segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Pensamento do Dia

 


Um país travado

Um país travado é um país que não descortina horizontes. O futuro se vislumbra sombrio, pois os impasses do presente não se resolvem. A dívida pública torna-se cada vez mais preocupante, a crise fiscal não consegue ser equacionada, o desemprego é enorme, a pandemia persiste e seus efeitos certamente se prolongarão para o próximo ano. Pessoas estão desorientadas e inseguras, com uma quebra brutal de expectativas. E no meio de situação de tal gravidade se discutem a reeleição de 2022 e uma série de questões menores e secundárias.

A trava econômica é de natureza política. Ela se traduz pela desconfiança e pela insegurança, sem que os investidores nacionais ou estrangeiros se sintam confortáveis para apostar num país paralisado em suas decisões. As reformas não andam, as discussões sobre o auxílio aos mais necessitados não encontram fontes de financiamento, sobretudo porque os privilegiados socialmente não querem abrir mão de seus benefícios, e o presidente não consegue decidir, embora a própria omissão seja uma forma de decisão. Envia-se uma reforma administrativa que não mexe com nenhum dos privilégios atuais do funcionalismo público, nem chega sequer a cogitar, mesmo para o futuro, de mudar os privilégios do Judiciário, do Ministério Público e do Poder Legislativo. Os mais carentes são, mais uma vez, os perdedores.


O presidente optou pela inação, atento aos seus grupos de apoio, agindo nas redes sociais, olhando para a sua reeleição. Segue a pauta conservadora que o elegeu, apesar de dar sinais cada vez mais evidentes de que não cumprirá suas promessas eleitorais de uma reforma liberal da economia. Pouco foi feito nessa área, salvo a reforma da Previdência. De um lado é consequente consigo mesmo, de outro é incoerente. Acontece que estamos no final da primeira metade de seu mandato e há um longo caminho a percorrer, uma senda em que pessoas morrem de covid-19, estão famintas e perdem esperança na procura de um emprego ou de um meio digno de vida. O Brasil não pode esperar 2022.

O que fazer? O instituto da reeleição foi um erro histórico. O governante assume suas funções pensando no horizonte eleitoral, quando deveria preocupar-se unicamente com o governamental. Sua função consiste em governar, e não em se reeleger. A reeleição, quando muito, deveria ser somente uma consequência, e não um projeto exercido cotidianamente. Quando das últimas eleições, o candidato Bolsonaro acertadamente se voltou contra o instituto da reeleição, ciente dos prejuízos que isso causa à Nação. Ao assumir o poder, mudou de posição. O mais sensato seria voltar à sua opinião anterior!

Se não mais pretende fazê-lo, haveria talvez uma possibilidade intermediária. O presidente interditaria o debate sobre as eleições de 2022, declarando que essa questão só se colocará, por exemplo, em março de 2022, assumindo uma atitude de governante. Sua justificativa seria evidente: os problemas do País precisam ser enfrentados, e com medidas concretas que contrariariam muitos interesses encastelados na atual estrutura de poder. Decidir significa contrariar, pois os não contemplados sempre manifestarão seu descontentamento. O norte deve ser o bem coletivo, o Brasil acima de todos. Se isso vai ou não favorecer a eventual pretensão reeleitoral do presidente, só o tempo dirá. Quanto antes decidir, melhor para o País e também para a sua imagem. O que não se deve, em todo caso, admitir é que o Brasil siga definhando, problemas se acumulando sem solução.

Se para isso for necessário uma reforma ministerial, então que afaste os ruídos internos e a belicosidade contra inimigos reais ou imaginários na cena nacional e estrangeira, e o faça em nome dessa renovação. Passaria a mensagem de que realizaria uma grande mudança para governar, preocupado com a crise e assumindo suas próprias responsabilidades. Certamente contaria com o apoio do Poder Legislativo, que tem mostrado convicção reformista, particularmente clara na aprovação da reforma da Previdência. Tem sido, infelizmente, subaproveitado por vaidades e conflitos totalmente desnecessários e secundários. O mesmo se diga do Supremo, que tenderia – com um apaziguamento político e não sendo objeto de ataques – a exercer menor protagonismo político. Poderia até ser menos demandado, tendo como efeito uma menor judicialização da política.

Urge que o presidente tome uma atitude de governante, e não de candidato antecipado de si mesmo. Se o fizer, o clima no País mudará substancialmente. Vivemos politicamente fraturados, radicalizados, para além da imensa divisão que se traduz por uma desigualdade social gritante. O Brasil poderá viver um período de paz política, propício ao diálogo e à busca de equacionar os nossos problemas. O presidente poderia propor uma pauta concreta de medidas a serem adotadas, tendo como eixo o coletivo, e não o atendimento dos distintos interesses particulares, sejam eles sociais, estamentais ou econômicos.

A paz política propicia o diálogo e, por via de consequência, o entendimento.

Compromissos fraternos

Meu bom e velho amigo Joca nos convidou para passar um fim de semana em sua casa, no meio do mato. Como eu e Renata somos agora só nós dois, e o netinho lindo, de 1 ano e meio, que podia nos ocupar um pouco, mal vemos (a mãe tem um medo que se pela do coronavírus), foi fácil aceitar o convite do Joca.

Joca mora numa borda da Mata Atlântica, de onde se podem ver tucanos, estranhas borboletas, maracanãs e maritacas, pequenas fauna e flora que parecem estar sempre renascendo. Podem-se observar macaquinhos, parece que pregos, bravos remanescentes da Mata Atlântica, planejando invadir a casa, em busca de alimento mais fácil. Aposto que, se os outros animais do planeta tivessem as mesmas virtudes de organização que temos, praticariam sem dúvida a mesma política de extermínio que praticamos, eliminando o que incomoda e atrapalha nossos planos materiais. Escrevemos lindos poemas diante do vasto oceano, mas não abrimos mão da peixada com frutos do mar, no almoço do Joca.

O melhor amigo da onça não pode ser um leão. O jacaré pode até se aproximar do papagaio, mas será sempre por disfarçado projeto de devorá-lo. Que eu saiba, nenhum animal possui animal de estimação, como temos cães ou gatos que criamos e cuidamos. Podemos ter, mesmo preso na gaiola, um rouxinol de estimação. Mas, se um gato tentar experiência parecida, terminará comendo o passarinho. Os bichos andam sempre em grupos homogêneos, sem a participação indesejável dos diferentes em seus passeios e programas.



Foi o ser humano que inventou a solidariedade, como reconhecimento e proteção do outro. Em certos casos, até já avançamos moralmente mais um pouco, reinventando o elogio da mistura, como consciência de que somos um só em nossas diferenças.

Inventamos a solidariedade e somente nós a praticamos sobre a face da Terra. Se não a praticássemos, a natureza se reduziria a uma constante guerra entre todos, pelo melhor abrigo e alimento, pela melhor companhia. E Joca completou, de passagem por ali: “Estaríamos condenados à guerra sem fim, à qual direita e esquerda convencionais já nos querem condenar como inevitável”. Por que temos que nos submeter ao mal natural, se podemos inventar outro mundo, a partir de um pensamento solidário?

O governo criou auxílio emergencial para as verdadeiras vítimas da crise sanitária. Uma colaboração sem princípios, mas bem-vinda, para milhões de “invisíveis” que perderam ou já não tinham renda, que sempre morrem de fome independentemente do momento social que o país vive. “Invisíveis” são os brasileiros que andam em desespero por periferias e favelas, mas nem tomamos conhecimento de que existem. Não saberemos nunca quantos são; mas, apesar de sua distribuição imperfeita, o auxílio emergencial os alcançou, e mais de 15 milhões deixaram a linha de pobreza e fizeram a classe C, a classe média baixa, chegar a 63% da população brasileira. Com R$ 600 por pessoa, o governo conseguiu um feito que melhorou a imagem do presidente e sua expectativa para as eleições de 2022. Saiu até barato.

Não sabemos, e o governo ainda não nos contou, o que acontecerá em seguida. Ninguém pode ser contra atitudes assistencialistas necessárias, como a Renda Cidadã deste governo e o Bolsa Família, criado e alimentado por governos do PT. São um socorro a quem precisa e não tem de onde tirar. Mas o governo, qualquer governo, precisa criar programas para que a população tenha uma oferta de empregos para sair da invisibilidade e não precisar mais se angustiar com esmolas de emergência.

Isso pode ser conseguido por meio de estímulos a investimentos privados, que gerarão mais progresso e mais empregos. Ou do próprio Estado, na criação de novas empresas públicas, conforme as necessidades do país. Diante da segunda hipótese, Joca, que era um craque “científico” na época da faculdade, riu de mim e me chamou de “keynesiano tardio”, tenho a impressão que uma forma elegante de considerar abjeta essa hipótese. Não acho, mas deixa pra lá.

Como diz a nova e bela encíclica do Papa Francisco, “sejamos capazes de reagir com um novo compromisso de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras”. Sobretudo porque precisamos estar bem vivos e cada vez mais juntos, para ajudar na eleição de nossos sonhos, em 2022. A do youtuber Felipe Neto.

Fica para depois

É impressionante a capacidade do governo de Jair Bolsonaro de procrastinar decisões, das banais às mais urgentes. Nem se pode dizer que isso acontece porque o governo não tem rumo; ao contrário, os seguidos adiamentos seguem a lógica de uma administração que tem um único rumo: o da satisfação das condições para a reeleição do presidente Bolsonaro.

Bolsonaro foi eleito com a promessa solene de revolucionar o Estado brasileiro, promovendo toda sorte de reformas e de planos de reorganização. O objetivo, segundo garantiu na campanha, era entregar ao País um Estado que estivesse a serviço dos contribuintes, e não se servindo destes.

Era evidente, para quem tivesse um mínimo de informação, que Bolsonaro não tinha como entregar o que prometera, não em razão das circunstâncias, mas porque, em toda a sua trajetória política, sempre defendeu exatamente o contrário. Corporativista e estatólatra, o deputado do baixo clero notabilizou-se por votar contra todas as medidas necessárias para destravar o Estado e melhorar a qualidade das contas públicas.

Alinhando-se ao PT, Bolsonaro rejeitou o Plano Real, sabotou projetos que restringiam privilégios de servidores e trabalhou contra a quebra do monopólio da Petrobrás sobre o petróleo e da União sobre os serviços de telecomunicações. Suas digitais estão também na oposição feroz às reformas da Previdência e administrativa.

Foi essa coerência programática que garantiu a Bolsonaro sete mandatos como deputado e um eleitorado cativo. Como candidato à Presidência, contudo, viu-se obrigado a vestir a fantasia do liberal que nunca foi e a anunciar que, se eleito, faria as reformas que sempre desprezou.



É esse o presidente que encomendou a seu Ministério da Economia a fórmula mágica da criação de um programa de transferência de renda sem, contudo, promover cortes de nenhuma espécie. Bolsonaro quer o melhor dos dois mundos: ganhar uma nova clientela eleitoral na base do populismo desbragado sem perder o apoio dos privilegiados do serviço público nem se indispor com empresários habituados a subsídios e incentivos. O ministro Paulo Guedes que se vire.

Como a aritmética não aceita desaforo, Bolsonaro foi alertado de que a conta não fecha e que serão necessários cortes dolorosos para viabilizar o tal programa que ele tanto almeja. Dado que o presidente não admite nenhuma solução que possa ameaçar seu capital eleitoral, a saída tem sido adiar o anúncio oficial do programa e, o mais importante, de suas fontes de financiamento.

Agora, a desculpa são as eleições. Segundo os operadores governistas, os parlamentares estarão engajados na campanha municipal e serão naturalmente refratários a discutir medidas de austeridade, impopulares por definição.

Disso se depreende que as eleições são um imperativo mais relevante do que a emergência social que sobrevirá com o fim do auxílio emergencial. Os pobres que esperem, pois os governistas não querem atrapalhar a campanha dos aliados.

Tem sido assim desde que Bolsonaro assumiu. O contraste entre a grandiloquência das juras de palanque e a ineficiência de seu governo é gritante. O ministro da Economia, Paulo Guedes, notabilizou-se por anunciar planos magníficos para “a semana que vem”, que teimosamente nunca chega. E nem se diga que essa frustração se dá pelo mau desempenho de ministros e assessores de Bolsonaro, pois vários deles fazem o que podem e trabalham duro. O problema, está claro desde sempre, é o presidente, cujo horizonte é estreito demais para quem precisa governar um País, e não o cercadinho do Alvorada.

Se estivesse realmente interessado em ajudar os pobres e em entregar ao sucessor um País melhor do que recebeu, Bolsonaro já teria organizado uma base parlamentar sólida para aproveitar a disposição reformista demonstrada pelo Congresso e articularia a aprovação tanto de projetos de longo prazo, como as reformas administrativa e tributária, como medidas emergenciais para o atendimento dos milhões de brasileiros destituídos de quase tudo na pandemia. Mas aí não seria Bolsonaro.

Xadrez do pacto de Bolsonaro com o Estado profundo

Vamos entender melhor a natureza do pacto que está se formando no país. Bem-sucedido, transformará definitivamente Brasília no centro único de poder, com uma centralização jamais vista desde o regime militar.

Trata-se de um ensaio de consolidação do poder do chamado Estado Profundo, que já vinha sendo desenhado desde que houve a desmoralização do poder do voto, com o golpe do impeachment.

Vamos tentar entender os principais personagens desse jogo:


Peça 1 – O Estado Profundo

São as instituições que dominam o Estado, independentemente do partido político do momento. A governabilidade de cada presidente eleito passa por pactos com essas corporações, através de funcionários de carreira aliados.

Mesmo com a instituição de concurso público, esses poderes são ocupados por dinastias que se perpetuam, sempre voltadas para seus próprios umbigos, convivendo apenas com seus iguais, sem familiaridade maior com a diversidade do país, com as características de uma sociedade democrática.

Especialmente nas áreas militar, jurídica e diplomática, há essa entropia de um país sem povo, que habita Brasília.

Como são poderes organizados nacionalmente, há uma força centrífuga permanente, de centralização na cúpula, impedindo voos autônomos na base. O poder da cúpula é diretamente proporcional à capacidade de manter a base disciplinada.

Dentro do sistema de freios e contrapesos do modelo democrático, as instâncias hierárquicas das corporações públicas são peças de equilíbrio. Mas o grande moderador é o voto – “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”. É o voto que permite a renovação dos quadros, impede a estratificação das lideranças corporativas e o controle de todos os atos públicos pelo Estado profundo.

É no by-pass ao voto que se tentará consolidar esse pacto Estado Profundo-mercado-Bolsonaro, através da aposta em um Bolsonaro domesticado como candidato à reeleição, e a inviabilização política de quem ousar ficar no seu caminho.

Peça 2 – O período PT

No período pós-Constituinte, Fernando Henrique Cardoso logrou manter um pacto com o Estado profundo. Lula manteve o controle, consolidando laços com o setor real da economia, trabalhadores, lideranças empresariais, movimentos sociais.

Mas não evitou que tornasse alvo da primeira demonstração de força das corporações, no “mensalão”, conduzido por três figuras oriundas do corporativismo público: os Procuradores Gerais Antônio Fernando de Souza e Roberto Gurgel, e o Ministro do STF (egresso do Ministério Público Federal) Joaquim Barbosa. Foi o primeiro ensaio de guerra das corporações com o PT. Mas não foi suficiente para o partido aprender.

Craque na montagem de táticas brilhantes de sobrevivência e políticas sociais fundamentais, Lula cometeu erros estratégicos relevantes.

* Políticas macroeconômicas que foram enfraquecendo cada vez mais o setor industrial, que poderia ter sido seu grande aliado, fortalecendo a financeirização da economia e o ente mercado.

* Mudança na remuneração do alto funcionalismo público, atraindo uma geração nova, totalmente despida de vocação pública, e tentando emular hábitos e ambições do espírito yuppie do mercado financeiro.

* Não perceber que a ascensão social, promovida pelo próprio PT, geraria nas novas classes um sentimento de emular a classe média tradicional. Venceram pela meritocracia e não pelas oportunidades abertas pelas políticas públicas.

* Incapacidade de promover reformas centrais em três áreas críticas: mídia, Justiça e mercado.

* “Republicanismo” na nomeação de juízes para os tribunais superiores.

* Depois das ameaças do “mensalão”, escudou-se em um pacto político de alto risco, com o loteamento de estatais, especialmente a Petrobras, e a concentração das alianças políticas e empresariais em um terreno minado, das empreiteiras de obras públicas.

O PT era o outsider no Sistema. Tentou ganhar seu espaço democraticamente buscando na representatividade junto ao país real. Mas se perdeu no caminho e na incompreensão sobre as formas de conviver com o Estado profundo.

Peça 3 – A polarização política com a aliança ultraliberal

A Lava Jato foi o instrumento utilizado para a implosão da cidadela petista. Deu-se gás para um grupo de procuradores e delegados provincianos. Garantiu-se o apoio ilimitado da mídia. Permitiram-se todos os abusos até que sobreveio o impeachment.

Essa aliança ultraliberal, dando sustentação à Lava Jato, é o fio que amarra todos os episódios posteriores, o impeachment do governo Dilma, o interregno de Michel Temer e, mais à frente, o apoio a Bolsonaro.

A hegemonia ideológica do mercado é garantida pelo financiamento de mídia, partidos e políticos, pela perspectiva de empregos futuros para a alta burocracia pública e pela cooptação do Judiciário através de escritórios de advocacia próximos e convites para palestras remuneradas.

Obviamente, tem que haver uma justificativa “legitimadora”, um álibi intelectual para essa adesão incondicional à destruição do Estado e sua abertura aos grandes negócios públicos. O álibi intelectual foi o documento Ponte para o Futuro organizado por intelectuais ligados ao mercado e alta tecnocracia pública.

A influência do mercado se dá através do martelar incessante dos grupos de mídia em mantras liberais, praticando a retórica do “terrorismo” econômico. Se a Lei do Teto for revogada, o país acaba. Se as taxas de juros longas o aumentam meio ponto, é sinal de fim do mundo. Se a reforma administrativa acabar com a estabilidade do emprego, o país estará salvo. Toda privatização é virtuosa, independentemente de análise de casos.

O desmonte das políticas sociais e a reabertura dos grandes negócios na área pública começaram com o governo Michel Temer e associados – representando o centrão. Bolsonaro é apenas uma continuidade trapalhona.

Mas a liberdade conferida à Lava Jato promoveu uma enorme confusão institucional, colocando sob ameaça as cúpulas dos poderes que constituem o Estado profundo. E a eleição de Bolsonaro ampliou essa confusão. Daí a necessidade da freada de arrumação para refazer o pacto.

Peça 4 – Os abusos da Lava Jato

Assim que Bolsonaro foi eleito, montei o quadro abaixo tentando organizar os pedaços do sistema político brasileiro, após a implosão.

No quadro, importam dois grupos especiais.

O primeiro, as instituições que compõem o chamado Sistema, o pacto histórico tradicional que garantiu a democracia precária brasileira pós-Constituinte. Compõem a coalizão a chamada Mídia 1 (sistema Globo), Congresso, Supremo Tribunal Federal, Alto Comando das Forças Armadas, e (até aquela época) a Procuradoria Geral da República.

Nos demais quadros, novos-velhos atores políticos que surgem no embalo da confusão midiática, institucional e popular criada pela Lava Jato.

No quadro, previa os futuros fatores de conflito, sempre que o álibi “delenda Lula” ficasse enfraquecido.

◆ Base x Cúpula
◆ Democracia x Ditadura
◆ Pauta de costumes
◆ Luta de classes.


Era essa a salada geral. A Lava Jato trouxe pela primeira vez a insubordinação ao sistema Judiciário. Com Bolsonaro, pela primeira vez entraram em cena outros atores políticos, não ligados a partidos, e dispostos a levar o freio aos dentes e a romper com a hierarquia das instituições – o que seria o caos generalizado.

Com esse quadro, Bolsonaro tentou montar sua estratégia golpista. De um lado, aumentando sensivelmente a presença militar na administração. De outro, estimulando os radicais através do Gabinete do Ódio.

São esses movimentos que fizeram o Estado profundo se mover.

Houve encontros entre Ministros do STF e Alto Comando Militar que passaram a convicção de que os militares não iriam se meter em uma aventura política.

Com essa garantia, procedeu-se ao cerco sobre Bolsonaro.

Peça 5 – A pizza

As duas armas centrais foram o inquérito sobre o gabinete do ódio e as investigações do Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro sobre Flávio Bolsonaro. E o golpe final foi a decisão de Celso de Mello de divulgar o vídeo da reunião ministerial e o obrigar Bolsonaro a depor sob vara.

Aí se percebeu que o dispositivo militar de Bolsonaro não passava de um Exército de Brancaleone, ele estava a um passo do impeachment e seus filhos a meio metro da cadeia.Toda a valentia de Bolsonaro acabou. E ele teve que reconstruir sua estratégia.

Nessa revisão, há uma limpa na salada política. Atores novatos, como os youtubers, são afastados do jogo. Afastam-se todos os terraplanistas verborrágicos.

Mas Bolsonaro é mantido. Primeiro por se render à real politik do Estado profundo. Depois, por exercer um papel essencial da falsa legitimação da democracia mitigada brasileira: o político com votos.

No plano político, Bolsonaro trouxe o Centrão de volta, abrindo cargos políticos e Ministérios com porteira fechada.

Nas outras frentes, acenou para o Supremo e para a advocacia com a indicação do novo candidato a Ministro do STF. E se reconciliou com o presidente da Câmara Rodrigo Maia que, por sua vez, aproximou-se do STF para conseguir a reeleição, ao lado do presidente do Senado, David Alcolumbre. Ao mesmo tempo, enquadrou seus dois filhos mais tresloucados, Carlos, que é desequilibrado, Eduardo, o típico fanfarrão de academia. E colocou na linha de frente das negociações o mais vulnerável deles, Flávio, mas, por outro lado, o único que fala lé-com-cré, atuando como representante comercial e político da família.

Aproximando-se de Maia, conseguiu colocar de lado o Ministro da Economia Paulo Guedes, um trapalhão incorrigível. E, no momento, equilibra-se entre a renda básica e os acenos ao mercado, com a Lei do Teto e as tais reformas.

O banquete antropofágico que selou a aliança teve a presença de próceres do Supremo, do Tribunal de Contas, do Congresso.

Desenha-se, por aí, o mais ameaçador pacto contra a democracia, porque envolvendo o Estado profundo, o Supremo, o Congresso cooptado e o trunfo político de Bolsonaro: a renda básica permitindo recuperar a popularidade perdida.

Peça 6 – A divisão do butim

O pacto está sendo desenhado no dia a dia, e, se bem-sucedido, será a maior ameaça já conhecida à democracia brasileira e aos direitos sociais.

Consistirá dos seguintes movimentos.

1. Bolsonaro garantirá a legitimação de quem foi eleito pelo voto, dentro do conceito de democracia mitigada, Tentará a reeleição recorrendo a práticas populistas, mas persistindo no desmonte de todas as políticas públicas.

2. O Supremo facilitará o trabalho do Estado profundo, atuando como agente moderador de alguns excessos –na questão do meio ambiente e nos ataques do gabinete do ódio. Mas será essencial para manter a oposição manietada e Lula fora do jogo. E também como avalista final de todas as loucuras ultraliberais e do desmonte de todas as redes de proteção social. Algumas das destruições planejadas serão irreversíveis. Na linha de frente, o Judiciário prosseguirá no lawfare às vozes dissidentes. Tudo isso seguindo os procedimentos formais de uma democracia mitigada.

3. Tribunal Superior Eleitoral, Polícia Federal e Tribunal de Contas da União também poderão ter papel relevante na inviabilização da oposição, da mesma maneira que a Polícia Federal hoje em dia.

4. O centrão terá à sua disposição Ministérios inteiros, de porteira fechada.

5. Se passar a reforma administrativa proposta, o governo terá à sua disposição milhares de cargos para barganha política.

6. O mercado terá o desmonte do Estado, o esvaziamento das políticas sociais e os grandes negócios com as privatizações, através do mantra das “reformas”.

7. As Forças Armadas terão aumento no orçamento e um amplíssimo mercado de trabalho no setor público para militares da ativa e da reserva. Militares ocupando cargos estratégicos na máquina pública, abrirão mercado para lobistas atuando junto ao setor privado – como ocorreu no período militar.

De seu lado, Bolsonaro terá plena liberdade para prosseguir com as seguintes políticas:

1. Desmonte da política educacional.

2. Esvaziamento dos órgãos de financiamento da ciência e tecnologia.

3. Abandono de todas as políticas inclusivas, de saúde ou de educação, e entrega de verbas públicas a instituições religiosas ou particulares especializadas em explorar a deficiência.

4. Desmonte das políticas culturais.

5. Desmonte dos sistemas de fiscalização ambiental.

6. Abertura de mercado para milícias, indústria do lixo, indústria de armas, cassinos e outros setores associados.

No Pacto da Pizza, as corporações terão privilégios preservados. A conta do funcionalismo público será bancada pela rapa, os que atuam na prestação de serviços aos cidadãos. Cada vez menos o cidadão será objeto central das políticas públicas, com o desmonte final do Estado social.

No momento, ainda é um ensaio de pacto. Aqui se apresentou o desenho final, caso seja bem sucedido.

Muda, Brasil

 


Bolsonaro já não pode posar de virgem no bordel

Uma característica curiosa da corrupção se observa em todos os governos. O corrupto está sempre nos governos dos outros. Jair Bolsonaro disse que acabou com a Lava Jato porque não há corrupção no seu governo. Talvez tenha pretendido apenas produzir um comentário irônico. Mas foi infeliz. A frase representa o triunfo da fé sobre a prudência. Revela que o orador opera num mundo com duas verdades: a dele e a verdadeira. Todos gostariam de viver no país maravilhoso que o presidente descreve em seus discursos, seja ele onde for.

Bolsonaro é investigado por suspeita de tramar a conversão da Polícia Federal num aparelho a serviço da família e dos amigos. Não consegue explicar os R$ 89 mil que o casal Queiroz depositou na conta de sua mulher. Dois de seus filhos, Eduardo e Carlos, estão encrencados em inquéritos sobre desvio de verbas públicas em casas legislativas. Os Bolsonaro revelam-se cultores de inusitados hábitos. Adeptos da rachadinha, eufemismo para peculato, recorrem à forma mais primitiva e sigilosa de poupança: o colchão. Compram até imóveis em dinheiro vivo.


Os líderes do governo na Câmara e no Senado são alvos da Lava Jato. Há no Ministério do Turismo um réu por desvio de verbas eleitorais. No comando da pasta do Meio Ambiente há um condenado por improbidade administrativa. Foram acomodados dentro de cofres estratégicos do governo, inclusive nas pastas da Educação e da Saúde, apadrinhados do centrão —um aglomerado partidário 100% feito de investigados, condenados e cúmplices.

É contra esse pano de fundo que Bolsonaro conspira contra a Lava Jato, sedando órgãos de controle, acomodando na Procuradoria-Geral um procurador que não procura e enviando para o Supremo uma toga-tubaína. Nada disso comprova a inexistência de corrupção em Brasília. Demonstra apenas que Bolsonaro virou um estelionato eleitoral à procura de blindagem.

A Lava Jato ainda não acabou. Mas Bolsonaro sinaliza ao país que endossa o esforço do procurador-geral Augusto Aras para minar a operação. No momento, o grande desafio do presidente é o de se reinventar politicamente. Com uma dificuldade: até os bolsonaristas mais apaixonados começam a notar que Bolsonaro já não se encaixa no papel de virgem imaculada no bordel.
Josias de Souza

Privilégio não dá retorno

Em um estudo feito no Reino Unido, mas que reflete o que também ocorre em outros países, economistas mediram qual é o retorno para a sociedade de cada libra paga em salário para trabalhadores como lixeiro ou enfermeiro. O resultado é que, para cada libra paga a um professor, cuidador ou lixeiro, a sociedade tem 10 libras como retorno. Por outro lado, se olhar o advogado ou o banqueiro, o resultado é que os salários privados são maiores que os benefícios sociais. Assim, as pessoas que são supostamente super qualificadas, com salários enormes, na verdade produzem menos do que recebem. Enquanto isso, trabalhadores supostamente menos qualificados produzem benefícios sociais muito maiores que seus salários.

Mentir é de praxe

Não creio que seja possível acreditar que currículos prenhes de mentiras possam passar por verdadeiros nesta era da Internet. É facílimo consultar as universidades citadas e ficar sabendo se aquele título, ou aquele curso, ou aquela graduação, foram verdadeiros.

Nada mais fácil.

Este ano está sendo rico em patranhas curriculares Já tivemos um ministro da Educação que entrou e saiu do ministério por conta de um currículo cheio de falsidades. E agora estamos com um indicado ao STF, Kássio Nunes, que apresentou um currículo que mais parece escrito por um dos irmãos Grimm.


Kássio Nunes até agora é o campeão dos currículos cheios de “exageros”: cursos que não existem, universidades que só o viram a passeio, doutorados e pós-doutorados inexistentes... Como isso não é mais segredo para ninguém e ainda não ouvi uma voz a dizer que o presidente deveria recuar dessa indicação, estou convencida que o currículo exagerado não o impedirá de usar a toga do STF.

O mais curioso: Kássio está mais preocupado com o que vão pensar e dizer as autoridades do país do que seus futuros examinadores, os senadores.

Diz ele que o STF não exige formação em Direito para ser juiz do STF. A exigência maior é a da reputação ilibada. Perfeito. A reputação compurscada tem que impedir a nomeação de um indivíduo para membro do Supremo. Isso é fundamental. O diabo é que parece que mentir não compursca a reputação de ninguém...

Além do currículo fantasioso, o senhor Kássio foi indicado ao Bolsonaro por ninguém menos que Flávio Bolsonaro e seu amigo Wassef, o antigo hospedeiro do Queiroz, e ex-advogado da família Bolsonaro.

Estamos atravessando uma fase muito impressionante. Ninguém duvida das mentiras. Isso parece ser de praxe. E ficou decidido que dizer a verdade é duvidar do Brasil. A NASA, com sua tecnologia avançadíssima, alerta o mundo quanto aos incêndios violentos na Amazônia. Mas o Governo brasileiro desmente a NASA...

A terra é plana, diga a NASA o que quiser dizer. O aquecimento global está sendo comprovado diariamente mas o brasileiro não parece acreditar nessa verdade. Mais vale uma mentira que amansa um governo do que uma verdade que deixará o governo em maus lençóis...
Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa 

Tubaína, novo sabor de Brasília

Faz muito tempo que não vou a Brasília. Faz muito tempo que não vou a lugar nenhum.

Minha última viagem à capital foi para documentar a mudança da Corte após a vitória de Bolsonaro.

As Cortes marcam a cidade, pelo menos o plano piloto, onde circulam políticos, aspones e lobistas. Na chegada do PT, alguns restaurantes recendiam a fumaça de charuto cubano. Collor gostava de grandes carros modernos. FHC quis reviver saraus lítero-musicais.

Fui muito prematuramente buscar a marca de Bolsonaro. Se voltasse agora, movido pelo slogan da Coca-Cola, “sinta o sabor”, diria que o gosto da nova Corte é o de tubaína.


Honestamente: ninguém toma tubaína na Corte. É apenas um simbolo. Sua gênese está na escolha de um novo ministro do STF. No princípio, Bolsonaro dizia que o escolhido seria terrivelmente evangélico. Depois disse que o nome seria de alguém que tomasse cerveja com ele.

Houve uma inflexão. É difícil, não impossível, encontrar alguém terrivelmente evangélico chegado a uma cervejinha. Ao apontar o nome de Kassio Marques, Bolsonaro substituiu a cerveja por tubaína. O senhor K não é evangélico mas, por via das dúvidas, era preciso abolir o teor alcoólico da amizade. A tubaína se encaixava perfeitamente: popular, adocicada, meio fake.

Entrava em cena nosso Kassio, como é chamado em Brasília. Uma figura familiar, que tem o apoio do Centrão, de opositores e também a bênção de ministros do Supremo, como Gilmar Mendes e Dias Toffoli.

Quando Bolsonaro e K se reuniram na casa de Tofolli para comer uma pizza e assistir ao jogo Palmeiras X Ceará, o programa harmonizava com uma boa tubaína. Não foi o que beberam, mas isso é o de menos. A nova Corte se integrava a Brasília, de uma certa maneira reinava de novo a atmosfera familiar e promíscua da capital.

Era difícil prever que a tubaína se tornasse o símbolo do governo Bolsonaro quando visitei Brasília. Ainda não tinha acontecido um episódio decisivo: a prisão de Fabrício Queiroz. Fala-se tanto em novo normal, mas aquilo empurrou Bolsonaro para o velho normal: acordo com o Centrão, jantares e visitas às casas de ministros do STF.

O currículo do senhor K não bate com a realidade. Mas Bolsonaro jamais pensou em ministros que tivessem pós-graduação em Salamanca, La Coruña, Messina ou o cacete.

Um currículo meio tubaína é tudo do que precisam no momento. Os políticos vão entender as mentiras como um erro de tradução. Tradutor-traidor, devem até desenterrar a velha analogia.

Brasília respira o velho ar ressecado de sempre. Entramos na era da tubaína, "the real thing", o líquido das nossas tramas, de abraços, mútuos elogios.

Há quem não goste. Mas, com uma boa renda social, uma renda cidadã, Santa Cruz, Vera Cruz, Brasil, não importa o nome, vencemos eleições e conquistamos o direito de seguir tomando nossa tubaína como os artistas tomavam seu absinto no Pós-Guerra.

Felizmente, isto aqui não é uma ilha. O mundo nos olha com atenção. A Europa já coloca o acordo comercial com o Mercosul no telhado. As relações com os Estados Unidos podem mudar com o resultado das eleições presidenciais.

O encontro de forças que resistem no Brasil com o empenho internacional por mudanças dentro do país pode representar uma esperança.

Já estamos calejados, vivemos o resultado daquelas promessas de tudo mudar, que acabam afogadas em tubaína. Mas, ainda assim, é preciso realisticamente sonhar com a preservação de nossos recursos naturais e a redução das grandes diferenças sociais.

Não sei se isto é um consolo, mas pelo menos a prisão de Queiroz nos levou de novo ao passado da redemocratização e nos afastou um pouco do temido tempo da ditadura.

Bolsonaro deve voltar à carga em algum momento. Antes precisa resolver a questão de Queiroz, que é, na verdade, a questão de seu filho, da família, dele próprio. Os convivas, políticos e juízes da Suprema Corte não percebem que bebem uma tubaína envenenada. Mas isso não é tão importante para eles, o jogo principal não é do Palmeiras, mas pelo poder. A dança típica da capital é sempre dançada diante do abismo.