segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Brasil à pururuca


A caricatura que se autorreproduz

A atividade política no Brasil mais parece uma caricatura de si própria, que se reproduz continuamente como ostra cega e se espalha contagiando os demais. Há anos padecemos a demagogia do populismo e já nos habituamos à sua teatralidade de transmitir emoções que (passageiras ou falsas) passam a valer mais do que a racionalidade profunda. Ou mais do que a realidade. Em São Paulo, Ademar de Barros e Paulo Maluf foram os modelos explícitos.


Na posse de Jair Bolsonaro, a gesticulação da primeira-dama Michelle, ao discursar na língua de sinais, emocionou não só a tradutora, mas também quem assistia de longe, pela televisão, como eu. Mas defronte ao Palácio do Planalto o confuso som dos alto-falantes fazia as palavras esbarrarem no próprio eco e parte do povo, sem entender a tradução, passou a rir. Mas rindo aplaudiam a mímica da primeira-dama. O som desengonçado acompanhava algo simpático e amigável, atenuando a exagerada “operação de guerra” montada para a festa da posse.

Aqueles emotivos minutos, porém, até sem querer, constituíam um pequeno ardil típico do exibicionismo populista. O mal (ou defeito) do populismo não é a simpatia nem o propósito, mas a capacidade de desviar atenções, transformando pequenos atos e gestos em algo grandioso.

Quando o então presidente Lula da Silva, ao inaugurar um consultório odontológico, vestia jaleco e se inclinava sobre o dentista (sentado na cadeira) imitando arrancar-lhe um dente, todos aplaudiam e a foto aparecia nos jornais. Em fábricas ele vestia macacão (que abandonara desde que optou pelo sindicato) e se fantasiava de operário. Essas pequenas simulações, em que ele parecia um super-herói das histórias em quadrinhos, desviavam a atenção dos atos de corrupção que comandava na Petrobrás e adjacências.

Tudo era, apenas, bela extravagância populista do PT...

Agora, com um presidente eleito por ter-se apresentado como a antítese do próprio Lula, os dias seguintes à festa da posse começam a marcar o governo Bolsonaro. Já não há palavras de ódio, como na campanha eleitoral. Mas surgem paradoxos e contradições. Planos e ideias convivem com tolos exibicionismos.

Onyx Lorenzoni, ministro-chefe da Casa Civil, prega o diálogo e o entendimento “entre todos” na frente do presidente, que o escuta em silêncio de aprovação. Mas, na posse do ministro da Defesa, Bolsonaro se nega a pronunciar o nome de Fernando Henrique Cardoso, ao citar os presidentes que ampliaram verbas para as Forças Armadas - Sarney, Collor, Itamar “e depois veio aquele outro, que os senhores sabem quem foi”.

Antes, frisou que “as Forças Armadas sempre refutaram a citação de ‘sociedade civil’, pois somos uma sociedade só”. A expressão “sociedade civil”, porém, não é o conjunto dos paisanos, ou não fardados, mas sim de pessoas sem objetivo de comércio, militares incluídos. A “sociedade civil” não é o inverso dos militares, mas - sim - da sociedade das coisas, dos bens materiais.

Seria pedante e inadequado analisar a semântica de Bolsonaro e, assim, prever seus passos e ações. O presidente já mostrou que é homem de palavras duras e firmes, com sentido ou descabeladas, mas é dever de todos fazer-lhe ver que nada se diz ao vento. Num chefe de Estado e de governo, as palavras devem corresponder à realidade, não à fantasia propagandística.

Dizer, por exemplo, que de ora em diante o Brasil “abandona o socialismo” ou que “o marxismo será extirpado das escolas” é inventar situações que o País nunca viveu. As únicas iniciativas “sociais” da era Lula-Dilma - as migalhas do programa Bolsa Família e as “cotas” nas universidades - continuarão no atual governo. A bolsa receberá até 13.º salário...

Além de instituir a corrupção e o suborno como “atos de governabilidade”, serão “socialistas” as outras duas grandes obras de Lula e do PT: o desvio do Rio São Francisco e o reinado dos bancos na economia? Quando ele se gabava de que “nunca os bancos lucraram tanto” quanto em seu governo, isso seria socialismo?

O País não pode viver sob o impacto das invencionices ou alucinações políticas. Os lugares-comuns das fantasias ideológicas ou ideologizadas não substituem a realidade. A ideologização é perversão total. A ideia forjada é um ultraje ao próprio raciocínio extraído da observação concreta.

Se houver dúvida, perguntem a Antônio Paim, o pensador que (segundo o colombiano Vélez Rodríguez, nosso ministro de Educação) compõe a matriz filosófica do novo governo, junto ao direitista Olavo de Carvalho. Em plena juventude dos 91 anos, Paim é um estudioso do liberalismo e da sociedade brasileira. Formado em 1950 na velha “escola de quadros” da juventude comunista em Moscou, casou-se com uma russa e o que lá viveu pode resumir-se em sua frase: “Se minha experiência valesse, ninguém seria comunista nem se casaria...”.

Seu livro Marxismo e Descendência descreve a brutalidade da implantação do comunismo, mas adverte: “É importante dizer que Marx nada teve a ver com o que houve na Rússia”.

Por que, então, inventar aqui o tal de “marxismo cultural” ou alucinações similares em grego, latim e tupi, como fez o ministro de Relações Exteriores? E nossa “nova diplomacia” com “menos CNN e mais Raul Seixas”, como ele quer, será menos informação e mais música?

Mesmo que insista na fantasmagoria de “libertar o País do socialismo”, vale a promessa de Paulo Guedes de que “o Brasil deixará de ser o paraíso dos rentistas e o inferno dos empreendedores” - ou seja, o oposto daquilo de que se jactava Lula da Silva.

Falta saber, porém, se isso nos livrará da caricatura das aparências que o populismo criou e viceja em flor.

Nossa 'imparcialidade '



Se é amigo tem uma regra, é inimigo, tem outra. O brasileiro tem dificuldade com a imparcialidade
Janaina Paschoal

Sintomas de um apagão gerencial

O governo levou dez dias para perceber que o protegido político nomeado para o comando da Agência de Promoção de Exportações não tinha qualificação para a vaga. A indicação de Alex Carreiro e sua demissão atrapalhada são sintomas de um apagão gerencial.

Jair Bolsonaro e seus ministros fizeram estardalhaço para remover funcionários que consideravam incapazes de seguir o programa do novo presidente. Em vez de recorrer ao golpe de marketing da “despetização”, o governo deveria ter dedicado mais tempo a uma análise cuidadosa de suas próprias nomeações.


Ninguém deve ter lido o currículo de Carreiro antes de dar a ele a presidência da Apex. A maior qualificação do publicitário era a devoção a Bolsonaro nas redes sociais e o contato com alguns figurões de sua equipe durante a campanha.

Em poucos dias no comando da agência, ele foi fritado por colegas. Na quarta-feira (dia 9), o chanceler Ernesto Araújo declarou no Twitter que Carreiro havia pedido demissão. O problema é que o publicitário apareceu para dar expediente no dia seguinte.

Araújo confundiu a rede social com o Diário Oficial. Carreiro se amarrou à cadeira, disse que não havia pedido para deixar o cargo e afirmou que só sairia demitido pelo próprio Bolsonaro. O presidente deixou o chanceler na chuva por 24 horas até confirmar a troca na agência.

O improviso e o blá-blá-blá da politicagem enferrujam as engrenagens do novo governo. Nomeações de apadrinhados inexperientes e bravatas administrativas atrasam e paralisam até atividades burocráticas.

A Casa Civil chegou a ficar travada com o expurgo tolo promovido pelo ministro Onyx Lorenzoni. A situação é inusitada: servidores que pediram exoneração não conseguem ser demitidos porque não há funcionários administrativos para cuidar disso.

Assim que assumiu o poder, Bolsonaro anunciou uma revisão geral dos atos assinados nos últimos meses do governo Temer. Talvez seja mais importante fazer um pente-fino nas decisões dos últimos dez dias.

Apertem os cintos: Previsões para a 'nova era' de Bolsonaro

O Brasil está condenado a reescrever uma página infeliz da nossa história? A pergunta ronda os 22 ensaios de “Democracia em risco?”, que chega às livrarias na semana que vem pela Companhia das Letras. Como indica o ponto de interrogação, a coletânea não oferece respostas definitivas. Sua proposta é ajudar a entender o que está em jogo na “nova era” de Jair Bolsonaro.

No texto de abertura, o sociólogo e cientista político Sérgio Abranches sustenta que a eleição de 2018 foi disruptiva. Ele afirma que a vitória do capitão encerrou o ciclo que organizou a política brasileira com relativa estabilidade nos últimos 25 anos. As instituições, que sobreviveram a dois impeachments e múltiplas crises, agora terão que enfrentar uma prova de resistência “mais significativa e direta”. “Apertem os cintos, pois passaremos por uma zona de forte turbulência política”, avisa.

O historiador Boris Fausto diz que é cedo para desenhar com clareza os rumos que o governo vai tomar. “Mas no âmbito educacional e da cultura, assim como no trato de determinadas minorias, as tendências não deixam dúvidas. Todas elas constituem um retrocesso”.

Ele prevê o acirramento da violência no campo, a reboque do discurso agressivo do presidente. “As porteiras estão abertas para as mortes de lideranças, para a invasão de terras indígenas pelas milícias armadas, para o desmatamento sem inibições”, escreve. Apesar dos temores, Fausto diz contar com a vigilância da imprensa, do Judiciário e da sociedade civil: “Ao menos por ora, não há razões para ceder ao catastrofismo”.

O sociólogo Celso Rocha de Barros parece menos confiante. “As bases do nosso progresso até agora — a democracia, a imprensa livre, a autonomia das instituições e a competição entre os partidos — podem desabar a qualquer momento”, afirma. Ele diz que a hora é de “rebaixar expectativas”: “O objetivo, nos próximos quatro anos, é evitar retrocessos”.

A historiadora Angela de Castro Gomes vê a ascensão de Bolsonaro como “uma ameaça efetiva a nosso regime democrático, que poderá ser corroído por dentro”. O jurista Conrado Hübner Mendes alerta para as afinidades do presidente com líderes da extrema direita do Leste Europeu. “O Brasil está batendo à porta da liga dos governos autoritários no aniversário de trinta anos da Constituição. Esse crepúsculo não é o fim, mas sua antessala”, escreve.

A historiadora Heloisa Starling costuma brincar que sua classe só é boa para prever o passado. Agora ela admite um sentimento de “perplexidade” com o presente. “Não sabemos ainda se a erosão da democracia no Brasil é um processo inevitável ou mesmo irreversível”, afirma. “Em 1964, a ruptura política e institucional se consumou; ocorreu um golpe de Estado e a deposição do presidente constitucional. Em 2018, o cenário é instável, a democracia brasileira saiu dos trilhos, mas o futuro está em aberto”, diferencia.

A professora observa que o presidente “é exatamente o que parece, e ainda podemos nos perguntar se as aparências enganam”. Mais adiante, ela pede cautela a quem considera que o país está mergulhando num novo ciclo autoritário: “A forma do que virá está em aberto — o tempo não é retilíneo, nele não existe lugar para a repetição e não há jeito de se governar a história”.