quarta-feira, 2 de outubro de 2019

A Amazônia que festeja Bolsonaro: 'Quem tem que decidir nosso futuro é a gente'

"Se eu tenho 3.000 hectares, produzo em 1.000 e preservo os 2.000 restantes, acho que deveríamos receber royalties por preservar a Amazônia. Quem vai pagar?", desafia o produtor Silvério Fernandes, dono em sociedade com os irmãos de uma área equivalente a 11.000 campos de futebol profissional no coração da Amazônia paraense. A resposta vem em seguida: "Esses países da Europa". "Se estão mandando dinheiro para as ONGs, por que não mandar para o proprietário para ajudá-lo a preservar?", completa o também empresário agrícola Renato Frossard.

Fernandes e Frossard receberam o EL PAÍS em Altamira, a cidade do Pará que é a porta de entrada na floresta em transformação, em uma casa de alvenaria simples, sede de um núcleo sindical de produtores que abrange 11 municípios da rodovia Transamazônica. Estavam junto a Flavio Frossard, irmão de Renato, todos dispostos a defender o Governo Bolsonaro das intensas críticas de que era alvo no final de agosto, no auge da crise das queimadas na região. De bermuda jeans e chinelos no pé, além de uma voz mansa que não se altera, Fernandes não deixa transparecer o que ele representa para essa região da bacia do rio Xingu: dinheiro e poder. As quatro propriedades que a família possui no município de Anapu, vizinho a Altamira, somam 12.000 hectares. Dedicam-se sobretudo à pecuária, a principal atividade econômica da região, pela facilidade de ser implantada em meio a pouca infraestrutura. O Pará é o quinto Estado em quantidade de cabeças de boi, 20,5 milhões, segundo mostrou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em pesquisa de 2017.

Renato e Flávio Frossard possuem 3.000 hectares de terra em Uruará, a 327 quilômetros de Anapu. Plantam cacau, outra especialidade na região que não para de crescer. Os irmãos são do Rio de Janeiro, onde ainda moram, e possuem outras propriedades rurais em Minas Gerais. Representam uma elite do Sul e Sudeste que decidiu investir na Amazônia entre os anos 70 e 80.

Foi nessa mesma época que a família Fernandes desembarcou em Altamira. Para colonizar os arredores da Transamazônica, os Governos militares emitiam títulos de terra provisórios que deveriam ser definitivos caso as terras se tornassem produtivas. Como isso nem sempre acontecia, os títulos começaram a ser cancelados. Dentro deste confuso processo, compradores surgiam em busca de terra barata que a União começava a retomar para si. Entre esses compradores estava o patriarca dos Fernandes. Até hoje Silvério e seus irmãos não possuem o título definitivo de suas fazendas — assim como mais de 80% dos produtores da região, segundo sindicatos do setor. O caso segue emperrado na Justiça, que já chegou a determinar reintegração de posse.


Toda a insegurança jurídica, emblemática do conflito fundiário amazônico, não impediu que a família construísse sua fortuna. Hoje, além de comandar o núcleo sindical da Transamazônica, Fernandes preside o sindicato de produtores rurais de Anapu. Também já foi vice-prefeito de Altamira por oito anos. Nas eleições de 2018, tentou se eleger deputado estadual do Pará com a benção de Jair Bolsonaro, que chegou a gravar um vídeo de apoio e aparecia em cartazes ao lado do fazendeiro. O então candidato presidencial conseguiu 45,2% dos votos válidos no Pará no segundo turno, mas perdeu para o petista Fernando Haddad (PT). Porém, o ultradireitista venceu com folga em Altamira, com 63,2% dos votos, e levou também em cinco dos sete Estados do Norte do país.

Bolsonaro elegeu-se presidente com o discurso inequívoco de apoio ao agronegócio, acusando sem provas ONGs de serem as representantes da ingerência estrangeira na Amazônia. prometendo flexibilizar multas ambientais e abrir terras indígenas para a exploração econômica — o mesmo que repetiu na Assembleia Geral da ONU na semana passada. "O interesse na Amazônia não é no índio e nem na porra da árvore, é no minério", disse o presidente nesta terça a garimpeiros, outro grupo próximo do Planalto. "Ele está certo, quem tem que decidir nosso futuro e da Amazônia somos nós", defende Fernandes.
Fogo em Altamira

Fernandes e os Frossard também fazem coro ao discurso presidencial e consideram que a imprensa promove "manipulação" e desinformação ao abordar o aumento dos desmatamentos seguidos de incêndios. Mas os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) indicam que Altamira é o epicentro da crise ambiental na Amazônia. O território com mais áreas devastadas e queimadas é também o maior município do Brasil em extensão: são quase 160.000 quilômetros quadrados, área equivalente a quase quatro Estados do Rio de Janeiro, a maior parte em florestas nacionais e territórios indígenas. No topo do ranking da devastação estão ainda cidades vizinhas da Bacia do Rio Xingu, como São Félix do Xingu, Novo Progresso e Senador José Porfírio. A corrida por solo fértil, ouro e madeiras valiosas fez com que os números disparassem a partir de maio, ainda que tenham se inclinado à média anual neste setembro.

"Neste ano aumentou a pressão em áreas protegidas, porque estamos em um momento deliberado em que o Governo dá sinais de que tolera esse tipo de coisa em unidades de conservação e terra indígena", explica Tasso Azevedo, coordenador da MapBiomas, ONG que cruza os dados de desmatamento com os de incêndio para certificar-se de que um decorre do outro. "Desmatamento é função direta da expectativa de impunidade. Porque desmatar custa caro, não é barato. Dar o sinal de que vai legalizar invasões em áreas protegidas ao mesmo tempo que desmantela a fiscalização do IBAMA é a mesma coisa que dizer 'pode ir lá'". Uma pesquisa da consultoria Atlas divulgada pelo EL PAÍS mostrou que 67% dos brasileiros acreditam que a Amazônia vive uma crise ambiental, mas estão divididos com relação ao papel do Governo Bolsonaro na crise. Mais de 80% se posicionam contra o garimpo e o desmatamento nas reservas ambientais e indígenas ou defendem a prisão dos grileiros que venham a ser responsabilizados pelos incêndios.

São duas visões antagônicas de Brasil que deixam o terreno das ideias e se encontram em sangrentos campos de batalha na região de Altamira. De um lado estão aqueles que, como Fernandes e os irmãos Frossard, acreditam que o desenvolvimento chegará a partir da exploração da terra e dos recursos naturais da Amazônia. Não se dizem contrários à preservação do meio ambiente, mas se mostram alinhados ao Governo Bolsonaro no que diz respeito à legalização de garimpeiros e grileiros que atuam ilegalmente. "Primeiro, o Brasil é assim, os bandeirantes colonizaram o país dessa forma. Chegaram, ocuparam... O poder público vem depois", argumenta Fernandes. "Segundo, as pessoas precisam se alimentar".

Ainda que não se digam contrários às leis ambientais, os três produtores amigos respaldam o discurso de Bolsonaro contra órgãos de fiscalização como o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA), o qual definem como uma indústria de multas — Fernandes e seus irmãos já foram condenados por crimes ambientais que somam quase 30 milhões de reais em punições. Também rejeitam enfaticamente os assentamentos de agricultores feitos pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), uma vez que muitas vezes abarcam suas terras que estão em litígio com a União. "São invasores e os principais responsáveis pelo desmatamento", acusa Fernandes.

Por fim, dirigem duras críticas à política de demarcação de terras indígenas promovida pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). "Vão criando reservas indígenas e reservas naturais em áreas riquíssimas. E não podemos explorar aquilo?", questiona Flavio Frossard. "A gente sabe que é uma cortina de fumaça por trás de grandes interesses internacionais pelo solo da Amazônia", completa, ecoando Bolsonaro. Seu irmão Renato faz referência implícita ao acordo entre Mercosul e União Europeia que a França de Emmanuel Macron ameaça romper caso o Governo não preserve a Amazônia: "Sabemos que a produção brasileira de alimentos incomoda outros países produtores".

Do outro lado dessa disputa estão as populações alvo de suas críticas: os índios em territórios demarcados pelo Estado brasileiro, ribeirinhos em terras ricas e férteis e pequenos agricultores e extrativistas que vivem em comunidades e assentamentos do INCRA. Ao lado deles estão Organizações Não-Governamentais ou organismos como a Comissão Pastoral da Terra, vinculada à Igreja Católica. No geral defendem um modelo alternativo e mais sustentável que inclui o reparto mais igualitário da terra e o respeito pelos modos de vida tradicional.
Felipe Betim (Leia mais)

Uma conjuntura muito favorável ao poder, mas com aquele probleminha

O modus operandi congressual do bolsonarismo vai ficando cada vez mais nítido. Não há obsessão por tratorar o Legislativo. No plano parlamentar, aceita-se o jogo. O que os parlamentares perderam em espaço político na Esplanada, ganharam em oportunidades de protagonismo. O governo manda os projetos, o Parlamento faz quase o que bem entende, depois o presidente veta, e o Legislativo também derruba os vetos que deseja.

Não sei se chega a ser uma nova política, mas tem boa dose de novidade, ao menos neste último meio século. Nos governos militares, o Congresso, quando estava aberto, era uma máquina carimbadora do Executivo, graças também ao bipartidarismo, aos atos institucionais e às cassações periódicas de mandatos. Quando nada disso era suficiente vinha o fechamento. Como por exemplo no Pacote de Abril de 1977.

Depois nasceu a Nova República, uma oportunidade do país aos políticos. Mas Tancredo Neves morreu, José Sarney virou um presidente não tão forte, e sofreu a dualidade de poder imposta pela Constituinte e Ulysses Guimarães. E teve de escancarar a máquina aos políticos para sobreviver. Sucedeu-o Fernando Collor, que quis fazer uma nova política e acabou derrubado. Por questiúnculas, como Dilma Rousseff um quarto de século depois.

E surgiu Fernando Henrique Cardoso para derrotar o PT de Luiz Inácio Lula da Silva, que estava forte depois da queda do seu antípoda, Collor. FHC governou à moda tradicional, e teve tranquilidade, também porque a nova política tinha dado errado. E graças à velha e boa política o tucano sobreviveu à debacle do Real na transição do primeiro para o segundo mandato. O país parecia vacinado contra impeachments. Parecia.

Lula governou conforme a cartilha da Nova República. Aprendendo com Sarney, Collor e Fernando Henrique, procurou montar uma base sólida no Congresso para evitar surpresas. Também por isso, escapou na crise do chamado mensalão, reelegeu-se e elegeu a sucessora. Que se sentiu num momento suficientemente forte para deixar os aliados na rua da amargura da Lava Jato. Deu no que deu.

Agora Jair Bolsonaro propõe uma nova oportunidade para um modelo que falhou duas vezes.


Verdade que o atual presidente faz isso numa conjuntura excepcionalmente favorável. Para começar, dois terços do Congresso estão potencialmente alinhados com a agenda do Executivo. O governo acha, e tem uma dose de razão, que mesmo se nada fizer o Legislativo terá de andar na linha do Executivo, pois os deputados e senadores não terão como explicar aos seus eleitores se fizerem diferente.

E o financiamento empresarial de campanhas está vetado, o que diminui a atratividade da ocupação de certos espaços ministeriais e nas estatais. Claro que sempre o olho pode crescer. Mas o mar não está pra peixe. E os partidos estão razoavelmente abastecidos pelos recursos públicos para sobreviver e fazer suas campanhas. Então, se o Planalto executa com competência o orçamento das emendas, tem combustível para navegar.

Para ajudar, o reinado absolutista da Lava Jato parece ter entrado no seu até agora pior inverno. E Bolsonaro tem assim facilitada a tarefa de recolocar o gênio dentro da garrafa, ou pelo menos tentar. Era previsível, e foi previsto, que o Bonaparte saído das urnas precisaria restabelecer o Poder Moderador do Executivo, tradicional desde que D. Pedro I fechou a Constituinte e outorgou a primeira Carta do Brasil independente.

Nisso, no essencial, Planalto, Congresso e Supremo vêm jogando juntos, pois interessa a todos acabar, ou pelo menos reduzir, a disfuncionalidade institucional em que o país foi atirado desde que Executivo e Legislativo ficaram acuados pela Lava Jato. E, enquanto esta permanece uma ameaça letal, seria pouco inteligente os três lugares geométricos da Praça dos Três Poderes ficarem de mimimi uns com os outros.

Sem contar que o PT não está propriamente infeliz com o esforço bolsonarista para controlar a fera. Sempre há a possibilidade, claro, de a Lava Jato voltar a se concentrar só no PT, mas até isso teria um lado útil para o petismo: reforçaria a narrativa de vitimização, já bem nutrida pelas interessantes revelações do The Intercept e parceiros. Depois da VazaJato, a Lava Jato nunca mais será a mesma, apesar das juras de amor do novo PGR.

Então está tudo bem? Não, tem aquele probleminha: quase 13 milhões de desempregados, fora os subempregados e desalentados em geral. Eis a fenda na represa, fenda que se não for fechada embaralha bem esse jogo. Ninguém vai querer ser sócio do fracasso. Mas enquanto não chega o dia do juízo político o bolsonarismo aproveita o mar de almirante para radicalizar na guerra de posição, inclusive no campo cultural. Já que Gramsci está na moda.
Alon Feuerwerker 

Gente fora do mapa


Aliado ao garimpo, Bolsonaro prepara embate com Igreja

Aliado ao lobby dos garimpeiros, Bolsonaro já comprou briga com índios, ambientalistas e líderes europeus. Agora ele prepara um novo embate com a Igreja Católica

Jair Bolsonaro disse que não dará entrevistas enquanto os jornais “não fizerem uma matéria real sobre o que aconteceu na ONU”. A imprensa noticiou que o presidente fez um discurso agressivo, exaltou a ditadura militar, atacou um cacique de 89 anos e mentiu sobre as queimadas na Amazônia. Na visão dele, uma “matéria real” trocaria o registro desses fatos por elogios.

A ameaça de boicote à imprensa não é nova. Bolsonaro já havia prometido silenciar outras vezes, mas nunca conseguiu segurar a língua. Ontem ele fez um esforço extra para cumprir a promessa. Ignorou os jornalistas e não discursou em solenidade oficial. Só falou em público uma vez, em minicomício para garimpeiros.

Numa cena incomum, o presidente foi até a porta do palácio e subiu numa cadeira para discursar. Do pedestal improvisado, expôs o que pensa sobre a floresta. “O interesse na Amazônia não é no índio nem na porra da árvore. É no minério!”, afirmou.

Bolsonaro não disfarça. Desde a campanha, ele critica as leis ambientais e promete incentivar a criação de novas Serras Peladas. Em seu lobby pela mineração, o presidente já comprou briga com índios, ambientalistas, servidores do Ibama e líderes europeus. Agora prepara o terreno para um embate com a Igreja Católica.

Ontem o bispo de Marajó, dom Evaristo Spengler, fez um apelo contra a exploração do subsolo amazônico. “Queremos pedir um não a projeto de mineração em territórios indígenas, não ao garimpo legal e ilegal na Amzônia, não à regularização de novos garimpos”, disse. Ele é um dos organizadores do sínodo que discutirá as ameaças à floresta a partir deste domingo.

Às vésperas do encontro, a tropa bolsonarista já trata a Igreja como inimiga. O presidente avisou que não vai a Roma para a canonização da irmã Dulce. No sábado, o guru Olavo de Carvalho disparou ofensas ao Papa Francisco. “Para mim, esse Bergoglio já deu no saco. Ele não é Papa nem no sentido figurado do termo”, atacou.

No minicomício de ontem, Bolsonaro encaixou uma nova provocação ao cacique Raoni, que já foi recebido com honras no Vaticano. “É outro que vive tomando champanhe em outros países por aí...”, desdenhou.

Re Piketty

 Saiu outro livro do Thomas Piketty, o economista francês cujo livro anterior, “O capital no século 21”, causou enjoos na direita e euforia na esquerda porque destruía a tese de que era só deixar o capitalismo solto que, com o tempo, ele resolveria tudo, da desigualdade social ao bicho-de-pé. O título do novo livro é “Capitalismo e ideologia”, e ele consegue ser maior em número de páginas do que o anterior. Apesar do alvoroço que causou, “Capital no século 21” não fez maiores estragos no pensamento econômico da época porque, segundo os cínicos, ninguém conseguia carregar, o que dirá ler, um volume daquele tamanho. Ler na cama, arriscando um aprofundamento do esterno, então, nem pensar.


Mesmo assim, “O capital no século 21” vendeu mais de dois milhões de exemplares e foi considerado o mais bem-sucedido livro sobre economia publicado no mundo depois da “Teoria geral” do John Maynard Keynes. Com uma diferença: o livro de Keynes foi lançado no fim da Segunda Guerra Mundial, quando o mundo se organizava para evitar a repetição de tragédias como a guerra, e o clima geral de otimismo permitia pensar na economia como uma entidade racionalizável, seguindo a teoria de Keynes. Já Piketty lança seus livros num mundo radicalizado pelo predomínio do capital financeiro e uma desigualdade social explosiva, que parece irreversível, imune a qualquer tipo de racionalização. Outra diferença entre Keynes e Piketty é o estilo, não das teses, mas da sua apresentação. Keynes era um intelectual de gostos finos, Piketty recorre à cultura pop e a personagens da ficção popular (Jane Austen, Dickens, Balzac) para tornar a leitura dos seus tijolos mais agradável.

O novo Piketty foi publicado, por enquanto, só na França. Sairá em inglês em março. Sua mensagem é a mesma do outro livro: o capitalismo, do jeito que vai, caminha pra um desastre. Como evitar o desastre? Taxar mais os mais ricos. Mudar as leis de sucessão que só favorecem fortunas herdadas etc. Piketty não é comunista. Se declara um social-democrata no modelo europeu, só disposto a levar o social e o democrático um pouco mais longe. Um bom exemplo.
Luis Fernando Verisimo

Alerta de um real Príncipe

No século em que estamos em que os povos se acham assaz instruídos de seus direitos, é mistér que príncipes igualmente estejam e conheçam que são homens e não divindades, e que lhes e indispensável terem muitos conhecimentos e boa opinião, para que possam ser mais depressa amados do que mesmo respeitados - o respeito de um povo livre para seu chefe deve nascer da convicção, que aquele tem, de que seu Chefe é capaz de o fazer chegar àquele grau de felicidade a que ele aspira, e assim não sendo, desgraçado Chefe, desgraçado Povo
Pedro I em carta a Pedro II em 1832

Brasil, um grande Coari

Velho Brasil. Bolsonaro deu o “de acordo” às novas regras para os partidos políticos, afrouxando a prática de caixa dois e lavagem de dinheiro. Não deu maiores explicações. Admito que ainda me surpreendo com o pregoeiro da honestidade e dos bons costumes.

Isso foi na sexta, 27. Mesmo dia em que foi preso Adailzinho, prefeito de Coari, município do Amazonas, acusado de corrupção. Roubalheira no talo. Menos de 450 quilômetros de Manaus, e a 6 horas de distância de Brasilia, por ar, terra e rio, o que acontece por lá é vício brasileiro. E assim promete esse novo Brasil velho.

Rica em royalties, localizada à beira do rio Solimões, Coari tem a segunda arrecadação do Amazonas. Perde para a capital. Lá está a plataforma de Urucu, da Petrobras. Muito dinheiro em beneficio de poucos... o tal prefeito e seus parças. Adailzinho aparecia uma vez por semana na cidade que o elegeu, e pagava débitos da prefeitura com 30% de propina.

Isso é Brasil. Coari é tudo isso aqui. Nesse mesmo final de semana, o presidente que prometia acabar com a corrupção e os mal feitos, recebeu no Palácio da Alvorada, pela segunda vez, extra agenda, o defensor do encrencado senador Flávio Bolsonaro. Flavio está envolvido em estranhas transações financeiras, identificadas pelo COAF.

Bolsonaro não deu satisfação ao público do que tratou com o advogado do filho 01. Age como sempre agiu. Dono de suas temíveis verdades e dos votos dos que tristemente o elegeram. Era previsível. Insano em declarações e ameaças, Jair Bolsonaro enganou cegos e surdos na politica.

Da semana que passou, Bolsonaro e Adailzinho só perderam para a escandalosa confissão de Rodrigo Janot, ex-Procurador Geral da República. Até quem o chamava de “esquisitíssimo”, e conhece seu temperamento desassossegado, não apostaria um real na possibilidade de Janot, então na PGR, entrar com um revólver no STF para matar o ministro Gilmar Mendes. Depois se matar.

Mas foi o que ele próprio contou em entrevista a Veja. No livro "Nada Menos que Tudo", escrito pelos jornalistas Jailton de Carvalho e Guilherme Evelin, Janot põe a nu políticos que tentaram cooptá-lo, ministros acovardados do STF, classifica Eduardo Cunha como o “pior dos criminosos”, e duvida do caráter ético do ex-juiz Sergio Moro.

Janot acredita que será julgado pela história. Escreveu um livro para dar sua versão dos fatos. Bolsonaro ainda tem tempo de procurar um ghost-writer. Alguém com estômago para ouvir suas “memórias”. A história, capitão, o julgará com mais rigor que Janot. Pode estar certo.
Mirian Guaraciaba

Pensamento do Dia


O ódio de Trump contra a imprensa contagiou o Brasil

Chegou ao Brasil o perigoso vírus do ódio à imprensa e aos meios de comunicação em geral, difundido pelo presidente norte-americano, Donald Trump, e que está contagiando as experiências autoritárias da nova extrema direita mundial, uma mistura de nazismo e fascismo modernos. É algo que se revela no fato de o presidente Jair Bolsonaro intensificar a cada dia seus ataques contra veículos aos quais acusa diretamente de estarem criando "uma imagem negativa” dele próprio e do Brasil no mundo. Acompanham-no nesse discurso seus filhos, alguns de seus ministros e até o general Heleno.

Mas é Bolsonaro quem mais se dedica a atacar a imprensa quando pode. Em suas famosas lives nas redes sociais, a imprensa era o segundo tema mais mencionado até o último dia 19, segundo o jornal Metrópole, que analisou todas as transmissões ao vivo que ele fez aos seus eleitores desde que assumiu o poder. O tema mais citado foi a reforma da Previdência. Num café da manhã com correspondentes estrangeiros, do qual participou Carla Jiménez, diretora da edição Brasil do EL PAÍS, o presidente acusou a imprensa brasileira de envenenar sua imagem no exterior: “Entendo perfeitamente o tamanho do envenenamento do Brasil fora dele”.


Os jornais locais noticiaram que, em sua recente viagem à ONU, Bolsonaro disse a Trump que o amava (“I love you”). Aparentemente, esse amor lhe inoculou a fórmula do ódio aos meios de comunicação e a estratégia, que começa a contagiar o mundo todo, de qualificar como fake news qualquer notícia que simplesmente o desagrade.

Sabemos, entretanto, que ao longo da História todos os aprendizes de ditadores começaram se irritando primeiro com as críticas recebidas na imprensa, e acabaram fechando-a ou transformando-a em um instrumento fiel, como ocorreu com o fascismo, o nazismo e o franquismo, por exemplo. Daí que já seja um clássico na política que os anátemas dos líderes políticos à imprensa sejam o presságio de tentações ditatoriais.

Todos os autoritarismos e extremismos, de direita ou de esquerda, concordam que os meios de comunicação, por amor à pátria, devem estar a favor de suas loucuras e fiéis aos seus ditames, sobretudo quando se leva em conta que tais movimentos extremistas costumam estar impregnados de misticismos religiosos e arroubos nacionalistas.

É curioso que no Brasil um dos filhos do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), indicado nada menos que a embaixador nos Estados Unidos, tenha candidamente admitido que o Governo do seu pai, que batiza eufemisticamente como “conservador”, ainda não conte com uma imprensa conservadora porque foi eleito “sem que houvesse uma universidade conservadora, uma militância conservadora organizada e sem um partido conservador”. E acrescentou: “Por isso tampouco temos uma imprensa conservadora”.

Esse discurso faz sentido aos seus eleitores mais radicais, que tomam as dores de seus governantes. São estimulados a sonhar com um poder que domine tudo, incapaz de conviver com as diferenças e com uma imprensa livre capaz de informar em liberdade. A imprensa se transforma em seguida, onde chega ao poder, em inimizade a combater, inclusive com ameaças de morte aos jornalistas que não se ajoelharem.

É o que acaba de denunciar o jornalista americano Jim Acosta, da CNN, autor do livro O Inimigo do Povo, em uma entrevista à Folha de S.Paulo. Ele, que foi humilhado publicamente por Trump por fazer perguntas das quais o presidente não gostou, está recebendo ameaças de morte, inclusive contra sua família, algo insólito nos Estados Unidos, onde sempre existiu, sob presidentes de todas as tendências, a máxima liberdade de expressão da mídia.

É verdade que nenhum governo, por mais progressista que seja, gosta das críticas da imprensa. Para eles, os meios de comunicação deveriam servir sobretudo para divulgar o bem que eles estão fazendo ao povo, e seria melhor que esquecessem seus pecados. Prefeririam todos uma imprensa asséptica, ou mesmo complacente. A diferença é que, para os ditadores ou aspirantes a tal, não basta esse “não gostar das críticas”; eles preferem emudecê-las, eliminando os protagonistas se for necessário.

Para testar o grau de maturidade democrática de um governo ou de um presidente, basta medir sua capacidade de aceitar críticas, respeitando a lei sagrada da liberdade de expressão ou sua tentação de dobrá-la ou eliminá-la. E, ao mesmo tempo, os meios de comunicação, que tampouco são sempre inocentes, medem seu grau de democracia na medida em que não se omitem de informar às pessoas sobre os desmandos do poder. Há momentos em que é justamente a imprensa que tem a responsabilidade sagrada de denunciar sem meias palavras quando a democracia começa a ser visivelmente ameaçada.

Na história das aberrações no campo da perseguição, não apenas dos jornalistas, mas das ideias, não é possível esquecer quando se fala em liberdade de expressão e de ideias, a famosa queima de livros em público, na Alemanha nazista, apenas porque não coincidiam com as ideias de Hitler. O regime organizou uma marcha com tochas e 25.000 livros foram queimados em público, entre eles obras de Freud, Einstein e Hemingway, arrancadas de bibliotecas e livrarias.

Naquela época, a escritora e ativista, surda e cega, Helen Keller levantou a voz para declarar que “a tirania não pode derrotar o poder das ideias”. E de nada serviu que o “amor cego” ao poder de turno fosse obrigado então nas escolas.

No Brasil já se viveu a censura durante a ditadura, quando jornais que inclusive tinham apoiado o golpe militar, como o Estado de S. Paulo, publicavam receitas ou poemas de Luís de Camões no lugar dos textos censurados. Mas é grave que fora do país comecem a ser ouvidos toques de sino de tentações autoritárias e nostalgias nazifascistas. Ainda não se estão queimando livros, mas já assustou todos os amantes da democracia e da liberdade o recolhimento de um livro de literatura infantil com desenhos de um casal gay na importante Bienal do Livro do Rio de Janeiro.

Na Alemanha de Hitler se exaltava a “limpeza do espírito alemão”, que era um passaporte a todas as aberrações, e se proclamava o slogan copiado hoje pelo presidente brasileiro: “Alemanha acima de tudo”. Aqui, é “Brasil acima de tudo” e, além disso, “Deus acima de todos”. Que Deus? Na Itália, Benito Mussolini, que era ateu militante, acabou como defensor do Vaticano e beijando o anel dos papas. E até batizou seus filhos como católicos. Os votos da Igreja valiam isso e muito mais.

Franco, na Espanha, considerado um militar sem religião, acabou saindo em procissão na rua, com o privilégio do Papa de andar sob o dossel como o Santíssimo Sacramento, acompanhado por bispos e cardeais que emudeceram quando o Caudilho começou a controlar os meios de comunicação colocando censores até dentro dos jornais, que decidiam o que se podia publicar ou não, pelo bem da Pátria.

Somente quando os primeiros jornais livres começaram a sair às ruas na Espanha, depois da morte do ditador em 1975 – entre eles este em que escrevo desde então –, as pessoas souberam que a barbárie de uma das ditaduras mais longas e duras da Europa havia perdido e a liberdade havia renascido.

Pouco tempo depois do restabelecimento da democracia ainda ressoavam ímpetos autoritários. Em 23 de fevereiro de 1981, militares atacaram o Congresso durante uma votação, em Madri. Com armas em punho, o tenente-coronel Antonio Tejero controlava o lugar e não escondia suas intenções. Retomar o poder para os militares. O então rei Juan Carlos repudiou o movimento, enquanto os tanques do Exército se dirigiam para tomar a redação do EL PAÍS. Sob intensa adrenalina, o então diretor Juan Luis Cebrián e sua equipe tiveram que reagir rapidamente. Para informar os espanhóis sobre o risco de cair novamente em mãos autoritárias, produziu uma edição especial do jornal e colocou na capa a manchete em letras grandes: “Golpe de Estado, EL PAÍS com a Constituição”.

Fizeram um rápido editorial dizendo que acontecesse o que fosse nas horas seguintes, o jornal estaria a favor da Constituição e da democracia. A edição especial começou a ser distribuída de mão em mão nas ruas para que as pessoas ficassem sabendo do que estava acontecendo e fortalecessem a resistência. Havia uma missão especial que era fazer chegar um exemplar com o duro editorial ao Congresso ocupado militarmente. Assim os golpistas saberiam que não teriam o poder tão fácil. Quando o exemplar do EL PAÍS entrou no Congresso, os jornalistas presentes entenderam que o golpe havia fracassado e a democracia tinha ganhado.
Juan Arias

Uma viagem no túnel do tempo

Camisa polo, crachá no pescoço, o bilionário agricultor Blairo Maggi, 63 anos, se surpreendia a cada passo no Vale do Silício (EUA). Mês passado, visitou-o com executivos da sua Amaggi, cujo lucro subiu 50,5% (R$ 804,8 milhões). Imaginaram uma viagem ao futuro, mas na Califórnia descobriram a relatividade do tempo. Principalmente, no agronegócio (44% do total de exportações brasileiras).

Maggi, maior produtor mundial de soja, espantou-se com a transformação no campo. A lavoura já opera máquinas capazes de identificar doenças em plantas, medir teor de argila e nível de fertilidade do solo, indicar se as vacas "tão prenhas" e monitorar a gestação e doenças.

Provou e gostou das carnes de boi, de aves, ovos e leite feitos em laboratório a partir de células-tronco. Ouviu sobre como a carne e o leite podem ter adição de vitaminas e remédios. Se crianças precisam de nutrientes, vacinas ou antibióticos, a dose vai adicionada à carne ou leite, com mesmo sabor. O leite de laboratório já tem 20% do mercado dos EUA.

Mais surpreendente foram as hortas verticais da Plenty. Elas mostram ser possível alimentar milhares com pequenas fazendas, usando 99% menos terra que o padrão brasileiro, com somente 5% do atual consumo de água, sem pesticidas e sementes transgênicas. As plantas crescem durante 18 horas por dia, com qualidade três vezes acima da habitual, em safra contínua. Maggi degustou alfaces. Achou "ótimas".

No Brasil, a novidade é o peso do custo Bolsonaro no caixa das empresas do agronegócio, efeito da retórica radical de um presidente em constante fuga da realidade. Em paralelo, cerca de 350 empresas de tecnologia para agropecuária paralisaram investimentos à espera da anunciada regulamentação setorial. O governo segue patinando num cipoal 75 mil leis produzidas nos últimos 17 anos. São 290 páginas e 820 artigos com regras num único decreto (6.759/2002). E há 602 portarias que afetam a tecnologia e os negócios de alimentos.

Em Brasília, o milagre da modernidade é outro. Como escreveu o poeta Cacaso, "a água já não vira vinho, vira direto vinagre".

Bolsonaro ganha novos heróis: Toffoli e Gilmar

Há uma enorme falta de sintonia entre o discurso de Jair Bolsonaro e a blindagem oferecida ao primogênito Flávio Bolsonaro. O pai diz representar a "nova política". Jura que não tolera a corrupção. O filho, acusado de peculato e lavagem de dinheiro, declara que é honesto. Mas não faz muita questão de demonstrar. É um virtuoso pouco convencional. Em vez de apressar o processo para provar rapidamente sua inocência, Flávio quebra lanças para trancar a investigação. Tornou-se um caso inédito de político superblindado.


Flávio Bolsonaro já dispunha de liminar expedida em julho pelo presidente do Supremo, Dias Toffoli —aquela que suspendeu em todo país os processos fornidos com dados detalhados do Coaf. O Zero Um passou a dispor de um segundo escudo, fornecido dessa vez pelo supremo guardião dos direitos individuais Gilmar Mendes. O Supremo colocou uma trava adicional numa porta que já estava lacrada.

Vale a pena relembrar o que dizia Jair Bolsonaro em dezembro, pouco antes de tomar posse na Presidência sobre a investigação que nasceu de uma movimentação bancária suspeita de Fabricio Queiroz, o faz tudo dos Bolsonaro. Dizia o presidente: "Se algo estiver errado —seja comigo, com meu filho ou com o Queiroz— que paguemos a conta deste erro. Não podemos comungar com erro de ninguém. O que a gente mais quer é que seja esclarecido o mais rápido possível."

Quem observa a conjuntura atual não enxerga em cena esse Jair Bolsonaro de dezembro. Hoje, o pai transforma a blindagem do primeiro-filho num processo de oxidação do próprio governo. Na Idade Mídia, em que a vida escorre pelas redes sociais, a nova realidade deixa atordoados os súditos virtuais do bolsonarismo. Para quem defendia o fechamento do Supremo Tribunal Federal, passar a tratar Dias Toffoli e Gilmar Mendes como heróis da resistência é um processo que exige uma revolução mental.