domingo, 7 de abril de 2019

Gente fora do mapa

Crise na Argentina leva 2,7 milhões à pobreza em seis meses 

Das bizarrices e das mentiras

O que é espantoso neste governo é como ele é capaz de perder o próprio tempo e o nosso. Bizarrices, debates ociosos ocupam as horas e consomem energias que deveriam estar dedicadas ao esforço de enfrentar os inúmeros problemas que o país tem. Perder tempo quando se tem tanto o que fazer é ruim. Mas são as mentiras que mais ameaçam. Se a ditadura foi ditadura, se o Hitler era de direita ou esquerda, se é melhor ir aos bancos para saber o número de desempregados em vez de consultar o IBGE, se o diálogo do presidente com os partidos é velha ou nova política. Esses são exemplos de temas pautados por este governo. Parecem só inutilidades, mas são, muitas vezes, mentiras perigosas.

O presidente dizer que não se arrepende de ter feito xixi na cama com cinco anos é bizarro. Quando ele compara esse ato infantil involuntário com a defesa que fez na vida adulta de fechamento do Congresso passa a ser ameaça. Ele nunca soube dar peso às próprias palavras, mas exibir, como presidente, essa desordem no sistema de valores é assustador.


É preciso saber separar. De tudo o que fez, falou e provocou na última semana, a mais perigosa é a revisão do passado. Quem diz que não houve golpe nem ditadura no Brasil não está provocando polêmica, está mentindo. Algumas questões da História comportam interpretações, outras, não. Esta é uma república que já viveu dois graves e longos ciclos autoritários.

Um regime que fechou várias vezes o Congresso, interferiu no Judiciário, suspendeu garantias constitucionais, impôs uma constituição autoritária, cassou, prendeu, torturou, matou e ocultou cadáveres de opositores, proibiu estudante de estudar, suspendeu eleições, censurou a imprensa é uma ditadura. Não cabe relativizar. É fato absoluto. Relativa é a tendência política de cada um. O presidente Bolsonaro gostou do período, acha que foi um bom momento, e que os atos do regime não foram crimes. Cada um é livre para ter a própria opinião. Pode gostar ou não. No caso de um presidente da República, essa preferência tem que pôr em alerta as instituições.

A discussão não é apenas bizantina, não é mais uma esquisitice do governo, nem deve ser vista com a condescendência que se dedica aos loucos. Na quarta-feira, Vélez Rodriguez falou em mudar livros escolares. A ideia de impor aos jovens uma versão mentirosa dos fatos históricos é criminosa e ataca a ordem constitucional. Tratar como sendo mais um sintoma de sandice pode ser o pior risco. A queda do ministro não resolve o problema, porque a ideia pode sobreviver a ele.

A revisão histórica em relação ao nazismo é horripilante, porque é a tentativa de reescrever uma das páginas mais dolorosas do século XX: o holocausto dos judeus na Alemanha de Hitler. Não se brinca com questão de tal gravidade. Relativizar o que houve é o primeiro passo para esquecer o que jamais pode ser esquecido.

Na extraordinária capacidade de o governo nos fazer perder tempo, apesar da agenda lotada de questões urgentes, há uma enorme dose de falta de noção. Dias e dias foram perdidos com ofensas em redes sociais de pai e filhos a potenciais aliados na agenda econômica, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. As lutas travadas entre olavetes e não olavetes, os tuítes mal escritos, insensatos e agressivos dos filhos do presidente, a criação de entidades desconhecidas do mundo real são exemplos do mais puro desperdício de tempo.

O perigo é o país se cansar de tanto assunto sem sentido que o governo traz à tona e deixar de reagir com a veemência necessária àquelas questões que realmente nos ameaçam. Intervir na metodologia do IBGE, reescrever livros de história, deixar a educação à deriva, fazer apologia de crimes políticos passados são riscos graves contra os quais o país precisa se proteger.

Quem foi eleito governa durante o seu mandato, cumpre sua agenda, monta sua aliança, nomeia os ministros, tenta passar no Congresso as medidas que acha relevantes para seu projeto. Esse é o jogo democrático. Quem foi eleito não vira dono do país. As instituições precisam estar atentas aos perigos reais que podem estar atrás de uma frase sem noção, de um ato descabido, uma leviandade, uma mentira que se tenta impor como verdade. A democracia em tempos modernos não tem morte súbita. Morre aos poucos.

Frustrações de 2019 podem levar país à fadiga de um ajuste econômico que nem houve

“Fadiga de ajuste” é o nome elegante que se dá ao fim da paciência com o corte de gastos públicos de governos com dívidas excessivas. O Brasil está no quinto ano de um ajuste que não houve e no sexto ano do que se pode chamar de depressão, na falta de termo melhor.

Caso houvesse algum crescimento econômico, igual ou maior que 2,5% ao ano, o custo do ajuste talvez fosse em parte compensado por renda e emprego.

No entanto, o estoque de estrago socioeconômico é muito grande, o ajuste no Brasil ainda está para começar, o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) deste ano tende a 1,5% e começa a se discutir se 2,5% é uma estimativa realista para 2020.

Talvez tenha havido paciência e esperança no fim de 2018 por causa da eleição, como de costume, e porque muita gente acha que, “acabando a corrupção”, haveria dinheiro. Não haverá.

Há é nova frustração: baixa da confiança econômica, desprestígio crescente de Jair Bolsonaro e uma piora das condições financeiras que vai começar a incomodar, em breve, “se persistirem os sintomas”.

Na “fadiga de ajuste”, a irritação social, econômica e, enfim, política provoca a suspensão ou o retrocesso do programa de ajuste fiscal (o plano de levar o governo a gastar menos do que arrecada, o bastante para fazer com que, em algum momento, a dívida pública comece a cair). Mas não houve ajuste ainda.

O gasto federal apenas parou de aumentar. Está no mesmo nível de 2014, final de Dilma 1. Como proporção do PIB, é maior. O que encolheu foi aquela despesa que sobra quando se pagam Previdência e salário dos servidores.

O déficit primário ainda é enorme e não deve ser zerado antes de 2021. Depois disso, seria preciso ainda fazer poupança a fim de abater a dívida.

Se vier de fato ajuste, as aposentadorias ficarão para mais tarde e muitos benefícios previdenciários terão seu valor contido ou reduzido. O salário mínimo deve ficar estagnado, em termos reais, por um par de anos, pelo menos. Dificilmente o gasto em educação e saúde, per capita, vai aumentar, sendo otimista. Não vai haver ampliação de outros programas como o Bolsa Família.

Caso as concessões de infraestrutura para empresas privadas tenham muito sucesso, as obras em estradas, ferrovias etc. começarão de modo mais notável apenas em fins de 2020.

Portanto, há motivos plausíveis para uma “fadiga de ajuste” ou, pelo menos, para o fim da paciência de muita gente. Difícil é saber como o desespero viria a se manifestar e o que se vai fazer politicamente do assunto. Vão surgir ideias, com apoio político, de mudar o programa econômico vitorioso desde o processo de deposição de Dilma Rousseff?

Em caso de retrocesso na arrumação das contas públicas, haveria crise recessiva. Suponha-se que o ajuste prossiga. Alguma irritação popular de fundo tende a permanecer, pois nem haverá crescimento suficiente tão cedo nem derrubada do programa “liberal”, “austericida”, de “consolidação fiscal”, “reformas”, o nome que se dê.

Ou o povo vai se escorar na fé, na revolução moral? Maluquices sempre podem acontecer. A Venezuela faminta está sendo reduzida a pó e não explodiu.

Uma revolta popular é sempre imprevisível. Sem esse tumulto furioso, é possível que o Congresso tenda à inércia, ainda mais porque será cada vez mais pressionado pela elite econômica a fazer o ajuste.

O desgosto vai aparecer nas urnas de 2020? Com um voto ainda mais à direita ou de desconfiança em quem foi eleito em 2018? Algo pior?

Os 100 dias de governo Bolsonaro em versos

Cem dias sem glórias

Na sexta-feira, Jair Bolsonaro refletiu em voz alta sobre os primeiros meses no poder. “Desculpem as caneladas. Não nasci para ser presidente, nasci para ser militar”, disse. Diante de uma plateia de servidores, ele emendou outra inconfidência: “Eu às vezes pergunto, olho para Deus e falo: ‘Meu Deus, o que é que eu fiz para merecer isso?’ É só problema!”.

Se Ele for mesmo brasileiro, já deve ter se cansado de ouvir essa pergunta nos últimos tempos.

Bolsonaro está prestes a completar cem dias no Planalto. Ainda é cedo para julgar o governo, mas já ficou claro que o presidente não estava preparado para o cargo.


O presidente passou os últimos 28 anos no Congresso, quase o dobro dos 15 que viveu nos quartéis. Dedicou sete mandatos à fabricação de polêmicas e à busca incessante pelo confronto. A vocação para a guerra o ajudou a se eleger, mas tem se revelado um obstáculo para governar.

Até aqui, o capitão já abriu fogo contra adversários reais e imaginários. Bradou contra o socialismo, atacou países vizinhos, ofendeu parceiros comerciais e brigou com políticos que se dispunham a apoiá-lo.

Um deles foi o presidente da Câmara, que revidou as provocações com derrotas amargas para o governo. Num dos capítulos do bate-boca, ele disse que Bolsonaro “está brincando de presidir o Brasil”. Não é o único a fazer o diagnóstico.

Além de manter o tom belicoso da campanha, o presidente permitiu que a Esplanada virasse um parque de diversões da extrema direita.

Nos episódios mais caricatos da disneylândia olavista, a ministra das Mulheres disse que as meninas deveriam vestir rosa e o ministro das Relações Exteriores prometeu libertar o Itamaraty do “marxismo cultural”. No mais perigoso, o ministro da Educação ameaçou mudar os livros didáticos para exaltar o golpe de 1964.

O Planalto dá aval às maluquices quando o presidente reverencia um guru desbocado e a Secretaria de Comunicação divulga vídeo apócrifo com elogios à ditadura.

As confusões da largada produziram um desgaste precoce no governo. A popularidade do presidente despencou 15 pontos, e o mercado financeiro começou a trocar a euforia pela cautela. As previsões para o PIB deste ano caem há cinco semanas seguidas, de acordo com o boletim Focus do Banco Central. Na edição passada, o índice estreou abaixo dos 2%. O relatório é anterior ao tchtchucagate, que expôs o pavio curto do ministro Paulo Guedes e a falta de articulação para defendê-lo na Câmara.

Política do atraso, presente!

Quando eu entro no Congresso e sou chamada de burra, delinquente, débil mental e outras coisas que já me chamaram em plenário… É um risco muito fácil você acreditar porque está todo mundo dizendo que você não é boa o suficiente
Tabata Amaral (PDT-SP), formada na Universidade de Harvard

Velha e boa política

Houve um tempo no Brasil em que as pessoas podiam discordar, fazer campanha e votar contra determinado candidato, mas o país orgulhava-se de seus políticos, dos líderes de partidos, das figuras que se destacavam no cenário nacional, mesmo que fossem adversários. Naqueles dias, como hoje, alguns desses homens desrespeitavam a confiança depositada neles pelos cidadãos e roubavam dos cofres públicos. Nenhuma novidade nisso. A diferença é que no passado os criminosos ficavam impunes. Hoje, vão para a cadeia.

Naquela época , os políticos governavam com alianças de partidos, a maioria feita antes das eleições. Governar supunha dividir o poder, compartilhar responsabilidades, somar forças para aprovar a plataforma pela qual o candidato majoritário tinha sido eleito. Também aqui, nenhum mistério, nenhuma novidade. Os cargos de primeiro e segundo escalões eram distribuídos entre as forças políticas que venceram a eleição e passaram a governar o país.

Não era crime fazer política naquele tempo. Curiosamente, a política só passou a ser “criminalizada” quando os casos de corrupção começaram a ser desvendados, e os ladrões presos. O fato é que ninguém governa sozinho. Distribuir cargos entre aliados não é errado. Se alguém roubar, tem que ser punido. Ponto. Imaginem se o PT conseguiria governar sozinho. Ou o PSDB. Você acha que se será possível a Bolsonaro cumprir suas promessas de campanha se tiver ao seu lado apenas o PSL? Duvido.


Não existe velha ou nova política. Ela é uma só. É a ciência de governar, organizar, dirigir e administrar uma comunidade, um estado, uma nação. E esse tipo de atividade não se faz solitariamente em um gabinete. Se a velha política fosse diferente e não prestasse, o que diríamos de vultos históricos como Juscelino Kubitschek, Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Leonel Brizola, Franco Montoro, Itamar Franco?

Juscelino modernizou o país, criou Brasília e foi o pai da industrialização da nação. Num determinado dia de seu governo, recebeu no Palácio do Catete a diretoria da UNE que não lhe dava trégua na luta política. Pediu para o presidente da entidade sentar à cabeceira da mesa e declarou: “Diga-me o que eu tenho que fazer e eu lhe explico porque não dá”.

Tancredo foi o pai da tolerância. Costurou com uma habilidade impressionante a transição da ditadura para a democracia, sendo eleito presidente pelo colégio eleitoral de 1985. Sua articulação lhe custou a vida, já que para tocar a redemocratização escondeu de todos, até da família, uma dor que lhe dilacerava o abdome. Era um câncer de intestino que poderia ser curado se tratado a tempo, mas que acabou resultando na sua morte sem que assumisse a Presidência.

Ulysses , conhecido em seu tempo como Senhor Diretas, foi o principal líder da oposição à ditadura. Responsável pela memorável campanha das Diretas Já e pai da Constituição de 1988, presidindo a constituinte que a redigiu com uma firmeza histórica.

Brizola foi um caso raro de político que conseguiu ser eleito governador, em épocas distintas, de dois estados, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. Considerado em seu tempo um radical de esquerda, seria hoje chamado de nacionalista pela esquerda brasileira.

Montoro foi o primeiro governador eleito de São Paulo depois da ditadura. Construiu uma aliança com políticos robustos e montou um secretariado com nomes que fizeram história depois dele: Mário Covas, Fernando Henrique Cardoso e José Serra.

Itamar restaurou a dignidade ao cargo de presidente da República após o impeachment de Fernando Collor. Criou o carro popular e apoiou os criadores do Plano Real. Mudou o país.

Foram esses e outros homens como eles que fizeram da política uma arte nobre e respeitada. Há muitos jovens hoje no Congresso Nacional, e em todos os partidos, tão bons e honestos como esses vultos da história. Muitos são excelentes e poderiam participar de qualquer governo. Mas há também os que desrespeitam esta arte e não merecem dela participar. São os velhacos da política. Esses sempre existiram. Ontem e hoje.

Em 100 dias, Bolsonaro não levou governo para a direita, puxou-o para baixo

É falsa a impressão de que Jair Bolsonaro leva o governo para a direita. Puxa-o para baixo. Sem oposição, Jair desperdiçou os primeiros cem dias criando problemas para Bolsonaro. A fatura da inépcia começa a ser cobrada, indica o Datafolha. O capitão cavalga a pior avaliação já atribuída a um presidente em início de governo desde a redemocratização, em 1985. 

Decepcionou até quem gosta dele. Quase metade dos seus eleitores negaram-se a avaliá-lo como um presidente ótimo ou bom.

Na campanha eleitoral, Bolsonaro não tinha um programa de governo nítido. Ele dispunha de um bordão —"Brasil acima de tudo, Deus acima de todos"— e de um versículo do Evangelho de João —"Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará". Descobre agora que, embora Deus esteja em toda parte, o demônio controla o Planalto quando não há uma diretriz. Percebe que a verdade à luz do gabinete presidencial não é a mesma ao sol das filas onde se desesperam 13 milhões de desempregados.

Para prevalecer nas urnas, bastou a Bolsonaro surfar na onda do antipetismo e enrolar-se na bandeira antissistêmica. Instalado no Planalto, enviou duas reformas ao Congresso —previdenciária e anticrime— e disse que sua parte estava cumprida. Aliviado, passou a distribuir caneladas em potenciais aliados. Entre eles o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, dono da pauta de votações. Com 28 anos de experiência parlamentar, Bolsonaro não havia notado que o pior tipo de ilusão que pode acometer um presidente é a ilusão de que preside.

A ideia de que o Planalto manda e o Congresso obedece custou o mandato de Dilma Rousseff. O custo da impopularidade de Bolsonaro não será apenas político, mas financeiro. Diante do declínio da credibilidade do presidente junto ao eleitorado, o preço do reconhecimento da legitimidade de sua Presidência no Legislativo vai subir. Mantida a curva descendente do índice de popularidade, a cotação do apoio ficará pela hora da morte. A negociação não se dará no atacado, mas no varejo, projeto a projeto.

Há muitas providências óbvias que Bolsonaro precisaria adotar para fechar o dreno que sorve o seu prestígio. Por exemplo: fechar a usina de polêmicas, regulamentar os hábitos da "filhocracia" tomar distância dos rolos que assediam o primogênito Flávio, desligar Olavo de Carvalho da tomada, trocar o elenco da ala circense da Esplanada (MEC, Itamaraty e Direitos Humanos), higienizar certos ministérios (o Turismo é um bom começo) e fazer política a sério. Mas isso não é o suficiente.

Quando Bolsonaro conseguir parar de conspirar contra si mesmo, terá de dedicar-se a atividades menos estéreis do que falar mal dos outros e elogiar a ditadura militar. Quem sabe encontre tempo para tarefas menores como, digamos, trabalhar. Do contrário, é melhor "jair se acostumando" com os índices de popularidade duros de roer. O capitão foi eleito para resolver problemas, não para se tornar um problema.

A legitimidade de um governante, quando desacompanhada da credibilidade que vem com os resultados, é como o amor do Soneto de Fidelidade, de Vinicius de Moraes: não é imortal, posto que é chama. É infinita enquanto dura. Mantida a marcha atual, as ruas logo ordenarão: "Pra baixo, volver!"

Paisagem brasileira

Araçoiaba da Serra (SP), Joel Firmino do Amaral - 1951

Um presidente e o seu abacaxi

Sempre que Lula dizia inconveniências, os assessores dele na presidência da República saíam imediatamente em seu socorro. Chamavam os jornalistas e diziam assim: “Não levem a sério. Foi brincadeira dele, só brincadeira.”

A diferença de Lula para o presidente Jair Bolsonaro é que o capitão dispara inconveniências sorrindo, e às vezes acompanhadas de um “taokey”. E aí os jornalistas se sentem obrigados a escrever: “Sorrindo…”

Ou então eles escrevem: “Em tom de piada…” Porque para os jornalistas, mas não somente para eles, muitas vezes soam como piadas certas coisas ditas por Bolsonaro, sorrindo ou sério.


Entre tantos disparates cometidos por ele em três ocasiões distintas, vale a pena destacar as que seguem. Elas parecem trair o visível desconforto de Bolsonaro com suas novas funções.

“Desculpem as caneladas, não nasci para ser presidente, nasci para ser militar, mas no momento estou nessa condição de presidente e, junto com vocês, nós podemos mudar o destino do Brasil”.

“Não tenho qualquer ambição, não me sobe à cabeça o fato de ser presidente. Eu me pergunto, olho pra Deus e pergunto: Meu Deus, o que eu fiz para merecer isso? É só problema.”

“Confesso que nunca esperava chegar à situação que me encontro. Primeiro porque sobrevivi a um atentado, um milagre. Depois, o outro milagre foi a eleição. A gente estava contra tudo, né? Imprensa, fakenews, tempo de televisão, recurso de campanha… Mas Deus estava do nosso lado”.

“Na campanha, eu disse que em janeiro ou estaria aqui nessa cadeira ou na de praia. Me dei mal. Pode assumir a cadeira, Moro!”

No meio desta semana, em visita a Israel, Bolsonaro afirmou que governar era um abacaxi. Talvez por isso ele seja o único presidente desde a redemocratização do país que já faltou ao expediente no Palácio do Planalto para ir pela manhã ao cinema com a mulher.

Sim, de outra vez ele faltou a parte do expediente da tarde para ir rezar com amigos. Bolsonaro está muito bem de saúde. Não é por causa dela que volta cedo para o Palácio da Alvorada onde mora. Antes de ir dormir, confere se o revolver está ao alcance da mão.

Seu compromisso com o que diz é quase sempre ralo. Em café da manhã com os jornalistas, ele deu todas as indicações de que na próxima segunda-feira demitirá do cargo o desastroso ministro da Educação. No final da tarde, admitiu que ele poderá fica.

Por sinal, ao referir-se à sua equipe de governo, Bolsonaro o fez em tom de queixa: “A maioria dos ministros não tem nenhuma habilidade política. Vivência política. Ontem, alguns (presidentes de partido) reclamaram de ministros, de bancos oficiais”.

Para desespero do seu ministro da Economia, Paulo Guedes, ao falar sobre a reforma da Previdência, Bolsonaro reconheceu que o Congresso não irá aprová-la do jeito que foi proposta. Isso até Guedes sabe. Mas não é assim que se negocia, ora.

Se a reforma for mais esquálida do que se anuncia, parte da culpa por isso caberá a Bolsonaro. E se for esquálida a um ponto que desagrade Guedes, ele simplesmente irá embora.

Pensamento circense

Deve ter sido fake news criada pelos iluministas para ridicularizar a Igreja. A lenda, ainda assim, se consagrou: consta que os teólogos medievais se dedicavam a debater quantos anjos poderiam dançar na cabeça de um alfinete. Nas últimas semanas, o Brasil vem discutindo temas não tão etéreos, mas bem mais esdrúxulos: o nazismo seria um movimento de esquerda? E o regime militar instaurado no Brasil em 1964 terá sido mesmo uma ditadura? A resposta inequívoca a essas questões é, pela ordem, “não” e “sim”. Mais recomendável, porém, será evitar, nas situações sociais cotidianas, aquele chato que vem nos trazer a verdade revelada do esquerdismo de Hitler e do heroísmo do general Médici.


Pena que aos brasileiros essa opção foi negada: o nazismo de esquerda e a quartelada democrática que nos salvou do comunismo no 31 de março foram temas impostos ao país pelo mais alto mandatário do Executivo e por seus ministros — em particular, o bizantino Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, que vê demônios globalistas dançando na cabeça de qualquer um que critique seu cruzadismo. Este é um governo que promove ativamente teses que até ontem só vicejavam nos recessos insalubres da baixa blogosfera direitista.

O absurdo historiográfico patrocinado pelas mais altas autoridades do país não é mero colorido folclórico da “nova política” que se anuncia desde a campanha eleitoral. Bolsonaro devota-se a essas asneiras com uma paixão que não demonstra em temas realmente cruciais para o Brasil. Foi o presidente que ordenou a comemoração, nos quartéis, do golpe de 1964 , e foi ele que, na terça-feira 2, saiu de uma visita ao Museu do Holocausto, em Jerusalém, dizendo que o nazismo foi “sem dúvida” de esquerda — ecoava assim afirmações do chanceler Araújo em seu blog, Metapolítica. Com a bênção do “mito”, o Brasil se vê engolfado em um mal-ajambrado revisionismo histórico. É o império do que João Cezar de Castro Rocha, crítico literário e professor da Uerj, definiu, em sua coluna em VEJA, como “analfabetismo ideológico”.

Castro Rocha cunhou o termo a partir da expressão corrente “analfabetismo funcional” — a incapacidade de entender e interpretar corretamente um texto. O analfabeto ideológico, porém, maneja bem as armas da retórica. “Analfabetismo ideológico significa reduzir o ato de leitura a uma projeção no texto de um sentido previamente determinado pela ideologia do leitor”, define Castro Rocha.

Como o analfabeto ideológico tem um “razoável nível de competência”, sua habilidade para distorcer fatos seria “potencialmente infinita”. O golpe de Estado que destituiu João Goulart transforma-se assim na Revolução Redentora que salvou o país do comunismo. E a ditadura que cassou políticos — inclusive apoiadores de primeira hora como Carlos Lacerda —, censurou a imprensa, matou e torturou opositores converte-se no regime benfazejo que preservou a democracia brasileira. Um governo de orientação liberal ou conservadora poderia, sim, propiciar um ambiente no qual certas mistificações da esquerda fossem contestadas — em especial, a exaltação, sem nenhuma autocrítica, de guerrilheiros que assaltavam bancos e sequestravam embaixadores sonhando com uma Cuba de dimensões continentais no sul da América. A tese propalada pelos bolsonaristas, porém, quer negar a natureza claramente autoritária dos governos militares que esses movimentos desejavam derrubar.

Para atestar sua tese de que o nazismo é de esquerda, Bolsonaro aventou um argumento que caberia em um meme do Facebook: o nome oficial do partido nazista alemão era Partido Nacional Socialista. Socialismo é de esquerda, ergo… No pós-guerra, a Alemanha Oriental, comunista, chamava-se oficialmente República Democrática da Alemanha. Alguém dirá que se tratava de uma democracia de fato? Ernesto Araújo, em seu blog, tentou fundamentar a tese a partir das similaridades entre nazismo e comunismo, entre elas a rejeição da democracia liberal e a centralidade absoluta do Estado. São temas examinados no clássico Origens do Totalitarismo, de Hannah Arendt — mas a filósofa alemã não cometeu o despautério de alinhar à esquerda o nazismo, reconhecido a seu tempo como um movimento nacionalista direitista. Nascida na Assembleia Nacional Francesa, no século XVIII, a divisão do campo político em esquerda e direita é fluida — muda conforme o tempo e o lugar —, mas há um firme consenso sobre seus pontos extremos: comunismo à esquerda, nazismo à direita.

Nesses dois casos, está em cena um fenômeno que a psicologia social designa como “polarização factual” — no qual grupos políticos discordam não só sobre interpretações ou visões ideológicas, mas sobre fatos estabelecidos. Thomas Conti, economista e professor do Insper, recentemente explicou o conceito em um artigo esclarecedor no portal Estado da Arte, do jornal O Estado de S. Paulo. Conti não citou exemplos da política nacional, mas o conceito é adequado à propaganda ideológica do governo. “Ditadura é uma forma de governo bem definida, caracterizada por diversos limites à participação política dos cidadãos”, disse Conti a VEJA. Não há dúvida, portanto, de que o regime de 1964 foi ditatorial. Conti considera que ainda existe um debate razoável sobre a natureza do nazismo, sobretudo a partir de Hannah Arendt. Mas a afirmação categórica de que o nazismo é de esquerda constitui um “revisionismo histórico forte”, e nesse sentido cabe na polarização factual. O reforço de identidades grupais é bem servido pela polarização. E o confronto com o grupo adversário é importante: não por acaso, Araújo diz que “a esquerda fica apavorada” quando se empurra o nazismo para seu campo.

A polarização delirante produz aberrações que são até divertidas. Em um programa na rádio Jovem Pan, Maristela Basso, professora de direito da USP, entusiasmou-se na crítica à ditadura da Venezuela: disse que seu remoto inspirador, Simón Bolívar, viveu em um tempo no qual “as leituras de Marx e Lenin” estavam no auge. Bolívar morreu em 1830, quando o futuro autor de O Capital contava tenros 12 anos; Lenin nasceria quarenta anos depois. A anedota fica ainda mais engraçada quando se considera que Marx desprezava Bolívar: escreveu para uma enciclopédia americana um verbete cáustico sobre o “Libertador”, a quem também chamou, em carta ao amigo Friedrich Engels, de “o mais covarde, brutal e miserável dos canalhas”. O deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP), em um vídeo depois apagado do canal MBL no YouTube, prestou-¬se a explicar o duvidoso conceito de “marxismo cultural”.

Começou com uma explanação escolar do pensamento de Marx, e já errou dizendo que, no esquema geral das mudanças revolucionárias preconizadas pelo filósofo, o socialismo viria depois do comunismo (é o contrário). E logo veio o anacronismo selvagem: Kataguiri afirmou que Marx revisou certas ideias a partir da I Guerra Mundial. Marx morreu em 1883, 31 anos antes do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, estopim do conflito.

A ignorância pode ser corrigida — mas não quando se trata de ignorância militante. Os factoides ideológicos do bolsonarismo não se limitam a bobagens ditas em canais do YouTube, a opiniões esquisitas proferidas em passeios por Israel ou à ordem do dia dos quartéis. São parte da política do Estado. O inacreditável ministro da Educação, Vélez Rodríguez, já anuncia livros didáticos que negarão a ditadura militar de 1964. Nesse caso, não dá mais para rir.

O desafio urgente da pobreza

Puxada pelos preços da comida, a inflação dos mais pobres está mais alta que a dos brasileiros de outras classes de renda. Não se trata só de números, mas de drama vivido no dia a dia. Quem ganha pouco usa uma parcela maior de seus ganhos para comer e para alimentar a família. Pouco sobra, quando sobra, para outras despesas, como saúde, habitação, vestuário e transporte.

Quando se levam em conta esses dados, fica mais claro o desastre provocado pela crise econômica dos últimos anos. Segundo o Banco Mundial, entre 2014 e 2017 mais 7,3 milhões de brasileiros caíram na pobreza e passaram a viver com renda mensal de até US$ 5,50 por dia, algo equivalente, pelo câmbio atual, a cerca de R$ 635 por mês. Com a economia fraca e ainda travada por muitas incertezas, há pouca esperança de retorno em um ano ou dois ao nível de atividade, já baixo, de 2014.

Pelas contas do Banco Mundial, o grupo dos pobres cresceu de 17,9% para 21% da população brasileira nos anos de crise. Se a porcentagem se tiver mantido, corresponde hoje a uns 43,9 milhões de indivíduos. A experiência dessas pessoas teria sido mais penosa, nos últimos anos, se os preços da comida tivessem crescido mais rapidamente. Mas nem o conforto dos preços estáveis e do consumo acessível se mantém neste início de ano.


Más condições de tempo comprometeram a produção de vários itens, e o custo da alimentação deu um salto razoável.

Os efeitos são bem visíveis nos cálculos da inflação enfrentada pelas famílias de baixa renda. Os últimos dados são os do Índice de Preços ao Consumidor – Classe 1 (IPC-C1), elaborado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Esse indicador, baseado no orçamento das famílias com renda mensal de 1 a 2,5 salários mínimos, subiu 0,49% em fevereiro, 0,67% em março, 1,77% no ano e 5,42% em 12 meses.

O indicador dos pobres deixou para trás, com essa disparada, o tradicional e mais amplo Índice de Preços ao Consumidor (IPC), referente aos gastos médios de famílias com ganhos mensais entre 1 e 33 salários mínimos. O IPC aumentou 0,35% em fevereiro, 0,65% em março e 4,88% em 12 meses. Durante um longo período, as posições tinham sido diferentes, com as famílias de baixa renda enfrentando uma inflação mais suave e um pouco menos penosa para consumidores com orçamento mensal muito estreito.

Segundo a FGV, o custo da alimentação para as famílias de baixa renda subiu 7,93% nos 12 meses terminados em março. Foi, de longe, o combustível mais importante da inflação de 5,42% suportada pelas famílias com renda mensal de até 2,5 salários mínimos. Itens como habitação (5,40%), transportes (4,76%) e saúde e cuidados pessoais (4,07%) também pressionaram o orçamento dessas famílias, mas com peso menor que o dos alimentos.

Em março, o custo da comida, com alta de 1,23%, foi de novo o principal fator inflacionário para os consumidores pobres. Os transportes ficaram 1,27% mais caros e também afetaram severamente a qualidade de vida, mas com impacto menor que da alimentação.

Com crescimento de apenas 1,1% em cada um dos últimos dois anos, a economia brasileira criou poucas oportunidades para redução do desemprego. O Brasil começou 2019 com cerca de 13 milhões de desempregados e alguma esperança de melhora já no primeiro ano do novo governo. O Banco Mundial ainda estima para o Brasil um crescimento econômico de 2,2% neste ano e de 2,5% em 2020. Economistas brasileiros têm mostrado menor otimismo. O Banco Central e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) atualmente estimam expansão de 2% para o Produto Interno Bruto (PIB) em 2019. No mercado, a mediana das projeções caiu para 1,98% na semana passada.

Reduzir a incerteza de empresários e consumidores deve ser o passo inicial para reanimar os negócios e gerar empregos – inicial, apenas, mas indispensável. Não se trata de melhorar números abstratos. Reverter o aumento da pobreza ocorrido nos últimos anos deve ser só o começo de um trabalho muito mais amplo. Nem todos os tuítes do mundo bastarão para realizá-lo.