despertou a fúria de criminosos por fazer seu trabalho. Após flagrar um caso de exploração ilegal de madeira em sua área de atuação, ele ordenou a destruição do maquinário de propriedade dos infratores.
Trata-se de uma prática adotada por fiscais do meio ambiente nas situações em que não há formas de apreender os equipamentos. Prevista na Lei de Crimes Ambientais, de 1998, a medida foi regulamentada dez anos depois, por um decreto presidencial que visava a desestimular o crime ambiental.
A frágil estrutura do Judiciário nas regiões que concentram o desmatamento enfraquecia a efetividade da fiscalização ambiental. Pela média histórica, somente 5% do valor cobrado em multas pelo Ibama é efetivamente pago. O procurador da República Daniel Lôbo, que chefia o Ministério Público Federal em Rondônia, assinala a especial importância da prática no contexto de fragilidade orçamentária da autarquia.
"Quando derem estrutura para os órgãos locais retirarem os equipamentos, a melhor alternativa será a apreensão e venda posterior. Remover o maquinário gera um custo ao poder público, de diária e armazenamento no local. Mas, sobretudo, é arriscado. As equipes estão em uma situação de exposição a pessoas armadas”, afirma.
Especialistas consideram que a medida foi determinante para a queda nos indicadores do desmatamento no Brasil. Entre 2004 e 2014, a área desmatada na Amazônia caiu de 27 mil para 5 mil quilômetros quadrados.
Apesar disso, a DW Brasil apurou que, em abril deste ano, os fiscais do Ibama receberam uma orientação interna para interromper o procedimento de destruição de maquinário. A ordem foi repassada de maneira informal pela presidência do órgão.
A determinação coincidiu com a publicação de um vídeo, em abril, pelo senador Marcos Rogério (DEM), de Rondônia, em sua página oficial no Facebook. Nele, o presidente Jair Bolsonaro desautorizava uma ação do Ibama que destruiu caminhões e tratores de madeireiras no estado.
"Ontem, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, veio falar comigo com essa informação. Ele já mandou abrir um processo administrativo para apurar o responsável disso aí. Não é pra queimar nada, maquinário, trator, seja o que for, não é esse procedimento, não é essa a nossa orientação”, disse o presidente.
A reprimenda do presidente da República à atuação do Ibama foi mais um capítulo em uma série de ataques iniciada ainda na campanha eleitoral do ano passado. Em palanques Brasil afora, o então candidato Jair Bolsonaro disparou críticas em série aos órgãos de fiscalização ambiental.
"Não podem continuar admitindo uma fiscalização xiita por parte do ICMBio e do Ibama, prejudicando quem quer produzir”, afirmou durante evento de campanha em Rondônia.
Diferentes agentes ouvidos pela reportagem afirmam que o discurso de Bolsonaro teve um efeito imediato de agravamento da hostilidade dos criminosos, que ficaram cada vez mais à vontade para intimidar o trabalho de fiscalização.
"Foi como colocar fogo nos tambores de gasolina”, avalia Antônio. "A grande diferença desse governo é que, antes mesmo de ele entrar, já começou a ficar complicado para nós”.
Em julho deste ano, um caminhão-tanque que levava combustível para abastecer helicópteros do Ibama em uma operação em Rondônia foi incendiado, no município de Espigão do Oeste. Outros ataques semelhantes foram registrados no mesmo estado, além do Amazonas e Pará.
"O motorista comentou no posto onde abasteceu que prestava um serviço para o Ibama, e rapidamente a informação circulou. Os criminosos têm informantes em toda parte”, conta Antônio.
Ciente da vigilância constante, os cuidados vêm sendo redobrados para garantir a eficácia das operações e a segurança dos agentes. Em áreas urbanas, durante os deslocamentos para as áreas de infração, suas equipes ficam alojadas em postos policiais e levam a própria comida para evitar hotéis e restaurantes.
Na floresta, chegam a ficar acampados por três dias, somente com os alimentos que levam consigo. "O jeito é ficar esperto e agir com o mesmo ritmo, senão não consegue dar flagrante. Eles derrubam pontes e te impedem de avançar”, diz Antônio.
Suas equipes saem das bases do Ibama sem saber o destino. Há alguns meses, o coordenador passou a informar locais diferentes daqueles onde serão realizadas as operações ao lançar as diárias internamente. "Dentro do Ibama, tem gente vendendo informações sobre para onde você vai. É um problema antigo nosso”, denuncia.
Como resultado da vulnerabilidade crescente, muitos agentes optam por deixar de ir a campo ou solicitam transferência para locais menos conflagrados. Há quem dê baixa do serviço por problemas de saúde mental, decorrentes das ameaças.
Por sua vez, servidores de longa data correm para escapar das novas regras previdenciárias. Uma média de 15 servidores têm se aposentado a cada mês — um baque operacional para o Ibama, que não tem concursos desde 2009 e apresenta um déficit de 2 mil funcionários.
Em abril, Ricardo Salles anunciou uma redução de 24% no orçamento anual do órgão, na esteira de cortes de gastos feitos pelo governo em diversas áreas. Verbas do Fundo Amazônia, que garantiam a locação de carros para as operações, também estão ameaçadas.
"Minha equipe de nove pessoas pode ter só duas no ano que vem. Não sei como vamos ter condições de trabalhar”, diz um coordenador. Os efeitos já são sentidos. Em agosto, o MPF no Pará abriu inquérito para investigar a redução do número de fiscalizações ambientais na região nos meses anteriores.
"É uma soma do medo de sofrer represálias pelas destruições com a deslegitimação do trabalho do Ibama. Se o infrator é legitimado pelo governo, não vai ser o fiscal que irá contestar”, avalia um coordenador do órgão. "Além do fato de não haver lideranças legítimas nos estados e na sede”.
A DW Brasil apurou, ainda, que houve risco de boicote por funcionários do Ibama à atuação em apoio à operação de Garantia da Lei e Ordem (GLO) desencadeada pelo governo federal para conter a onda de incêndios criminosos na Amazônia, em agosto. A ação envolvia uma atuação conjunta com as Forças Armadas.
Um grupo expressivo de fiscais entendia o movimento do governo como uma tentativa de salvar o ministro Ricardo Salles no cargo, em meio à crescente pressão internacional.
A iniciativa foi demovida pela coordenação operacional do órgão. Além do compromisso com a sociedade, predominou a tese de que a atuação naquele contexto era fundamental para mostrar ao mundo a importância da atuação do Ibama como órgão especializado no combate a crimes ambientais.
No rescaldo da onda de queimadas, Ricardo Salles nomeou seis novos superintendentes estaduais do Ibama no início de setembro. Até então, 19 das 27 unidades regionais estavam sem representantes, após uma exoneração em massa conduzida pelo ministro em fevereiro.
No Pará, estado que lidera o desmatamento, o coronel da Polícia Militar Evandro Cunha ficou apenas uma semana no cargo. Ele foi exonerado após afirmar que iria cessar a destruição de equipamentos apreendidos em garimpos ilegais no estado.
"O trabalhador merece respeito, e terá o respeito do governo federal. Eu sou soldado e eu sei cumprir ordem, a ordem que recebi foi para parar com isso daí", declarou, durante audiência pública no município de Altamira.
Um quadro de semelhante precarização e vulnerabilidade é observado na atuação do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). A partir deste mês, apenas dois servidores atuarão sozinhos em cinco Unidades de Conservação de vasta extensão na Terra do Meio, um dos mais importantes blocos para a conservação da sociobiodiversidade do planeta.
"A situação das unidades de conservação da Amazônia é caótica, com algumas unidades à beira de fechar as portas. Faltam pessoas em todos os lugares e para tudo”, constata um servidor do órgão.
O quadro é ainda mais grave na Fundação Nacional do Índio (Funai), que tem um papel indireto na fiscalização ambiental ao atuar na defesa de terras indígenas demarcadas. A autarquia opera com 10% do orçamento desde janeiro. Em algumas unidades, os servidores sequer têm acesso a papel higiênico.
Há um mês, o indigenista Maxciel Pereira dos Santos foi assassinado com um tiro na nuca na região do Vale do Javari, local que abriga a maior concentração de povos indígenas isolados no mundo. Ele atuava junto à Funai há 12 anos. Nenhum servidor do órgão aceitou falar com a reportagem, pelo medo de represálias.
Deutsche Welle
A revolução dos bichos
Trata-se do título de famoso romance ("Animal Farm"). Segundo a Modern Library List, “um dos 100 melhores do Século XX”. Do escritor inglês George Orwell. Mesmo autor do clássico "1984". O livro trata das fraquezas humanas. Tudo começa quando o sr. Jones, proprietário de uma fazenda, esquece de dar a ração diária dos animais. Os jovens porcos Bola de Neve (Snowball) e Napoleão (Napoleon) lideram uma revolta. E os humanos acabam expulsos de lá. Porcos letrados criam 7 mandamentos. Para os animais poucos inteligentes, resumidos em só um: “Quatro patos bom, duas patas mau”. Mais importante é o último: “Todos os animais são iguais”. Só que, aos poucos, o poder inebria os líderes. Napoleão se torna um Ditador. E altera o lema da Revolução, que passa a ser: “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”.
Agora descobriu-se, entre os papéis de Orwell, um novo capítulo (não publicado) do livro. Sem que se saiba por que não foi acrescentado, nas edições seguintes. Nele temos que a corrupção se disseminou, com Napoleão, na Quinta dos Animais. A grana, que antes era de todos, passou a ir para o Partido dos Porcos. Ou foi engordar os bolsos da companheirada. O sr. Jones, por vingança (mais que por interesse público), denunciou esses enriquecimentos ilícitos. O MP ouviu. Porcos amigos começaram a ir em cana. Foi quando Napoleão decidiu reagir. E prendeu o sr. Jones. Sob acusação de ter sido visto, em restaurante próximo, saboreando uma galinha. Decidindo o Tribunal que a pena, para tão grave crime contra os animais, era a morte. O sr. Jones argumentou não haver, no CPP (Código Penal dos Porcos), tal crime. Deu em nada. Os Ministros decidiram que eles próprios, a partir de agora, é que fariam as leis. Em cada caso. E o pobre do sr. Jones acabou perdendo (literalmente) a cabeça.
Depois da execução, soube-se de conversas entre os magistrados do caso. No plenário do Tribunal dos Porcos. Um: “Esse tal sr. Jones queria o quê? Prender companheiros porcos? Ficou louco?”. Outro: “É uma lição boa para ninguém mais se meter conosco”. Um terceiro: “A força da Justiça vai pesar, agora, contra quem nos ameaça”. No final da sentença de morte, foi definida uma alteração no lema da Revolução, que passou a ser: “Todos os animais são iguais; mas porcos, e seus amigos, estão acima de todos”. O Presidente do Tribunal, encerrando a sessão, e olhando para as câmaras da TV Justiça com lágrimas nos olhos, sugeriu ainda um complemento, aplaudido freneticamente pelos Ministros presentes: “E porcos não poderão mais ser presos”.
P.S. A notícia desse novo capítulo do livro é falsa, claro.
José Paulo Cavalcanti Filho
Agora descobriu-se, entre os papéis de Orwell, um novo capítulo (não publicado) do livro. Sem que se saiba por que não foi acrescentado, nas edições seguintes. Nele temos que a corrupção se disseminou, com Napoleão, na Quinta dos Animais. A grana, que antes era de todos, passou a ir para o Partido dos Porcos. Ou foi engordar os bolsos da companheirada. O sr. Jones, por vingança (mais que por interesse público), denunciou esses enriquecimentos ilícitos. O MP ouviu. Porcos amigos começaram a ir em cana. Foi quando Napoleão decidiu reagir. E prendeu o sr. Jones. Sob acusação de ter sido visto, em restaurante próximo, saboreando uma galinha. Decidindo o Tribunal que a pena, para tão grave crime contra os animais, era a morte. O sr. Jones argumentou não haver, no CPP (Código Penal dos Porcos), tal crime. Deu em nada. Os Ministros decidiram que eles próprios, a partir de agora, é que fariam as leis. Em cada caso. E o pobre do sr. Jones acabou perdendo (literalmente) a cabeça.
Depois da execução, soube-se de conversas entre os magistrados do caso. No plenário do Tribunal dos Porcos. Um: “Esse tal sr. Jones queria o quê? Prender companheiros porcos? Ficou louco?”. Outro: “É uma lição boa para ninguém mais se meter conosco”. Um terceiro: “A força da Justiça vai pesar, agora, contra quem nos ameaça”. No final da sentença de morte, foi definida uma alteração no lema da Revolução, que passou a ser: “Todos os animais são iguais; mas porcos, e seus amigos, estão acima de todos”. O Presidente do Tribunal, encerrando a sessão, e olhando para as câmaras da TV Justiça com lágrimas nos olhos, sugeriu ainda um complemento, aplaudido freneticamente pelos Ministros presentes: “E porcos não poderão mais ser presos”.
P.S. A notícia desse novo capítulo do livro é falsa, claro.
José Paulo Cavalcanti Filho
Bolsonaro briga com Deus e o mundo
O presidente, que em breve criará o PES – Partido do Eu Sozinho –, deve mandar o general Hamilton Mourão para acompanhar, em seu lugar, a cerimônia no Vaticano, presidida pelo papa Francisco. O porta-voz da presidência da República, Otávio Rêgo Barros, foi solenemente ignorado nessa mudança de planos. Ele tinha dito que a presença de Bolsonaro em Roma reforçaria “a importância de o Brasil ser um Estado laico”. Ilusão. Não existe porta-voz que resista a Bolsonaro e seus caprichos.
Irmã Dulce, batizada Maria Rita Lopes de Souza Brito, era conhecida como “o anjo bom da Bahia”. Pensando bem, acho ótimo que Bolsonaro não vá a Roma. O papa não merece ser obrigado a recepcionar o presidente brasileiro. Suas piadas grosseiras e de baixo calão não cairiam bem no Vaticano, por mais coloquial que seja Francisco. Nada ali, nem o papa nem a Irmã Dulce nem seu objetivo de vida, tem a ver com o que Bolsonaro simboliza ou pensa.
Cada vez mais o presidente se mostra como é: intolerante, censor, brigão, obcecado por controle, assediador, autoritário. Espalha dissensão e sai dividindo tanto que um dia o resultado será zero. Amigos se tornam desafetos. Aliados se tornam adversários. Tudo por obra de uma personalidade desagradável, histriônica, que se compraz em humilhar e provocar.
Começo a ficar com pena de Huguinho, Zezinho e Luizinho. Ops, Flávio, Carlos e Eduardo. Esse último, coitado, estudou até altas horas da noite para ser sabatinado pelo Senado e não responder só sobre hambúrguer e turismo. “Tenho revisto episódios sobre a história do Brasil, como o que trata da nossa independência passando por Leopoldina, Bonifácio e Princesa Isabel”, escreveu em rede social. Isso aí, Eduardo. Prossegue. Parece, porém, que a embaixada em Washington não passou de história da carochinha, porque ninguém mais fala nisso.
Fico com pena dos três herdeiros, porque podem ter sofrido lavagem cerebral na infância e adolescência. São meros repetidores do pai. Tão brigões quanto. Agressivos. Arrogantes. Ostentam armas. Ofendem. Ameaçam. E por isso os irmãos têm levado pauladas a torto e a direito. O Major Olímpio, líder do PSL no Senado, afirmou que, se Eduardo e Flávio deixarem o PSL, será “um favor que fazem”, e fez um pedido a Carlos: “Não encher o saco”.
Agora, até os Estados Unidos de Donald Trump puxaram o tapete de Bolsonaro, adiando o acesso do Brasil à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Só quem entrará agora será, quem diria, a Argentina. E a Romênia. A amizade de Eduardo e Trump, cultivada pelo servilismo sorridente de Bolsonaro e pelas promessas de abrir a Amazônia a investidores americanos, não rendeu os frutos esperados. O Brasil vai ter que esperar quietinho sua vez.
Antes, só podia reclamar de Bolsonaro quem fosse mulher, negro, gay, ativista de direitos humanos, pacifista, índio, ambientalista, artista, professor universitário, cineasta, escritor, cientista, pobre, ateu. E claro, os 13 milhões de desempregados. Para o resto, estava tudo bem. Agora, o presidente resolveu não mais escolher inimigos pela orientação sexual ou viés ideológico. Todo mundo cai em desgraça com ele, até as santas. Só admite por perto os aduladores. E desconfia da própria sombra. Morô?
Uma alma atormentada!
Suporta um emprego que jamais acreditou que poderia ser seu, que jamais quis e que só disputou para ajudar os filhos a se elegerem. Seu sonho era aposentar-se e ir curtir o resto da vida.
É obrigado todos os dias, inclusive nos fins de semana, a decidir sobre assuntos que pouco entende ou que ignora por completo. Que martírio! E ainda zombam da sua falta de conhecimentos.
Nunca gostou de ler. Gostava de palavras cruzadas. Orgulha-se de ter criado algumas e de tê-las visto publicadas. Foi treinado para obedecer, não para dar ordens. E ordens sempre gritadas.
Apesar de viver protegido por dezenas de agentes de seguranças, e de morar num palácio blindado contra qualquer ameaça, guarda um revólver na mesinha de cabeceira da cama ao alcance da mão.
Não tentaram matá-lo uma vez? Por que não tentarão novamente? Seu ofício é contrariar interesses – menos os da sua família. Daí o inseparável colete a prova de balas. Daí o paranoico que se tornou.
Sofre de insônia crônica. Atravessa madrugadas no apertado closet do quarto. Enquanto a mulher dorme e ronca baixinho, ele vasculha as redes sociais para saber o que falam a seu respeito.
Que vida! Que alma atormentada! Por que simplesmente não pede as contas e vai pescar? Desde que não seja em área proibida. Por sinal, onde está Queiroz, melhor pescador do que ele?
'Estamos assistindo a uma ofensiva final contra os povos indígenas'
Um dos mais influentes antropólogos do planeta, Eduardo Viveiros de Castro não se dá tanta importância. “Talvez seja uma conjunção aleatória, um contingente de fatores que fez com que eu me tornasse uma pessoa em evidência dentro da academia e, depois, fora”, diz com a franqueza habitual.
Escolhido pelos leitores aliados da Agência Pública, parceiro do EL PAÍS, como entrevistado do mês, Viveiros de Castro recebeu na semana passada nossos repórteres para uma conversa de mais de duas horas, em seu apartamento, no Rio de Janeiro. A sua primeira entrevista após a eleição de Jair Bolsonaro havia sido aceita com uma dose de contragosto. “Não tenho visões especialmente inéditas e profundas sobre tudo o que está acontecendo. Estou apenas perplexo, como todo mundo”, disse, ao descrever o cenário atual como “um momento em que a palavra perdeu o fôlego, inclusive o valor. A gente não consegue mais distinguir a verdade da mentira”. Para ele, a verdade se tornou inacreditável.
Apesar das necessárias ressalvas, Viveiros de Castro conversou com a Pública sobre diferentes temas da atualidade — da resistência indígena à destruição da Amazônia. Do Governo Lula-Dilma a Bolsonaro e os militares. Da reforma agrária a Belo Monte. Do terraplanismo à mamadeira de piroca. Da questão climática ao fim do mundo. No início do papo, ao tentar classificar sua perplexidade, ele afirma: “A gente chegou numa situação no Brasil em que você tem que usar um vocabulário da psicopatologia”. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Um sujeito que o senhor admira, que é o Claude Lévi-Strauss, tem uma frase assim: “Meu desejo é um pouco mais de respeito para o mundo que começou sem o ser humano e vai terminar sem ele. Isso é algo que sempre deveríamos ter presente”. Até que ponto o que ele diz se refere ao momento que a gente está vivendo?
Essa frase está num livro publicado em 1955, Tristes trópicos, o livro talvez mais conhecido dele fora da antropologia mais especializada. É um livro que reflete várias coisas, desde um certo pessimismo filosófico muito importante dentro da imaginação lévi-straussiana, como uma observação, em primeiro lugar, absolutamente verdadeira. É interessante como é uma observação que é, digamos assim, uma obviedade, porque o mundo começou sem o homem e vai terminar sem ele, e, ao mesmo tempo é uma obviedade que precisa ser lembrada. Primeiro porque é em cima do esquecimento dela que muitas vezes se constroem vidas e, em segundo lugar, porque nesse momento em particular algo que foi dito há 50 anos, 60 anos ganha, de repente, uma atualidade até certo ponto inesperada.
E mesmo que o Lévi-Strauss já tenha advertido para o fato de que a marcha da chamada civilização ocidental, necessariamente, envolvia uma destruição de suas próprias condições materiais de existência e, portanto, ela era um projeto civilizacional suicida, ele frequentemente localiza mais especificamente na civilização ocidental de origem europeia essa ideia de que é uma civilização que consome quantidades absurdas de matéria e energia, e que está produzindo entropia, está produzindo desorganização do cosmos terrestre e que, portanto, não poderá prosseguir dessa forma. Ela, na verdade, está colaborando para o fim da espécie, num certo sentido.
Essa ideia de que o mundo começou sem o homem e que, sabemos bem, vai terminar sem ele, toda questão diz respeito a quão rápido vai ser esse término. Vai terminar quando sem ele? A impressão que se tem é que esse término está se aproximando de nós com mais velocidade do que se imaginava. Mas, ainda que isso seja verdade, a ideia de que a crise atual, a mudança climática, a crise de todos os sistemas geofísicos, geoquímicos, do planeta, implique, necessariamente, a desaparição da espécie humana, talvez seja um pouco exagerado dizer isso. Porque é provável que não desapareça toda a espécie e que as condições de vida vão ser muito mais difíceis do que elas foram nos últimos 10.000 anos, que é o tempo que se tem de história, o chamado Neolítico da história, essa fase climática dentro da qual todas as coisas das quais nós nos orgulhamos enquanto civilização surgiram: escrita, cidade, artes etc.
E essas condições vão, muito provavelmente, implicar um choque populacional na espécie que não se sabe exatamente quando, como e o que vai acarretar. Então, a frase do Lévi-Strauss é uma frase sombria, sobretudo, porque ganhou uma urgência, uma qualidade que talvez não tivesse em 1955, e pudesse ser vista como uma frase poética — sombria, mas apenas poética. O tempo verbal se tornou, de repente, mais complicado. Não é, talvez, “vai terminar”, mas “está terminando”.
Em algumas entrevistas, já vi o senhor declarar que é um pessimista, mas em que momento da sua trajetória o senhor foi menos pessimista? E como o senhor se caracterizaria hoje?
Acho que sou pessimista, sim, em vários níveis e de maneiras diferentes. Num certo plano, sou pessimista num sentido que o Lévi-Strauss era pessimista ao falar que a espécie estava colaborando com sua própria extinção, a partir dos representantes da espécie que se consideram os mais avançados, os mais evoluídos, na vanguarda, e que são justamente aqueles que estão contribuindo da maneira mais radical para a deterioração das condições materiais de sobrevivência da espécie.
Em outro sentido, sou pessimista pois não vejo com grande esperança a capacidade dos Estados-nação, dos Governos mundiais, de efetivamente mudar com a radicalidade que se impõem as condições de existência das sociedades avançadas — em particular, as tecnologicamente avançadas — para que você diminua a velocidade de deterioração do sistema termodinâmico da Terra.
Então, é um pessimismo num sentido de que não ponho muita fé na passagem da racionalidade individual, isto é, pessoas que são capazes de perceber que as coisas estão indo muito mal do ponto de vista das condições de existência, para a racionalidade coletiva e, portanto, para que movimentos sociais, governo, ONU, seja quem for, efetivamente tomem medidas que envolvam uma mudança drástica, radical, dramática, do modo de vida que nós consideramos como sendo o ideal e que, entretanto, é precisamente aquele que está produzindo a destruição do planeta.
Tô falando de carro, tô falando de petróleo, tô falando de uso de energia elétrica, tô falando do consumo de energia, seja ela fóssil, seja ela de outras fontes, o consumo em geral, per capita, de energia, o desperdício, produção de dejetos e assim por diante.
É nesse sentido que eu sou pessimista.
Além do que nós estamos vendo algo que ninguém imaginava, talvez, que é uma maré fascista mundial encabeçada pela principal potência mundial [os Estados Unidos], em breve, segunda potência mundial. A outra [China] sempre foi o que é, há 5.000 anos, sempre foi um regime autocrático, sempre foi um regime imperial, num certo sentido.
O Brasil, pra mim, é um grande motivo de pessimismo, desde o fato de nós jamais acertarmos as contas com a ditadura — é uma vergonha o Brasil não ter feito o que fez a Argentina, o Chile... — e o fato de que nós vivemos — e hoje está mais claro do que há dez anos — como uma democracia tutelada, consentida pelos militares até certo ponto. Desde a proclamação da República foi mais ou menos sempre isso que aconteceu. O que é mais patético ainda, porque saímos de uma monarquia estrangeira para uma República tutelada pelos militares. Então, realmente não temos muito o que comemorar.
De outro lado, esse é um país que continua marcado por uma estrutura profunda da sua natureza, a escravidão. Que continua, de certa maneira, girando em torno de um modo de ser, de pensar, de agir, que se contém à memória da escravidão. Não só o racismo, mas a relação do poder público do Governo com as populações negras, pobres, do Brasil, o genocídio entusiasmado praticado por governantes.
E agora a gente chegou numa situação no Brasil em que você tem que usar um vocabulário da psicopatologia para falar dos que estão no Governo. Esse governador [do Rio, Wilson Witzel] é um psicopata, esse presidente é louco, e coisa desse gênero. Cada vez mais você vê um vocabulário… “As pessoas estão loucas.” “Isso é loucura.” Então, o que que aconteceu para que de repente a política tivesse virado na psicopatologia?
É o que me pergunto todo dia.
Tem que chamar um psicanalista para fazer análise política hoje. É que nem o Reich [Wilhelm Reich, autor e psicanalista] fez do fascismo. Para analisar isso aqui, só uma pessoa que trabalha com questões de psicopatologia.
Em 2013, eu tinha 23 anos e foi um momento de certa empolgação com o momento. E hoje se vê muito a análise — principalmente vindo da esquerda mais petista que estava no poder — de que, de alguma maneira, os protestos iniciaram uma onda de acontecimentos que resultaria no Governo que está hoje.
Você tinha uma situação em que o PT se comportou de uma maneira, no meu entender, completamente equivocada. Em vez de incorporar as bandeiras que estavam sendo levantadas em 2013, nas jornadas, ele soltou uma Garantia da Lei e da Ordem e começou a se comportar como se estivesse diante de baderneiros, terroristas, seja lá o que for. Com isso, ele jogou o movimento nos braços da direita. A direita se tornou revolucionária e a esquerda virou conservadora.
Entendendo-se o PT como um partido de esquerda, que eu sempre achei uma associação um pouco apressada; só no Brasil se diz que o Lula é um personagem da extrema-esquerda, quando na verdade o PT é um partido social-democrata, enquanto chamar o PSDB de um partido social-democrata é um absurdo, porque é um partido de centro-direita.
O projeto do PT era, na verdade, melhorar as condições de vida da população brasileira sem tocar nas chamadas relações de produção e, se possível — e ele até fez isso —, sem tocar nos lucros da classe dominante, do grande capital. Tanto é que a burguesia, os bancos, o agronegócio, todos eles lucraram muito, se deram muito bem durante o Governo do PT. Então, o que o PT queria era simplesmente que caísse mais migalhas da mesa no chão para que o povo pudesse comer mais dessas migalhas. Mas nunca pensou em pegar o bolo, dividir e entregar, redistribuir o bolo radicalmente. Você tinha uma redistribuição moderada e, sobretudo, sem meter a mão no bolso dos ricos.
Como é que se conseguiria fazer um projeto de melhorar as condições de vida da porção mais miserável da população brasileira sem mexer no bolso dos ricos? Tinha que tirar de algum lugar. Você tirou de onde? Da natureza. Das florestas, das águas. Aí aumenta desmatamento, aumenta a exploração da Amazônia, a devastação da Amazônia, aumentam os grandes projetos que vão destruir organizações sociais tradicionais, as populações tradicionais.
Eu acho que o PT cometeu um erro histórico, e acho que o principal foi o de não ter assumido o espírito das jornadas de 2013 e, ao contrário, ter se colocado do lado da polícia, literalmente, e com isso jogou o movimento na mão da direita oportunista e na mão da fração considerável da classe média, que é reacionária, que sempre foi admiradora da ditadura, que sempre saiu na rua levantando cruzes e bandeiras, na Marcha pela Família com Deus pela Liberdade, vestindo camisa do Brasil.
Isso só tirou esse pessoal do armário, no qual eles estavam desde o fim da ditadura e, sobretudo, depois que o PT ganhou a eleição em 2002. Ganhou, aliás, apenas porque o PT se obrigou a fazer concessões. A Carta aos Brasileiros do Lula, em 2002, falou: não vamos tocar no sistema. E, apesar disso, ele [o PT] foi apeado do governo por um golpe. Em parte por causa, evidente, da crise econômica mundial.
De fato eu não sou especialmente otimista, acho que a gente nunca esteve tão mal, do ponto de vista político, quanto agora. A situação é propriamente surreal. Eu há pouco tempo fiz uma brincadeira nas redes sociais dizendo que o sucesso nas fake news no Brasil se deve ao fato de que a verdade se tornou inacreditável. As notícias verdadeiras são inacreditáveis, então você acredita nas falsas.
O Senado chamou o Steve Bannon pra falar no Senado. Isso é inacreditável. O Bolsonaro fala que o garimpo é fantástico e tem que acabar com os índios e não sei o quê. Isso é inacreditável. Então, você tem que acreditar em mentiras. Está mais fácil acreditar em mamadeira de piroca do que no Steve Bannon.
Tem uma entrevista que o Celso Furtado deu para a revista Caros Amigos antes da primeira eleição do Lula [2002]. E ele disse que, da visão dele, seria uma tarefa fundamental do PT, se eleito, tentar impedir o processo de desagregação do Brasil. O senhor já discorreu um pouco disso, mas quais outros pecados o PT cometeu nesse caminho? E Belo Monte?
Primeiro, eu queria fazer uma ressalva. Não é nem dizer que não é o momento de fazer essas críticas, mas é questão de dizer que perto do que está aí o PT era o paraíso, em termos de qualidade das relações políticas, relações sociais. Aliás, com toda a picaretagem, a mamata, a propina, a negociação no Congresso, o mensalão e tudo, que o PT fez, não foi o primeiro partido de esquerda a fazer isso na história.
Ele fez um pacto com o diabo para poder governar, e o diabo cobrou a conta, como sempre cobra.
Com o impeachment foi isso. Ele fez um pacto com as forças mais reacionárias, mais corruptas do sistema político para poder governar, e conseguiu isso até certo ponto. Dali pra frente, a conta veio. E a conta vem da maneira mais atroz, mais absurda, essa prisão do Lula, essa exposição do fato de que o sistema jurídico é envenenado por pessoas de má qualidade ideológica, de má qualidade cultural e de má qualidade política.
Isso tudo, evidentemente, faz com que a gente tenha que criticar o PT, mas dizendo “olha, vejam bem”. Lula livre pra começar — essa eleição foi fraudada nesse sentido de que o Lula foi preso para evitar que ele ganhasse. Nem todo mundo que votaria no Lula — e ele teria ganho em primeiro turno — era petista, e todo mundo sabe. Assim como nem todo mundo que votou no Bolsonaro é bolsominion, mas muitas das pessoas que votaram no Bolsonaro teriam votado no Lula se o Lula estivesse solto.
Isso, em parte, passa por um certo imaginário brasileiro que envolve a figura do líder poderoso, do líder salvador, que foi transferida do Lula para o Bolsonaro, ainda que eles encarnassem figuras muito diferentes ao representar a esperança. O Lula era, essencialmente, o pai dos pobres, de alguma forma, o Bolsa Família, e o outro é, essencialmente, a figura do capitão, do policial que vai matar, prender e arrebentar, como dizia o Figueiredo. E foi o policial que ganhou.
Estou usando “o policial” para não usar outra palavra, dos amigos dele, pessoal que sai em fotografia com ele em tudo que é lugar. Então nós estamos numa situação de um regime criminoso. Não sei como definir de outra forma. Não estou falando da criminalidade clássica da política, que é a criminalidade dos contratos, dos grupos de favorecimento, que sempre houve e que o PT também praticou, mas numa criminalidade num sentido de porta de delegacia, criminalidade de assassinato, extorsão de populações pobres… Essa criminalidade está no poder. Isso é uma coisa inacreditável.
E está no poder, em parte, com o apoio e, em parte, com a perplexidade do Judiciário, que está aparelhando todo o sistema, toda a máquina pública, com as piores pessoas possíveis.
Você tem uma espécie de critério que é simples: dado um determinado ministério, alguma tal secretaria, quem é a pior pessoa possível pra colocar ali? É essa pessoa que vai.
Então, você tem uma espécie de perversidade, e perversidade quase no sentido psicopatológico mesmo, por isso que falei em psicopatia. É uma espécie de perversidade de você colocar exatamente a pessoa inimiga daquele tema para tocar a política de Estado sobre aquele tema.
Isso está acontecendo no meio ambiente, nos direitos humanos, o direito da mulher, da família, está acontecendo, de certa maneira, na economia.
E Belo Monte?
Bom, uma das grandes divergências, um dos grandes problemas que eu tenho com o PT é Belo Monte, que foi enfiada pela garganta adentro dos ribeirinhos, dos indígenas da região, pelo Lula, pela Dilma. Então, eu não consigo aceitar um partido, um governo que fez Belo Monte. Daí não se segue que eu tenha que aceitar o que está no poder agora, muito pelo contrário, mas Belo Monte não tem perdão.
Eu trabalhei lá, conheço lá, não tem perdão o que eles fizeram ali. Aquilo representa uma ideia de Brasil em que, num certo sentido, há uma continuidade em algum nível entre o projeto do PT e o projeto desse governo no que diz respeito à relação com a Amazônia, com os povos tradicionais, com o Brasil profundo.
Tem que modernizar, tem que civilizar, tem que industrializar, tem que derrubar, tem que gerar renda, tem que gerar valor, gerar emprego, e a gente ouve isso há séculos e só vê o pessoal se fodendo.
Lula livre, sim; Belo Monte, não. Belo Monte jamais.
O Governo Bolsonaro elegeu alguns inimigos diretos, seja territorialmente, seja de pessoas ou grupos sociais. Estou falando da Amazônia e dos indígenas. Por que este governo tem tanto medo dos índios?
O problema dos índios, para esse governo e para as frações da sociedade brasileira que ele representa — em particular, o grande capital, o agronegócio —, é que as terras dos índios não estão no mercado fundiário. E o projeto desse governo é de privatizar 100%. Se possível, o Brasil inteiro.
Parque nacional, reserva ecológica, todas as terras que têm uso especial estão na mira desse governo. Daí a importância do Ministério do Meio Ambiente para destruir os sistemas de terras protegidas e para o ataque aos povos indígenas. Esse ataque, na verdade, exprime um desejo de transformar o Brasil inteiro em propriedade privada.
É um Estado cujo objetivo é retirar do Estado a sua soberania efetiva sobre seu território, ou melhor, transformar a soberania em apenas poder de supervisão, mas entregar as terras ao capital privado, seja nacional, seja estrangeiro.
Daí essa conversa para boi dormir dos militares: “Ah, a invasão da Amazônia pelos estrangeiros”. Eles estão vendendo as terras da Amazônia para um monte de proprietário estrangeiro, o problema deles não é esse. Isso é mentira.
O problema dos índios é que as terras dos índios são terras da União, e o objetivo do governo é privatizar. E mais do que do governo, das classes que o governo representa, das quais ele é o jagunço, porque é isso que ele é: o jagunço da burguesia.
O segundo motivo, acho, está numa declaração absurda que o Mourão, o vice-presidente, deu há pouco tempo, louvando as capitanias hereditárias e os bandeirantes, dizendo que aquilo é o melhor da nossa origem, o melhor da nossa história, empreendedorismo e tal.
Isso soa como uma provocação, uma provocação especificamente anti-indígena, porque ele está celebrando o genocídio ameríndio, celebrando o bandeirante, que é uma figura que foi transformada, evidentemente, a partir de São Paulo, em herói da nacionalidade, quando o que ele fez, efetivamente, foi arrancar o Brasil da mão dos seus ocupantes originais. Não conseguiu arrancar todos, ainda tem 13% aí de terra [indígena].
E o objetivo, agora, é completar o processo iniciado com a invasão da América pelos portugueses. Isso é muito claro.
Os militares, agora, estão se identificando com a Europa. É muito estranho, se você for olhar a composição racial das Forças Armadas brasileiras. Não vai achar muito louro. A começar pelo Mourão, que é mestiço de índio. Mas pelo jeito não gosta.
Então, você tem uma concepção que vê o Brasil como um país essencialmente europeu, num sentido assim, do que é o melhor da nossa formação, da nossa história. Como diz o Mourão, o melhor é a Europa. É isso que ele está dizendo.
Talvez o momento culminante do filme Bacurau, que está fazendo sucesso, é o momento do diálogo em que os gringos assassinos dizem pros dois puxa-sacos brasileiros que eles não são brancos coisa nenhuma. O Mourão, na verdade, estava falando como aquele motociclista: o melhor da nossa história são as capitanias. Aí vem o gringo: “Pra começar, português nem é branco. E, segundo, você não é nem português”. Então, bum!
E as celebrações do caráter mestiço, no meu entender, são pura demonstração de hipocrisia. O que se chama de mestiçagem no Brasil, o nome certo é branqueamento.
Então, você tem um ódio do não branco no Brasil, racismo contra os negros, e um racismo dobrado, de um racismo territorial, em relação aos índios. Essas são as razões principais, eu diria.
Escolhido pelos leitores aliados da Agência Pública, parceiro do EL PAÍS, como entrevistado do mês, Viveiros de Castro recebeu na semana passada nossos repórteres para uma conversa de mais de duas horas, em seu apartamento, no Rio de Janeiro. A sua primeira entrevista após a eleição de Jair Bolsonaro havia sido aceita com uma dose de contragosto. “Não tenho visões especialmente inéditas e profundas sobre tudo o que está acontecendo. Estou apenas perplexo, como todo mundo”, disse, ao descrever o cenário atual como “um momento em que a palavra perdeu o fôlego, inclusive o valor. A gente não consegue mais distinguir a verdade da mentira”. Para ele, a verdade se tornou inacreditável.
Apesar das necessárias ressalvas, Viveiros de Castro conversou com a Pública sobre diferentes temas da atualidade — da resistência indígena à destruição da Amazônia. Do Governo Lula-Dilma a Bolsonaro e os militares. Da reforma agrária a Belo Monte. Do terraplanismo à mamadeira de piroca. Da questão climática ao fim do mundo. No início do papo, ao tentar classificar sua perplexidade, ele afirma: “A gente chegou numa situação no Brasil em que você tem que usar um vocabulário da psicopatologia”. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Um sujeito que o senhor admira, que é o Claude Lévi-Strauss, tem uma frase assim: “Meu desejo é um pouco mais de respeito para o mundo que começou sem o ser humano e vai terminar sem ele. Isso é algo que sempre deveríamos ter presente”. Até que ponto o que ele diz se refere ao momento que a gente está vivendo?
Essa frase está num livro publicado em 1955, Tristes trópicos, o livro talvez mais conhecido dele fora da antropologia mais especializada. É um livro que reflete várias coisas, desde um certo pessimismo filosófico muito importante dentro da imaginação lévi-straussiana, como uma observação, em primeiro lugar, absolutamente verdadeira. É interessante como é uma observação que é, digamos assim, uma obviedade, porque o mundo começou sem o homem e vai terminar sem ele, e, ao mesmo tempo é uma obviedade que precisa ser lembrada. Primeiro porque é em cima do esquecimento dela que muitas vezes se constroem vidas e, em segundo lugar, porque nesse momento em particular algo que foi dito há 50 anos, 60 anos ganha, de repente, uma atualidade até certo ponto inesperada.
E mesmo que o Lévi-Strauss já tenha advertido para o fato de que a marcha da chamada civilização ocidental, necessariamente, envolvia uma destruição de suas próprias condições materiais de existência e, portanto, ela era um projeto civilizacional suicida, ele frequentemente localiza mais especificamente na civilização ocidental de origem europeia essa ideia de que é uma civilização que consome quantidades absurdas de matéria e energia, e que está produzindo entropia, está produzindo desorganização do cosmos terrestre e que, portanto, não poderá prosseguir dessa forma. Ela, na verdade, está colaborando para o fim da espécie, num certo sentido.
Essa ideia de que o mundo começou sem o homem e que, sabemos bem, vai terminar sem ele, toda questão diz respeito a quão rápido vai ser esse término. Vai terminar quando sem ele? A impressão que se tem é que esse término está se aproximando de nós com mais velocidade do que se imaginava. Mas, ainda que isso seja verdade, a ideia de que a crise atual, a mudança climática, a crise de todos os sistemas geofísicos, geoquímicos, do planeta, implique, necessariamente, a desaparição da espécie humana, talvez seja um pouco exagerado dizer isso. Porque é provável que não desapareça toda a espécie e que as condições de vida vão ser muito mais difíceis do que elas foram nos últimos 10.000 anos, que é o tempo que se tem de história, o chamado Neolítico da história, essa fase climática dentro da qual todas as coisas das quais nós nos orgulhamos enquanto civilização surgiram: escrita, cidade, artes etc.
E essas condições vão, muito provavelmente, implicar um choque populacional na espécie que não se sabe exatamente quando, como e o que vai acarretar. Então, a frase do Lévi-Strauss é uma frase sombria, sobretudo, porque ganhou uma urgência, uma qualidade que talvez não tivesse em 1955, e pudesse ser vista como uma frase poética — sombria, mas apenas poética. O tempo verbal se tornou, de repente, mais complicado. Não é, talvez, “vai terminar”, mas “está terminando”.
Em algumas entrevistas, já vi o senhor declarar que é um pessimista, mas em que momento da sua trajetória o senhor foi menos pessimista? E como o senhor se caracterizaria hoje?
Acho que sou pessimista, sim, em vários níveis e de maneiras diferentes. Num certo plano, sou pessimista num sentido que o Lévi-Strauss era pessimista ao falar que a espécie estava colaborando com sua própria extinção, a partir dos representantes da espécie que se consideram os mais avançados, os mais evoluídos, na vanguarda, e que são justamente aqueles que estão contribuindo da maneira mais radical para a deterioração das condições materiais de sobrevivência da espécie.
Em outro sentido, sou pessimista pois não vejo com grande esperança a capacidade dos Estados-nação, dos Governos mundiais, de efetivamente mudar com a radicalidade que se impõem as condições de existência das sociedades avançadas — em particular, as tecnologicamente avançadas — para que você diminua a velocidade de deterioração do sistema termodinâmico da Terra.
Então, é um pessimismo num sentido de que não ponho muita fé na passagem da racionalidade individual, isto é, pessoas que são capazes de perceber que as coisas estão indo muito mal do ponto de vista das condições de existência, para a racionalidade coletiva e, portanto, para que movimentos sociais, governo, ONU, seja quem for, efetivamente tomem medidas que envolvam uma mudança drástica, radical, dramática, do modo de vida que nós consideramos como sendo o ideal e que, entretanto, é precisamente aquele que está produzindo a destruição do planeta.
Tô falando de carro, tô falando de petróleo, tô falando de uso de energia elétrica, tô falando do consumo de energia, seja ela fóssil, seja ela de outras fontes, o consumo em geral, per capita, de energia, o desperdício, produção de dejetos e assim por diante.
É nesse sentido que eu sou pessimista.
Além do que nós estamos vendo algo que ninguém imaginava, talvez, que é uma maré fascista mundial encabeçada pela principal potência mundial [os Estados Unidos], em breve, segunda potência mundial. A outra [China] sempre foi o que é, há 5.000 anos, sempre foi um regime autocrático, sempre foi um regime imperial, num certo sentido.
O Brasil, pra mim, é um grande motivo de pessimismo, desde o fato de nós jamais acertarmos as contas com a ditadura — é uma vergonha o Brasil não ter feito o que fez a Argentina, o Chile... — e o fato de que nós vivemos — e hoje está mais claro do que há dez anos — como uma democracia tutelada, consentida pelos militares até certo ponto. Desde a proclamação da República foi mais ou menos sempre isso que aconteceu. O que é mais patético ainda, porque saímos de uma monarquia estrangeira para uma República tutelada pelos militares. Então, realmente não temos muito o que comemorar.
De outro lado, esse é um país que continua marcado por uma estrutura profunda da sua natureza, a escravidão. Que continua, de certa maneira, girando em torno de um modo de ser, de pensar, de agir, que se contém à memória da escravidão. Não só o racismo, mas a relação do poder público do Governo com as populações negras, pobres, do Brasil, o genocídio entusiasmado praticado por governantes.
E agora a gente chegou numa situação no Brasil em que você tem que usar um vocabulário da psicopatologia para falar dos que estão no Governo. Esse governador [do Rio, Wilson Witzel] é um psicopata, esse presidente é louco, e coisa desse gênero. Cada vez mais você vê um vocabulário… “As pessoas estão loucas.” “Isso é loucura.” Então, o que que aconteceu para que de repente a política tivesse virado na psicopatologia?
É o que me pergunto todo dia.
Tem que chamar um psicanalista para fazer análise política hoje. É que nem o Reich [Wilhelm Reich, autor e psicanalista] fez do fascismo. Para analisar isso aqui, só uma pessoa que trabalha com questões de psicopatologia.
Em 2013, eu tinha 23 anos e foi um momento de certa empolgação com o momento. E hoje se vê muito a análise — principalmente vindo da esquerda mais petista que estava no poder — de que, de alguma maneira, os protestos iniciaram uma onda de acontecimentos que resultaria no Governo que está hoje.
Você tinha uma situação em que o PT se comportou de uma maneira, no meu entender, completamente equivocada. Em vez de incorporar as bandeiras que estavam sendo levantadas em 2013, nas jornadas, ele soltou uma Garantia da Lei e da Ordem e começou a se comportar como se estivesse diante de baderneiros, terroristas, seja lá o que for. Com isso, ele jogou o movimento nos braços da direita. A direita se tornou revolucionária e a esquerda virou conservadora.
Entendendo-se o PT como um partido de esquerda, que eu sempre achei uma associação um pouco apressada; só no Brasil se diz que o Lula é um personagem da extrema-esquerda, quando na verdade o PT é um partido social-democrata, enquanto chamar o PSDB de um partido social-democrata é um absurdo, porque é um partido de centro-direita.
O projeto do PT era, na verdade, melhorar as condições de vida da população brasileira sem tocar nas chamadas relações de produção e, se possível — e ele até fez isso —, sem tocar nos lucros da classe dominante, do grande capital. Tanto é que a burguesia, os bancos, o agronegócio, todos eles lucraram muito, se deram muito bem durante o Governo do PT. Então, o que o PT queria era simplesmente que caísse mais migalhas da mesa no chão para que o povo pudesse comer mais dessas migalhas. Mas nunca pensou em pegar o bolo, dividir e entregar, redistribuir o bolo radicalmente. Você tinha uma redistribuição moderada e, sobretudo, sem meter a mão no bolso dos ricos.
Como é que se conseguiria fazer um projeto de melhorar as condições de vida da porção mais miserável da população brasileira sem mexer no bolso dos ricos? Tinha que tirar de algum lugar. Você tirou de onde? Da natureza. Das florestas, das águas. Aí aumenta desmatamento, aumenta a exploração da Amazônia, a devastação da Amazônia, aumentam os grandes projetos que vão destruir organizações sociais tradicionais, as populações tradicionais.
Eu acho que o PT cometeu um erro histórico, e acho que o principal foi o de não ter assumido o espírito das jornadas de 2013 e, ao contrário, ter se colocado do lado da polícia, literalmente, e com isso jogou o movimento na mão da direita oportunista e na mão da fração considerável da classe média, que é reacionária, que sempre foi admiradora da ditadura, que sempre saiu na rua levantando cruzes e bandeiras, na Marcha pela Família com Deus pela Liberdade, vestindo camisa do Brasil.
Isso só tirou esse pessoal do armário, no qual eles estavam desde o fim da ditadura e, sobretudo, depois que o PT ganhou a eleição em 2002. Ganhou, aliás, apenas porque o PT se obrigou a fazer concessões. A Carta aos Brasileiros do Lula, em 2002, falou: não vamos tocar no sistema. E, apesar disso, ele [o PT] foi apeado do governo por um golpe. Em parte por causa, evidente, da crise econômica mundial.
De fato eu não sou especialmente otimista, acho que a gente nunca esteve tão mal, do ponto de vista político, quanto agora. A situação é propriamente surreal. Eu há pouco tempo fiz uma brincadeira nas redes sociais dizendo que o sucesso nas fake news no Brasil se deve ao fato de que a verdade se tornou inacreditável. As notícias verdadeiras são inacreditáveis, então você acredita nas falsas.
O Senado chamou o Steve Bannon pra falar no Senado. Isso é inacreditável. O Bolsonaro fala que o garimpo é fantástico e tem que acabar com os índios e não sei o quê. Isso é inacreditável. Então, você tem que acreditar em mentiras. Está mais fácil acreditar em mamadeira de piroca do que no Steve Bannon.
Tem uma entrevista que o Celso Furtado deu para a revista Caros Amigos antes da primeira eleição do Lula [2002]. E ele disse que, da visão dele, seria uma tarefa fundamental do PT, se eleito, tentar impedir o processo de desagregação do Brasil. O senhor já discorreu um pouco disso, mas quais outros pecados o PT cometeu nesse caminho? E Belo Monte?
Primeiro, eu queria fazer uma ressalva. Não é nem dizer que não é o momento de fazer essas críticas, mas é questão de dizer que perto do que está aí o PT era o paraíso, em termos de qualidade das relações políticas, relações sociais. Aliás, com toda a picaretagem, a mamata, a propina, a negociação no Congresso, o mensalão e tudo, que o PT fez, não foi o primeiro partido de esquerda a fazer isso na história.
Ele fez um pacto com o diabo para poder governar, e o diabo cobrou a conta, como sempre cobra.
Com o impeachment foi isso. Ele fez um pacto com as forças mais reacionárias, mais corruptas do sistema político para poder governar, e conseguiu isso até certo ponto. Dali pra frente, a conta veio. E a conta vem da maneira mais atroz, mais absurda, essa prisão do Lula, essa exposição do fato de que o sistema jurídico é envenenado por pessoas de má qualidade ideológica, de má qualidade cultural e de má qualidade política.
Isso tudo, evidentemente, faz com que a gente tenha que criticar o PT, mas dizendo “olha, vejam bem”. Lula livre pra começar — essa eleição foi fraudada nesse sentido de que o Lula foi preso para evitar que ele ganhasse. Nem todo mundo que votaria no Lula — e ele teria ganho em primeiro turno — era petista, e todo mundo sabe. Assim como nem todo mundo que votou no Bolsonaro é bolsominion, mas muitas das pessoas que votaram no Bolsonaro teriam votado no Lula se o Lula estivesse solto.
Isso, em parte, passa por um certo imaginário brasileiro que envolve a figura do líder poderoso, do líder salvador, que foi transferida do Lula para o Bolsonaro, ainda que eles encarnassem figuras muito diferentes ao representar a esperança. O Lula era, essencialmente, o pai dos pobres, de alguma forma, o Bolsa Família, e o outro é, essencialmente, a figura do capitão, do policial que vai matar, prender e arrebentar, como dizia o Figueiredo. E foi o policial que ganhou.
Estou usando “o policial” para não usar outra palavra, dos amigos dele, pessoal que sai em fotografia com ele em tudo que é lugar. Então nós estamos numa situação de um regime criminoso. Não sei como definir de outra forma. Não estou falando da criminalidade clássica da política, que é a criminalidade dos contratos, dos grupos de favorecimento, que sempre houve e que o PT também praticou, mas numa criminalidade num sentido de porta de delegacia, criminalidade de assassinato, extorsão de populações pobres… Essa criminalidade está no poder. Isso é uma coisa inacreditável.
E está no poder, em parte, com o apoio e, em parte, com a perplexidade do Judiciário, que está aparelhando todo o sistema, toda a máquina pública, com as piores pessoas possíveis.
Você tem uma espécie de critério que é simples: dado um determinado ministério, alguma tal secretaria, quem é a pior pessoa possível pra colocar ali? É essa pessoa que vai.
Então, você tem uma espécie de perversidade, e perversidade quase no sentido psicopatológico mesmo, por isso que falei em psicopatia. É uma espécie de perversidade de você colocar exatamente a pessoa inimiga daquele tema para tocar a política de Estado sobre aquele tema.
Isso está acontecendo no meio ambiente, nos direitos humanos, o direito da mulher, da família, está acontecendo, de certa maneira, na economia.
E Belo Monte?
Bom, uma das grandes divergências, um dos grandes problemas que eu tenho com o PT é Belo Monte, que foi enfiada pela garganta adentro dos ribeirinhos, dos indígenas da região, pelo Lula, pela Dilma. Então, eu não consigo aceitar um partido, um governo que fez Belo Monte. Daí não se segue que eu tenha que aceitar o que está no poder agora, muito pelo contrário, mas Belo Monte não tem perdão.
Eu trabalhei lá, conheço lá, não tem perdão o que eles fizeram ali. Aquilo representa uma ideia de Brasil em que, num certo sentido, há uma continuidade em algum nível entre o projeto do PT e o projeto desse governo no que diz respeito à relação com a Amazônia, com os povos tradicionais, com o Brasil profundo.
Tem que modernizar, tem que civilizar, tem que industrializar, tem que derrubar, tem que gerar renda, tem que gerar valor, gerar emprego, e a gente ouve isso há séculos e só vê o pessoal se fodendo.
Lula livre, sim; Belo Monte, não. Belo Monte jamais.
O Governo Bolsonaro elegeu alguns inimigos diretos, seja territorialmente, seja de pessoas ou grupos sociais. Estou falando da Amazônia e dos indígenas. Por que este governo tem tanto medo dos índios?
O problema dos índios, para esse governo e para as frações da sociedade brasileira que ele representa — em particular, o grande capital, o agronegócio —, é que as terras dos índios não estão no mercado fundiário. E o projeto desse governo é de privatizar 100%. Se possível, o Brasil inteiro.
Parque nacional, reserva ecológica, todas as terras que têm uso especial estão na mira desse governo. Daí a importância do Ministério do Meio Ambiente para destruir os sistemas de terras protegidas e para o ataque aos povos indígenas. Esse ataque, na verdade, exprime um desejo de transformar o Brasil inteiro em propriedade privada.
É um Estado cujo objetivo é retirar do Estado a sua soberania efetiva sobre seu território, ou melhor, transformar a soberania em apenas poder de supervisão, mas entregar as terras ao capital privado, seja nacional, seja estrangeiro.
Daí essa conversa para boi dormir dos militares: “Ah, a invasão da Amazônia pelos estrangeiros”. Eles estão vendendo as terras da Amazônia para um monte de proprietário estrangeiro, o problema deles não é esse. Isso é mentira.
O problema dos índios é que as terras dos índios são terras da União, e o objetivo do governo é privatizar. E mais do que do governo, das classes que o governo representa, das quais ele é o jagunço, porque é isso que ele é: o jagunço da burguesia.
O segundo motivo, acho, está numa declaração absurda que o Mourão, o vice-presidente, deu há pouco tempo, louvando as capitanias hereditárias e os bandeirantes, dizendo que aquilo é o melhor da nossa origem, o melhor da nossa história, empreendedorismo e tal.
Isso soa como uma provocação, uma provocação especificamente anti-indígena, porque ele está celebrando o genocídio ameríndio, celebrando o bandeirante, que é uma figura que foi transformada, evidentemente, a partir de São Paulo, em herói da nacionalidade, quando o que ele fez, efetivamente, foi arrancar o Brasil da mão dos seus ocupantes originais. Não conseguiu arrancar todos, ainda tem 13% aí de terra [indígena].
E o objetivo, agora, é completar o processo iniciado com a invasão da América pelos portugueses. Isso é muito claro.
Os militares, agora, estão se identificando com a Europa. É muito estranho, se você for olhar a composição racial das Forças Armadas brasileiras. Não vai achar muito louro. A começar pelo Mourão, que é mestiço de índio. Mas pelo jeito não gosta.
Então, você tem uma concepção que vê o Brasil como um país essencialmente europeu, num sentido assim, do que é o melhor da nossa formação, da nossa história. Como diz o Mourão, o melhor é a Europa. É isso que ele está dizendo.
Talvez o momento culminante do filme Bacurau, que está fazendo sucesso, é o momento do diálogo em que os gringos assassinos dizem pros dois puxa-sacos brasileiros que eles não são brancos coisa nenhuma. O Mourão, na verdade, estava falando como aquele motociclista: o melhor da nossa história são as capitanias. Aí vem o gringo: “Pra começar, português nem é branco. E, segundo, você não é nem português”. Então, bum!
E as celebrações do caráter mestiço, no meu entender, são pura demonstração de hipocrisia. O que se chama de mestiçagem no Brasil, o nome certo é branqueamento.
Então, você tem um ódio do não branco no Brasil, racismo contra os negros, e um racismo dobrado, de um racismo territorial, em relação aos índios. Essas são as razões principais, eu diria.
Irmã Dulce está fazendo Jair Bolsonaro passar vergonha
Ele decidiu não ir à cerimônia de canonização no próximo domingo, 13, no Vaticano.
As explicações são péssimas: Bolsonaro quis cutucar o papa Francisco, que tem posições divergentes sobre a Amazônia, e seguir conselhos de evangélicos.
A decisão de não viajar foi influenciada pela opinião da primeira-dama, Michelle Bolsonaro
Para piorar: desmarcou sua ida a Salvador onde vai ocorrer uma nova celebração num estádio.
Detalhe: Bolsonaro se diz católico.
Mas o importante aqui é outra coisa.
Irmã Dulce foi um ser humano extraordinário, colocou sua vida a favor dos mais pobres.
É dos projetos mais lindos de saúde gratuita que vimos no Brasil.
E pela batalha de uma mulher sozinha.
Seria uma forma de Bolsonaro prestigiar esse símbolo.
Bolsonaro fala tanto em valores cristãos – e Irmã Dulce é a essência deles.
Nunca enriqueceu usando Deus. Pelo contrário.
A vergonha de Irmã Dulce foi mostrar a mesquinhez de Bolsonaro.
Ministro justiceiro
É porrete ou cenouraSérgio Moro, ministro da Justiça, sobre as alternativas oferecidas por ele aos presos ligados a facções criminosas
Quem domina a cadeia, domina a rua
O presidente, porém, cultiva e manifesta – expressando ignorância profunda sobre as consequências desta postura – desprezo à figura do presidiário; como se a existência do preso fosse uma concessão à falta de meios para se aplicar a lógica do “bandido bom é bandido morto”. Ocorre que há a lei.
Tratar massacres em presídios – preso esquartejando preso – com desdém, quase como se coisa positiva, espécie de auto-limpeza, tudo na linha influente do “eles que se matem lá”, é chancelar a selvageria que desqualifica e desacredita o Estado, e que, atenção, dá poder às facções criminosas, de súbito empossadas como únicas polícia e justiça vigentes no sistema carcerário, organizações que se convertem em governantes das cadeias.
É isto, simplesmente o coração do problema, que Bolsonaro – sempre preferindo jogar pra galera – não alcança. Entre outras coisas, que extermínio de bandidos na cadeia é imposição de bandidos na cadeia – estado paralelo, força que se projeta.
Mesmo o seu desprezo pela figura do presidiário não pode ignorar – agora desde a condição de presidente da República – que o drama carcerário brasileiro, objetivamente, é o drama da segurança pública brasileira; e que é desde dentro dos presídios que as facções montam base e ditam as ações do crime nas ruas. Para citar um especialista, Eduardo Mattos de Alencar, em síntese perfeita: “Quem domina a cadeia, domina a rua. Cadeia é estável; permite operar com tranquilidade”.
Está tudo aí. Mais do que nunca, quem se preocupa com a segurança das gentes de bem deveria enfrentar – como prioridade – o assalto ao Estado a partir do controle do sistema prisional. Jair Bolsonaro daria grande contribuição à segurança pública do país se ajudasse o Estado a retomar o domínio dos presídios. É preciso inteligência.
Se não mudar enfoque diplomático e ambiental, Brasil não consegue entrar na OCDE
O pior é a questão ambiental. No início do governo, o Brasil anunciou que iria deixar o importantíssimo Acordo de Paris e as infelizes declarações climáticas do chanceler Ernesto Araújo criaram um furacão diplomático internacional contra o Brasil.
O que o Brasil ganhou com essa mudança de rota? Nada, absolutamente nada. E as consequências são tenebrosas, porque até mesmo o antes amigável governo da matriz USA resolveu colocar a filial Brazil na berlinda, porque o governo Bolsonaro literalmente conseguiu entrou em choque com a opinião pública mundial.
A gota d’água foram as queimadas na Amazônia, que o Brasil não soube explicar, por falta de conhecimento específico das autoridades. E as consequências estão à vista de todos, com o posicionamento da matriz sobre a entrada da filial na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
O Brasil teve de recuar no caso do Acordo de Paris e precisa seguir recuando, mas os pronunciamentos do chanceler sobre mudanças climáticas continuam revoltando a opinião pública mundial, porque ele resolveu ignorar os relatórios da ONU, classificando-os de “ideologia da mudança climática ou climatismo”
Enquanto isso, o mundo inteiro caminha em outra direção. O secretário-geral da ON, António Guterres, que é português, diz que “há cada vez mais conservadores que entendem que a ação climática é parte da política”, e defende pressão social para conter a crise climática: “Cedo ou tarde, os Governos seguem a opinião pública, em todo o mundo”.
A ONU deixa bem claro quais são essas necessidades. Entre outras metas, propõe a redução de 45% das emissões de dióxido de carbono até 2030 e, para 20 anos depois, em 2050, a neutralidade do carbono, ou seja, que a quantidade de emissões não supere a capacidade de absorção das florestas, por exemplo. Assim, o impacto será zero, neutro. “Tragam planos, não discursos”, pede Guterres aos líderes nas cúpulas do clima.
O secretário-geral da OCDE, Ángel Gurría (mexicano) reforça, dizendo: “Temos que assegurar o cumprimento dos compromissos assumidos nos Acordos de Paris. A necessidade da ação climática não deveria exigir grandes reflexões”.
Sobre a entrada do Brasil na OCDE, na manhã desta quinta-feira o secretário-geral adjunto Ludger Schuknecht (alemão) deu um recado direto ao presidente Bolsonaro e ao chanceler Araújo, durante o Fórum de Investimentos Brasil 2019.
Após ouvir o chanceler dizer que o Brasil já está pronto “para começar nosso processo de adesão à OCDE, isso reforçará toda essa dinâmica e toda essa agenda que nós temos”, o secretário-adjunto da OCDE fez um discurso franco, ouvido por Bolsonaro e pelo ministro, dizendo que o Brasil precisa de reformas econômicas sem abandonar a responsabilidade ambiental e social.
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