Fernandes e Frossard receberam o EL PAÍS em Altamira, a cidade do Pará que é a porta de entrada na floresta em transformação, em uma casa de alvenaria simples, sede de um núcleo sindical de produtores que abrange 11 municípios da rodovia Transamazônica. Estavam junto a Flavio Frossard, irmão de Renato, todos dispostos a defender o Governo Bolsonaro das intensas críticas de que era alvo no final de agosto, no auge da crise das queimadas na região. De bermuda jeans e chinelos no pé, além de uma voz mansa que não se altera, Fernandes não deixa transparecer o que ele representa para essa região da bacia do rio Xingu: dinheiro e poder. As quatro propriedades que a família possui no município de Anapu, vizinho a Altamira, somam 12.000 hectares. Dedicam-se sobretudo à pecuária, a principal atividade econômica da região, pela facilidade de ser implantada em meio a pouca infraestrutura. O Pará é o quinto Estado em quantidade de cabeças de boi, 20,5 milhões, segundo mostrou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em pesquisa de 2017.
Renato e Flávio Frossard possuem 3.000 hectares de terra em Uruará, a 327 quilômetros de Anapu. Plantam cacau, outra especialidade na região que não para de crescer. Os irmãos são do Rio de Janeiro, onde ainda moram, e possuem outras propriedades rurais em Minas Gerais. Representam uma elite do Sul e Sudeste que decidiu investir na Amazônia entre os anos 70 e 80.
Foi nessa mesma época que a família Fernandes desembarcou em Altamira. Para colonizar os arredores da Transamazônica, os Governos militares emitiam títulos de terra provisórios que deveriam ser definitivos caso as terras se tornassem produtivas. Como isso nem sempre acontecia, os títulos começaram a ser cancelados. Dentro deste confuso processo, compradores surgiam em busca de terra barata que a União começava a retomar para si. Entre esses compradores estava o patriarca dos Fernandes. Até hoje Silvério e seus irmãos não possuem o título definitivo de suas fazendas — assim como mais de 80% dos produtores da região, segundo sindicatos do setor. O caso segue emperrado na Justiça, que já chegou a determinar reintegração de posse.
Toda a insegurança jurídica, emblemática do conflito fundiário amazônico, não impediu que a família construísse sua fortuna. Hoje, além de comandar o núcleo sindical da Transamazônica, Fernandes preside o sindicato de produtores rurais de Anapu. Também já foi vice-prefeito de Altamira por oito anos. Nas eleições de 2018, tentou se eleger deputado estadual do Pará com a benção de Jair Bolsonaro, que chegou a gravar um vídeo de apoio e aparecia em cartazes ao lado do fazendeiro. O então candidato presidencial conseguiu 45,2% dos votos válidos no Pará no segundo turno, mas perdeu para o petista Fernando Haddad (PT). Porém, o ultradireitista venceu com folga em Altamira, com 63,2% dos votos, e levou também em cinco dos sete Estados do Norte do país.
Bolsonaro elegeu-se presidente com o discurso inequívoco de apoio ao agronegócio, acusando sem provas ONGs de serem as representantes da ingerência estrangeira na Amazônia. prometendo flexibilizar multas ambientais e abrir terras indígenas para a exploração econômica — o mesmo que repetiu na Assembleia Geral da ONU na semana passada. "O interesse na Amazônia não é no índio e nem na porra da árvore, é no minério", disse o presidente nesta terça a garimpeiros, outro grupo próximo do Planalto. "Ele está certo, quem tem que decidir nosso futuro e da Amazônia somos nós", defende Fernandes.
Fogo em Altamira
Fernandes e os Frossard também fazem coro ao discurso presidencial e consideram que a imprensa promove "manipulação" e desinformação ao abordar o aumento dos desmatamentos seguidos de incêndios. Mas os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) indicam que Altamira é o epicentro da crise ambiental na Amazônia. O território com mais áreas devastadas e queimadas é também o maior município do Brasil em extensão: são quase 160.000 quilômetros quadrados, área equivalente a quase quatro Estados do Rio de Janeiro, a maior parte em florestas nacionais e territórios indígenas. No topo do ranking da devastação estão ainda cidades vizinhas da Bacia do Rio Xingu, como São Félix do Xingu, Novo Progresso e Senador José Porfírio. A corrida por solo fértil, ouro e madeiras valiosas fez com que os números disparassem a partir de maio, ainda que tenham se inclinado à média anual neste setembro.
"Neste ano aumentou a pressão em áreas protegidas, porque estamos em um momento deliberado em que o Governo dá sinais de que tolera esse tipo de coisa em unidades de conservação e terra indígena", explica Tasso Azevedo, coordenador da MapBiomas, ONG que cruza os dados de desmatamento com os de incêndio para certificar-se de que um decorre do outro. "Desmatamento é função direta da expectativa de impunidade. Porque desmatar custa caro, não é barato. Dar o sinal de que vai legalizar invasões em áreas protegidas ao mesmo tempo que desmantela a fiscalização do IBAMA é a mesma coisa que dizer 'pode ir lá'". Uma pesquisa da consultoria Atlas divulgada pelo EL PAÍS mostrou que 67% dos brasileiros acreditam que a Amazônia vive uma crise ambiental, mas estão divididos com relação ao papel do Governo Bolsonaro na crise. Mais de 80% se posicionam contra o garimpo e o desmatamento nas reservas ambientais e indígenas ou defendem a prisão dos grileiros que venham a ser responsabilizados pelos incêndios.
São duas visões antagônicas de Brasil que deixam o terreno das ideias e se encontram em sangrentos campos de batalha na região de Altamira. De um lado estão aqueles que, como Fernandes e os irmãos Frossard, acreditam que o desenvolvimento chegará a partir da exploração da terra e dos recursos naturais da Amazônia. Não se dizem contrários à preservação do meio ambiente, mas se mostram alinhados ao Governo Bolsonaro no que diz respeito à legalização de garimpeiros e grileiros que atuam ilegalmente. "Primeiro, o Brasil é assim, os bandeirantes colonizaram o país dessa forma. Chegaram, ocuparam... O poder público vem depois", argumenta Fernandes. "Segundo, as pessoas precisam se alimentar".
Ainda que não se digam contrários às leis ambientais, os três produtores amigos respaldam o discurso de Bolsonaro contra órgãos de fiscalização como o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA), o qual definem como uma indústria de multas — Fernandes e seus irmãos já foram condenados por crimes ambientais que somam quase 30 milhões de reais em punições. Também rejeitam enfaticamente os assentamentos de agricultores feitos pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), uma vez que muitas vezes abarcam suas terras que estão em litígio com a União. "São invasores e os principais responsáveis pelo desmatamento", acusa Fernandes.
Por fim, dirigem duras críticas à política de demarcação de terras indígenas promovida pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). "Vão criando reservas indígenas e reservas naturais em áreas riquíssimas. E não podemos explorar aquilo?", questiona Flavio Frossard. "A gente sabe que é uma cortina de fumaça por trás de grandes interesses internacionais pelo solo da Amazônia", completa, ecoando Bolsonaro. Seu irmão Renato faz referência implícita ao acordo entre Mercosul e União Europeia que a França de Emmanuel Macron ameaça romper caso o Governo não preserve a Amazônia: "Sabemos que a produção brasileira de alimentos incomoda outros países produtores".
Do outro lado dessa disputa estão as populações alvo de suas críticas: os índios em territórios demarcados pelo Estado brasileiro, ribeirinhos em terras ricas e férteis e pequenos agricultores e extrativistas que vivem em comunidades e assentamentos do INCRA. Ao lado deles estão Organizações Não-Governamentais ou organismos como a Comissão Pastoral da Terra, vinculada à Igreja Católica. No geral defendem um modelo alternativo e mais sustentável que inclui o reparto mais igualitário da terra e o respeito pelos modos de vida tradicional.
Felipe Betim (Leia mais)