quarta-feira, 17 de abril de 2024

A política no pântano

Na cerimônia do Oscar, o apresentador Jimmy Kimmel rebate uma crítica de Trump: "Já não está na hora de você ir para a cadeia?". Se avaliada em termos tradicionais, seria resposta moralmente arrasadora a um ex-presidente americano, novamente candidato, bancando papagaio de pirata online no evento de teledifusão mundial que é a maior premiação cinematográfica dos EUA.

Hoje, o cardápio trumpista de política despreza a moral, a vergonha própria e prospera na metabolização da repulsa dos adversários, mais do que na afeição dos adeptos, pois esse é o combustível do seu ódio.

O pragmatismo postula que nossas verdades, ou pelo menos aquilo em que acreditamos, são hábitos bem-sucedidos de ação. O senso comum costuma pensar a partir desse princípio, e até mesmo os grandes explicadores da vida social se inspiram numa tradição intelectual, se não bem-sucedida, muito debatida. Mas a conduta democrática não decorre de ideias reguladoras com prescrições normativas como provas de verdade. Decorre, sim, de formas de vida variadas, nas quais se pode ou não acreditar, a depender do lugar de fala.


São elas que, em sua novidade, apontam para uma lógica de vida diferente da velha política, insuficiente frente à complexidade sócio-histórica, assim como ao afloramento no plano social dos aspectos sensíveis das ações humanas. A dignidade do agir público e a compreensão do que é politicamente humano têm sido avaliadas pela linguagem do compromisso com as classes desfavorecidas. Isso é inerente à tradição de pensamento progressista que subsiste em círculos intelectuais, mas estaria desaparecendo até mesmo do senso comum liberal.

Por um lado, os militantes neoliberais e a mídia sempre trabalharam para desqualificar movimentos populares de ampla abrangência social. Por outro, a nova realidade é terreno pantanoso onde chafurda a ultradireita, sem se sustentar na história (daí, o abismo da sociopatia), mas agarrando-se aos próprios cabelos num movimento insensato, sem anseio de emancipação humana.

Hungria, Rússia, Estados Unidos, Coreia do Norte, Argentina, Venezuela, Nicarágua, Portugal, lista ainda incipiente, são lugares mais visíveis da crise dos sistemas de poder e das mudanças associadas à falência da sociedade política tradicional. Em cada um deles a massa falida e as oligarquias pactuam com uma forma sociopata de liderança.

Natural o destaque de Trump, por se localizar no centro do Império o seu pântano particular. Ali fica claro que moralidade não é mais nenhum motor político e que a racionalidade do avanço tecnológico pode ser parceira do irracionalismo cívico. Mas a pergunta de Kimmel ao histrião, válida para outros, mostra que algum bom senso continua vivo.

Que tamanho terá esse monstro amanhã?

"Davam duas horas para suspender uma conta, ou teríamos multas pesadas". Antes do surgimento das tecnologias digitais, podia-se falar livremente, em qualquer lugar, sobre pessoas e coisas. As palavras despareciam no ar. Hoje, entretanto, não é bem assim. Os olhos e ouvidos das redes sociais registram tudo. As intenções são detectadas, decodificados ou reproduzidos rapidamente por cidadãos conectados pela tecnologia digital. Eles superam, no mundo, a casa dos 5 bilhões de pessoas . No Brasil são mais de 100 milhões. Nesse universo, os discursos não só ganham sentidos, como instigam ações. O filósofo francês Michel Foucault, não propriamente um usuário da internet, advertia: palavras são símbolos vivos, geram ação e criam realidades.


A consideração é elucidativa para essa contenda entre Elon Musk, proprietário do Twitter (X), e Alexandre de Moraes, um ministro do Supremo Tribunal, do Brasil. O embate entre os dois reverbera ideias expandidas digitalmente na consciência dos cidadãos . Vêm da livre circulação das palavras e das armadilhas discursivas que nelas se escondem. Pela dimensão que alcançam, o que está no submundo da etimologia não fica ignorado das redes digitais , sobretudo os enunciados absurdos .

A burrice não é tão generalizada como se quer acreditar. A reação ampla e imediata nas redes chega a assustar os emissores empoderados da esfera do Estado. Fragilizados diante do cidadão digital, não conseguem se esquivar da tentação de cercear a liberdade de informar e de pensar . O alargamento das reverberações contestatórias nas redes sociais , chegam a desqualificar sujeitos, autoridades e ideias tidas como impróprias ou "fakes" .

No campo da política , há no mundo uma disputa hegemônica para apropriação das novas tecnologias que alargaram competências e a compreensão do cidadão comum. Vista como virtude, ao mesmo tempo, constituiria uma ameaça. Os militares brasileiros chegaram a recusar a entrada da internet no Brasil, hoje controlada na China - nosso pretenso modelo político -, na Rússia, em Cuba e países com perfil similar . Criaram uma secretaria de tecnologia vinculada à Presidência da República para gerar e administrar uma política tecnológica exclusivamente nacional, até então algo rudimentar.

Digitalmente, o Brasil parara no tempo. Não havia por aqui massa crítica capaz de erigir aqueles propósitos de cunho nacionalista. Nesse ínterim, as novas tecnologias expandiram-se, e o uso da internet evoluíu num ambíguo confronto entre o controle e a proibição, dentro do escopo da liberdade de pensamento e de informação . As pesquisas e tecnologias fortaleceram a tal ponto a sociedade civil, que ela terminou derrubar governos, como aconteceu nos países árabes do norte da África.

Nosso atual destemido Presidente da República e sua "entourage" parece deglutir a questão, como um Macunaíma, ao pretender retomar essa linha autoritária. "O País não precisa da inteligência artificial", porque é suficientemente inteligente para dar resposta ao que necessita. Anunciou que irá assinar nos próximos dias um ato de regulação da IA no Brasil, e que o governo já cogita de algo digital próprio.

Tudo bem, mas certamente um conteúdo com essa origem pode significar o controle da informação. Para começar, o Presidente vê no Brasil apenas dois polos políticos : "Esquerda e Direita", que chamou de "Nós e Eles". Os substratos aderem naturalmente . Difícil acreditar que isso seja fruto de confusões mentais discursivas ou de insuficiência intelectual . O "Nós e Eles" não é uma declaração apenas intempestiva, surgida no calor da hora. Nela brota o futuro de um governo centralizado perene, um partido único proletarizado, conforme explicou José Dirceu.

O problema é como essa futurologia vai se materializar? A democracia nunca conseguirá construir um regime desses no Brasil. O "Nós e Eles" é uma espécie de mantra que alimenta, infelizmente, um ódio, uma linha demarcatória das diferenças entre as pessoas na sociedade voltadas para o bem ou para o mal . Uma mensagem dessas ignora a história, e não se preocupa com as consequências .

É complicado explicar o ódio gerado por uma aparente e ingênua declaração, que induz a um distanciamento entre as pessoas de uma comunidade , produzindo facções de amigos e inimigos. O ódio, como método, é o sentido oculto no enunciado, contido até em desleixadas declarações sobre a busca pela paz e a democracia. A introdução dessa diferença social exige um emissor com coragem e desfaçatez para mentir e agir. Instalado carismaticamente tende a se perpetuar, como o peronismo, na Argentina; o maoísmo, na China; ou o stalinismo, na Rússia. São realidades , segundo Foucault, criadas pela palavra . Caminha-se, portanto, em direção a uma nova ética na gestão pública.

Nem Nietsche suportaria tanta ousadia .Todos os que mentem estão conscientes de que o fazem. São perfis recorrentes. Insistem em fazê-lo também por dois motivos : um patológico e o outro, porque , nas suas fantasias existenciais, vem nesse caminho uma forma de se estabelecer no cenário. A mentira e o ódio juntos trazem também em sua própria configuração matrizes do contraditório, identificadas e exploradas pelas redes sociais . Na verdade, é tudo grosseiramente óbvio nesse politicamente correto.

Se o ódio e a mentira, simbolizados nas palavras, desmascaradas nas redes digitais , não são suficientes para sepultar narrativas, resta a censura que surge na cabeça de ineptos governantes . E é assim que a Nação assiste estupefata , essa discussão entre um ministro do STF e o dono de uma plataforma digital, sentenciada a apagar opiniões de políticos e jornalistas . Musk expande seus negócios explorando a liberdade de informação. O cidadão ministro à busca de legitimidade para suas belicosas atitudes anticonstitucionais. São verdadeiras monstruosidades em curso . A persistirem, resta a pergunta: de que tamanho será esse monstro amanhã?

Este é Elon Musk

Um empresário estrangeiro bilionário, comanda aqui no Brasil a oposição à democracia e à soberania popular e busca aliados estrangeiros, em países próximos, para fazer sua guerra contra a soberania do Estado, a República e a ideia de nação, que esteve na raiz do nosso processo constituinte. E o faz apoiado por uma malta fascista, aliada ao que tem de pior no neoliberalismo autoritário, inimigo dos direitos fundamentais e da soberania popular. Este é Elon Musk.

A ideia de Elon Musk é instituir um novo tipo de Estado, através de uma estrutura privada de poder soberano, que possa corroer os valores democráticos – por dentro e por fora da estrutura normativa do Estado instituído – privando-o do seu poder soberano legitimado pelas eleições democráticos, para criar um sistema criminoso de poder privado que controle a República, de fora para dentro, sem ocupação territorial de caráter militar.


Erik Olin Wright busca, na parte conclusiva do seu livro Análise de classe –abordagens, uma resposta para o dilema “se a classe é a resposta, qual é a questão?” – formulando a pergunta específica: “como as pessoas, individual e coletivamente, situam subjetivamente a si e aos outros, dentro de uma estrutura de desigualdade.” É uma pergunta axial para nos situar hoje na nova estrutura de classes e “não-classes” do capitalismo financeiro turbinado pelas novas tecnologias, globalizado pelo consumismo desigual e exasperado.

Elon Musk e Karl Marx percorreriam o mesmo caminho com propósitos de dar respostas com sentidos e ideais diferentes. Marx diria que pela luta política entre as classes – pacífica ou armada, segundo o Marx que se lê – deveríamos conquistar um estado de extinção das classes, numa sociedade pautada pela igualdade com o reconhecimento das diferenças. Elon Musk diz – como Javier Milei – que é preciso uma geleia geral, sem Estado e sem classes estruturadas, para que a sociedade só reconheça os sujeitos como indivíduos em luta para meritoriamente serem mais desiguais.

Parece irônico colocar num mesmo texto a influência na realidade, de dois práticos e pensadores tão diferentes. Mas não será, se pensarmos que Marx é o principal herdeiro do iluminismo do século XVIII e Elon Musk é hoje o principal agitador e “influencer” do fim do humanismo burguês. Este, ao mesmo tempo em que destrói as heranças humanistas ilustradas, promove uma estética da decadência, que encarna – com a sua idiotia provocativa e o seu talento pervertido – a ideia de monetizar a canalhice como valor agregado à sua ousadia performática.

A experiência de Elon Musk como CEO, chanceler e líder de um novo poder soberano global, que se ergue no horizonte da história contemporânea, não é apenas o novo traçado de uma epopeia fascista libertina, hoje apelidada de “libertária”, mas é, sobretudo, a promessa de uma nova etapa – na época da dissolução do projeto imperial-colonial tradicional – que se encaminha para outro patamar de poder do capital financeiro global, no atual sistema-mundo.

Elon Musk concebe uma linha política, como um agente especial das mudanças tecnológicas e informacionais da grande pirataria do capitalismo, como representação informal de novos entes soberanos. Diferentes e distantes dos estados modernos, formados até agora, o Estado de Musk é o “estados-fluxo”, sem pátria e sem pruridos humanistas: Estado total global de natureza privada, que esmaga as agências públicas que fizeram as normas de poder do Estado de direito.

Estes Estados desafiam a genética do Estado de direito – nacional e social – pela captura da opinião na ditadura do mercado e que tem no seu limite tanto a guerra quanto a ditadura militar como seu recurso derradeiro. A naturalização da violência, o fim de qualquer proteção social e a multiplicação do Estado-polícia, face ao rebaixamento do que resta das funções públicas do Estado, são o seu caminho.

Elon Musk encarna o fato de que há uma outra realidade em marcha, onde os conceitos de pátria, nação e solidariedade, serão soterrados por estes novos gerentes, pilantras do capitalismo em crise, cheios de “brilho” nos momentos mais excitantes da sua vida, para quais não importa nada: miséria, famílias destruídas, crianças assassinadas, jovens mortos de fome, trabalho precário e noites de inverno sem calor. Nada lhes importa.

O que lhes importa é a próxima cotação das bolsas e como os idiotas e patéticos editoriais da desumanidade dos grandes órgãos de imprensa verão sua conduta desafiadora da ordem democrática, para negociar com eles os resultados da monetização da mentira industrialmente produzida nas catacumbas das redes.

A alarmante naturalidade com que a grande imprensa trata a pirataria de Elon Musk contra as democracias do continente, na Bolívia dizendo que seria ótimo um golpe de Estado para que o país possa ser colonizado para entregar seu lítio, no Brasil atacando os poderes da República, o presidente do Supremo e subvertendo a luta política para transformá-la num canil raivoso de protagonistas da direita fascista, ele, Elon Musk, passeia um oceano de delírios como um agente estrangeiro de um Estado sem pátria.

A síntese que Elon Musk representa é a seguinte: seu poder deixado “livre” terá como resultado a implementação de uma soberania de “novo tipo”, cuja ordem normativa será apenas um fluxo digital e comunicacional, combinados numa sequência de redes de empresas – reais e virtuais – em cujos “nós” inteligentes estarão os comandos da nova soberania privada, aceita como se fosse um Estado Nacional invasor que já dominou o território.