domingo, 1 de dezembro de 2019

Calúnia raivosa é o método político de Bolsonaro no carnaval das redes sociais

O bolsonarismo recorre com frequência à calúnia pusilânime a fim de atiçar milicianos virtuais contra “inimigos do povo”. Depois de introduzir um assunto com um “parece”, um “há suspeita”, Jair Bolsonaro costuma avançar para uma acusação, que por sua vez seria prova de alguma conspiração contra ele e o Brasil. Logo esquece que levantava apenas uma hipótese.

Bolsonaro pode ter escorregado para a calúnia estrita em seu programa semanal ao vivo, na quinta passada. Afora difamações, acusou ativistas ambientais e sociais do Pará de incendiarem a floresta. Sem evidência de crime dos militantes, Bolsonaro terá cometido crime de calúnia.


“Estava circulando uma foto dos quatro ongueiros, vi agora pouco aqui, parece que é verdadeiro, não tenho certeza, né, os caras vivendo em uma luxúria de fazer inveja para qualquer trilionário que anda pelo mundo. Ganhando a vida como? Tacando fogo na Amazônia!”, disse Bolsonaro.

Bolsonaristas repetiram a acusação temerária com desassombro sociopata. Não se trata de engano ou explosão de raiva ocasionais. É a vida como ela é um mundo em que a tentativa de argumentar com fatos é atropelada pela raiva.

Os “engenheiros do caos” exploram uma raiva de base a fim de provocar ondas de fúria, a distração permanente da lacração colérica e derrisória de “hashtags” e posts agressivos, a substância da nova política.

“Engenheiros do Caos” é o livro (em francês) do italiano Giuliano da Empoli, ensaísta pop esperto que analisa estrategistas e cientistas que assessoraram a ascensão dos principais demagogos autoritários do planeta.

Esses engenheiros utilizam massas de dados das redes (“big data”) a fim de provocar emoções extremas em grupos diversos, com mensagens quase individualizadas. O conteúdo de base dessa raiva não importa muito: abandono social, desesperança, desgosto com governos corruptos e tecnocráticos, com elites econômicas e intelectuais e inimigos do povo, reais ou imaginários. O demagogo autoritário não tem o plano de agregar cidadãos em torno de um programa de superação do mal-estar.

Os engenheiros do caos e seus algoritmos, escreve Empoli, levam as pessoas a “defender qualquer posição, razoável ou absurda, realista ou intergaláctica, desde que tenha a ver com as aspirações e os medos (principalmente os medos) dos eleitores”. O objetivo é provocar fúria e caos permanente, temperados por vaga promessa abstrata de “quebrar o sistema” que produz sofrimento.

As mídias sociais são um ambiente propício para a demagogia. A ideologia das redes, que tem seu elemento de verdade, é igualitária (parece que todos podem ganhar likes e serem ouvidos) e a da “democracia direta”, sem intermediação. A divulgação simpática da incapacidade intelectual, das gafes e da incompetência comuns a tantos demagogos autoritários reitera que o “líder” não faz parte da elite tradicional; as “fake news” e as grosserias demonstrariam autenticidade e independência, “sem frescura”.

O caos das redes, diz Empoli, tem um lado “festivo e libertário” como a confusão do Carnaval. Por lá, o ressentimento narcisista da gente comum e a quem não é dada importância, reconhecimento, explode na também carnavalesca quebra de hierarquias e na trolagem escarninha que zomba do poder, do especialista, do intelectual, do cientista, dos pedantes, protesto que ganha pela primeira vez voz individual, publicidade em massa, por causa das redes sociais.

O que fazer?

Era uma vez em... Alter do Chão

Nono filme de Quentin Tarantino, Era uma vez em…Hollywood, estreia nesta semana na tevê a cabo brasileira. É o filme com melhor bilheteria do diretor norte-americano no Brasil, com uma dupla de astros de primeiro time contracenando nos papéis principais: Leonardo DiCaprio e Brad Pitt. Todos os filmes de Tarantino (Cães de aluguel, Pulp fiction, Kill Bill, Bastardos inglórios, Jack Brown, Os oito odiados, Django livre), com antológicas e sutis recriações nos remetem a outros grandes cineastas que o diretor admira, como Martin Scorcese, Francis Ford Copolla, William Friedkin, Peter Bogdanovich, Steven Spielberg, George Lucas e Roman Polanski.

O filme retrata o ambiente da virada dos anos 1960 para 1970, quando o cinema passou por uma mudança radical, com as megaproduções dos grandes estúdios sendo ultrapassadas por filmes mais autorais e baratos, como Sem destino, um road movie americano de 1969, escrito por Peter Fonda, Dennis Hopper e Terry Southern. Produzido pelo primeiro e dirigido pelo segundo, ambos estrelando a película, revelou Jack Nicholson, que roubou a cena. Era o auge do movimento hippie e do “paz e amor”, cuja aura foi abalada pelo famoso caso da Família Manson, uma seita de fanáticos transgressores liderada por Charles Manson, que ordenou a seus seguidores uma série de assassinatos, entre os quais, o da atriz Sharon Tate.

A história de Rick Dalton pode lrender outro Oscar para Leonardo DiCaprio, por sua magnífica atuação. O personagem é protagonista de uma série de faroeste de sucesso na tevê, mas fracassa no cinema. Sobrevive encenando pontas em outras séries na telinha, enquanto busca a grande chance. Tem ao seu lado o amigo e alter ego Cliff Booth, interpretado por Brad Pitt, seu dublê em cenas de perigo e braço direito no dia a dia. Simultaneamente, nasce uma nova estrela em Hollywood: Sharon Tate, no filme O bebê de Rosemary, encenada por Margot Robie. Casada com Roman Polanski, o diretor do filme, a atriz se torna vizinha de Dalton. É um filme sobre os bastidores do cinema e seus protagonistas num momento de revolução dos costumes, com contradições tipicamente norte-americanas.

Pois não é que Bolsonaro resolveu comprar uma briga gratuita com Leonardo DiCaprio, acusando-o de financiar queimadas criminosas na Amazônia por meio de doações à WWF, organização governamental que atua na área ambiental. “Agora, o Leonardo DiCaprio é um cara legal, não é? Dando dinheiro para tacar fogo na Amazônia”, disse. Bolsonaro já havia atacado o ator durante live nas redes sociais, na qual o acusava de financiar quatro jovens integrantes da Brigada de Incêndio de Alter do Chão presos, na terça-feira, por suspeita de incêndio criminoso na Área de Proteção Ambiental de Alter do Chão.

“O pessoal da ONG, o que eles fizeram? O que é mais fácil? Botar fogo no mato. Tira foto, filma, a ONG faz campanha contra o Brasil, entra em contato com o Leonardo DiCaprio, e o Leonardo DiCaprio doa 500 mil dólares para essa ONG. Uma parte foi para o pessoal que estava tocando fogo, tá certo? Leonardo DiCaprio tá colaborando aí com a queimada na Amazônia, assim não dá”, disse Bolsonaro. O ator negou as acusações, reiterou apoio ao movimento ambientalista, mas negou ter financiado os quatro jovens, cuja prisão foi relaxada pelo próprio juiz que os mandou prender, por falta de provas conclusivas. No comunicado, Di Caprio disse ter orgulho de colaborar com grupos que protegem ecossistemas e saiu por cima: “o povo brasileiro está trabalhando para salvar seu patrimônio natural e cultural”.

Bolsonaro gosta de atirar primeiro e perguntar depois. Tudo indica que tirou suas conclusões de uma coletiva de imprensa do delegado de Polícia Civil do Interior, José Humberto Melo Jr, já afastado do cargo. “Percebemos que a pessoa jurídica deles conseguiu um contrato com a WWF, venderam 40 imagens para a WWF para uso exclusivo por R$ 70 mil, e a WWF conseguiu doações, como a do ator Leonardo DiCaprio, no valor de US$ 500 mil, para auxiliar as ONGs no combate às queimadas na Amazônia”, disse Melo Jr.

A WWF Brasil informou que tem contrato de técnico-financeiro com o Instituto Aquífero Alter do Chão, e que o valor de pouco mais de R$ 70 mil foi destinado à compra de equipamentos para as atividades de combate a incêndios florestais pela Brigada de Alter do Chão. Presidente da República não pode tirar conclusões precipitadas. No caso de DiCaprio, Bolsonaro comprou uma briga gratuita, que queima o filme do Brasil na opinião pública mundial. É difícil explicar o que se ganha com isso. Ademais, como no filme de Tarantino, entramos no túnel do tempo. Revivendo polêmicas dos anos 1960 e 1970 cujos traumas estão sendo resgatados da pior forma possível. Sempre haverá uma parcela da população que sonha com a volta ao passado, porém, essa é uma agenda regressiva de governo, um fator de desagregação nacional.

Brasil da Nova Política


Um mito de falsos milagres

Política não anda sem economia e vice-versa. Juntas levam ao Olimpo ou despacham governos para o inferno, quintos que o Brasil habita há anos.

Apesar das promessas de bonança, os sucessores dos trágicos anos Dilma Rousseff mal conseguiram puxar o país de volta ao purgatório. Dados oficiais apontam crescimento entre 0,85% e 0,90% para 2019, menos da metade do prometido pelo governo Jair Bolsonaro, que deve terminar o ano atrás de seu antecessor Michel Temer.

Temer herdou o país no auge da depressão provocada pelo petismo, com índices negativos sucessivos de 3,8% e 3,6%. Saiu do vermelho, colheu crescimento de 1% em 2017 e entregou a batuta ao novo chefe do governo com PIB positivo de 1,1%. Nem isso Bolsonaro conseguirá.

Como falta competência ao governo para colocar em prática uma agenda séria contra a persistência do marasmo, muito menos divindade capaz de mudar os números bem abaixo da expectativa criada, o presidente recorre aos falsos milagres. Os conhecidíssimos ou os mais exóticos.


Entre métodos antigos e experimentados – diga-se, sem sucesso -, estão a desoneração da folha de pagamentos sob o pretexto de criar empregos e o tabelamento de juros. Ambos tão danosos quanto as intervenções feitas por Dilma quando ela se viu no desespero da popularidade em queda.

Lançada com fogos de artifícios, a mexida em encargos trabalhistas é a alma do Programa Verde-Amarelo, Medida Provisória de nome pomposo e constitucionalidade duvidosa já questionada pelo Senado. De caráter ainda mais populista, o tabelamento dos juros do cheque especial até parece um ovo de Colombo. Só não fica de pé. Estimula o mal uso do crédito emergencial e fermenta o lucro escorchante dos bancos, autorizados a cobrar novas taxas de seus correntistas.

Paralelamente, Bolsonaro se utiliza de uma agenda dispersiva, por vezes excêntrica, para mudar o foco sobre a incapacidade de seu governo. E, pior, rouba energia do que realmente importa.

Os expedientes mais bizarros incluem um rol de falas sem pé nem cabeça e atos de natureza discutível. De Bolsonaro e de auxiliares fundamentalistas. Reside aqui, por exemplo, o projeto do Canal 100 para que alunos denunciem a conduta ideológica de professores na sala de aula.

Acusar o ator Leonardo DiCaprio de “dar dinheiro para tacar fogo na Amazônia”, defender exportação de madeira protegida in natura ou garimpo em terras indígenas fazem parte desse esforço sempre bem sucedido de ocupar a mídia com os impropérios ditos e, assim, arregimentar os seus.

Na outra ponta, Bolsonaro trata a ferro e fogo a imprensa, na maior parte das vezes indesejada. Baniu a assinatura do jornal Folha de S.Paulo das hostes governistas, o que atenta contra a lei de licitações, e estimulou o boicote aos produtos anunciados pelo jornal desafeto. Sem a oficialização pretendida pelo PT e rechaçada publicamente, faz o controle da mídia – por tergiversação, a partir de falas absurdas (a maior parte deletérias), e por asfixia.

No Congresso, projetos como o fim da obrigatoriedade da cadeirinha para crianças no carro concorrem com o pacote anticrime do ministro Sérgio Moro, desdenhado pelo capitão. Para o Legislativo o governo enviou propostas como a da autonomia do Banco Central, de privatização da Eletrobrás e da quebra do monopólio da Casa da Moeda. Por elas, liberais demais, Bolsonaro não mexe um único dedo.

Na alma do presidente moram outros demônios. Daí a invenção da urgência para conferir à polícia autorização para matar, para ampliar o porte e posse de armas e para que a União, por meio de forças especiais, possa atuar em reintegrações de posse no campo. Nada capaz de alterar um milímetro na necessária agenda de desenvolvimento do país, para a qual, ao que parece, o presidente se lixa.

É fato que desde a campanha Bolsonaro demonstrou desconhecimento e delegou a economia a Paulo Guedes. Ao presidente caberia a política.

Mas política não existe sem economia e vice-versa. Não à toa tem-se o caos quando, sem resultados positivos entre os números, o Posto Ipiranga abraça a política ao citar o famigerado AI-5. Resta saber quem não entende de quê. Se ambos não entendem nada ou apenas se fazem de desentendidos. Até porque ninguém é santo.
Mary Zaidan

Rica recuperação

Recuperação só começou para os mais ricos no país
Pedro Ferreira de Souza, autor de “Uma história da desigualdade” vencedor do prêmio principal do Jabuti

Bolsonaro intensifica perseguição à imprensa e ONGs enquanto desgasta base de apoio

As bombas midiáticas do presidente Jair Bolsonaro como método para reforçar sua identidade de extrema direita, atacando princípios democráticos, estão virando rotina. Desta vez, ele conseguiu provocar até o ator mais bem pago de Hollywood, Leonardo DiCaprio, insinuando que ele investe em ONGs responsáveis por queimar a Amazônia, a ponto de o ator precisar responder à provocação. Para além dessa acusação contra DiCaprio — sem base na realidade —, Bolsonaro decidiu atentar contra a democracia ao censurar o jornal Folha de S.Paulo numa licitação de jornais com o Governo federal, seguindo os mesmos métodos de governantes de ultradireita pelo mundo. “Recomendo a todo o Brasil que não compre mais a Folha”, disse ele em uma Live para seus seguidores, dizendo que vai boicotar produtos de anunciantes do jornal.

A escalada autoritária faz barulho, mas também tira um pouco mais do seu apoio, como constatou o cientista político Andrei Roman, da Atlas Político. A rejeição ao presidente Bolsonaro subiu nos últimos dias, enquanto o número de apoiadores que consideram seu governo ótimo ou bom caiu de 27,5% no dia 12 de novembro, para algo em torno de 25% neste sábado, diz Roman, que monitora por tracking diariamente as redes para clientes do mercado financeiro. “A rejeição voltou a subir”, explica Roman, embora não precise quanto. Mas no último levantamento da Atlas, no dia 12 de novembro, estava em 42,1%.



A lista de descalabros arbitrários do Governo foi grande na semana que passou. O ataque às ONGs contou com o presidente celebrando nas redes sociais a suspeita prisão de quatro brigadistas voluntários do balneário Alter do Chão, no Estado do Pará, cuja detenção foi cercada de diversas incongruências. A ação foi questionada pelo próprio Ministério Público Federal, que vinha investigando o caso, e afirmou que nunca houve suspeita contra os quatro jovens detidos na terça-feira. Foi também contestada por diversas entidades de meio ambiente e direitos humanos, e repercutiu negativamente no exterior, às véspera da Conferência Mundial do Clima, que acontece em Madri.

Os jovens voluntários, João Victor Pereira Romano, Daniel Gutierrez Govino, Marcelo Aron Cwerner e Gustavo Fernandes, saíram juntos da prisão na quinta. A cena da saída, filmada pelo coletivo Mídia Ninja, choca. Os quatro tiveram a cabeça raspada quando entraram na prisão, e estão visivelmente humilhados. Saindo de mãos dadas, encontram seus familiares. Um deles cai no choro nos ombros do pai e repete “Eu não fiz nada, pai”.
AI-5 do ministro da Economia

A aposta no tudo ou nada do autoritarismo bolsonarista passou também pela segunda menção ao decreto AI-5, de 1968, que inaugurou a linha dura da ditadura militar. Em coletiva com jornalistas, em Washington, o ministro da Economia, Paulo Guedes, não hesitou em falar sobre o AI-5 ao abordar os protestos na América Latina. “Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente? Levando o povo para a rua para quebrar tudo”, afirmou o ministro, que se transformou no fiador da candidatura Jair Bolsonaro quando ele ainda era uma miragem no horizonte das eleições de 2018. Guedes foi duramente criticado pelas forças que procuram fazer um contrapeso aos arroubos do presidente e dos integrantes do Governo. Mas já era a segunda tentativa de colocar o assunto em pauta. O deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, já havia feito a alusão à necessidade de um novo AI-5 caso o Brasil entrasse em convulsão social, como o Chile, ou a Bolívia pós eleição.

De discurso em discurso e da sequência de atos arbitrários como a censura à Folha na licitação, o governo Bolsonaro mostrou que trabalha para desgastar a democracia, tal qual previa Steven Levitski em seu livro Como as Democracias Morrem. Em agosto, ele já havia feito outra tentativa de sufocar jornais, principalmente o jornal de economia Valor, por se mostrar contrariado com a cobertura. Naquele mês, Bolsonaro assinou uma medida provisória para que os balanços das companhias abertas, hoje uma fonte de renda dos jornais, não precisassem mais ser publicados nos veículos de papel, podendo ser exibidos apenas no sites das empresas. Na ocasião, deixou claro que era uma retaliação aos ataques que sofria da imprensa. “Espero que o Valor sobreviva à medida assinada ontem”, ironizou Bolsonaro um dia depois de assinar a MP.

A MP foi suspensa por liminar do ministro do Supremo, Gilmar Mendes, e depois derrubada por uma comissão da Câmara dos Deputados. Mas, a artilharia para alterar as normas é contínua e perigosa por estar sob o manto democrático, como observou Pedro Abramovay, diretor da Open Society Foundation, no artigo “O sapo escaldado da democracia”, publicado pela revista Piauí. “O novo autoritarismo vai gradualmente subindo sua temperatura até que a democracia morra calmamente, sem gritos ou baionetas”, escreve Abramovay, que recorre à metáfora do sapo que entra no caldeirão de água fria, e vai esquentando pouco a pouco até ferver e ele morre sem se dar conta da armadilha.

Em editorial deste sábado intitulado Fantasia de Imperador, a Folha de S.Paulo faz uma dura crítica à combinação entre “leviandade e autoritarismo” de Bolsonaro diante da exclusão da Folha de uma licitação ― e da ameaça a seus 5.000 anunciantes —, lembrando que o Palácio do Planalto não é extensão de sua casa no Rio de Janeiro, “nem os seus vizinhos na praça dos Três Poderes são os daquele condomínio”, afirma. Bolsonaro mora num condomínio na Barra da Tijuca, e tem como vizinhos Ronnie Lessa, que está preso, e é um dos suspeitos do assassinato da vereadora Marielle Franco. Em entrevista à Folha, o diretor da Faculdade de Direito da USP, Floriano Azevedo Marques Neto, explica que a censura ao jornal do processo de licitação pode configurar improbidade administrativa ou crime de responsabilidade. A aposta do presidente atiça sua base radical, mas mostra-se um jogo arriscado para sua própria sobrevivência política antes mesmo de completar um ano de Governo.

Hora dos freios

O episódio da fala do ministro Paulo Guedes de que não seria surpresa caso alguém voltasse a falar de AI-5 é emblemático porque mostra uma distinção cada vez mais difícil de ser feita: a daqueles que apoiam as medidas econômicas do titular da Economia e, por isso, fecham os olhos para os sistemáticos e cada vez mais graves abusos do seu chefe, o presidente Jair Bolsonaro. Guedes mesmo flertou com isso em sua declaração, embora não ache que o fez.

O mercado, os conservadores, setores da imprensa, partidos como o Novo, outros ministros de Estado, eleitores que não se enquadram na categoria “mínions”, deputados e senadores estão no mesmo barco. Até quando será possível entoar o discurso de que a agenda reformista é boa e necessária e condescender com o inadmissível?

É incompatível com o estado democrático de direito aceitar excludente de ilicitude para operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para a atuação de militares na contenção de protestos de rua – que, por sinal, ainda existem apenas na mente paranoica do presidente e de seus acólitos.

É incompatível com o estado democrático de direito um presidente decidir quais veículos de comunicação podem ser lidos, assinados e entrar em licitações em órgãos públicos. É inconstitucional, é grave, é imoral, é inadmissível. Nenhum democrata pode aceitar isso, sob nenhuma justificativa. É um limite rígido, que quem aceitar ultrapassar pode não perceber agora, mas passou para o lado dos que aceitam transigir com a democracia.

É inadmissível que o presidente invista de forma deliberada contra a sociedade civil organizada, nomeando para cargos públicos – portanto aparelhando, assim como acusava a esquerda de fazer – pessoas imbuídas única e exclusivamente do espírito de promover revanche e retaliar uma parte do povo brasileiro. Um presidente não pode escolher para quem vai governar nem lançar instrumentos de Estado para perseguir aqueles a quem abdicou de representar.


Isso o tira dos trilhos delimitados pela Constituição, e deveria ser razão para que os demais Poderes, a OAB, a imprensa, a população e os partidos responsáveis usassem os mecanismos de freios e contrapesos disponíveis no mesmo ordenamento jurídico que vem sendo sistematicamente aviltado para pará-lo. Já. Independentemente da agenda de reformas, e até para que ela não seja rapidamente deslegitimada, colocada em segundo plano como já vem sendo colocada pelo próprio presidente aprendiz de autocrata, que resolveu rasgar a fantasia liberal e partir em marcha batida para a supressão sistemática de direitos e garantias que não são deles, mas nossos. Foram conquistados duramente, ao longo de décadas de uma volta à democracia que a ditadura que ele nega e apoia nos tirou ao longo de mais de duas décadas. Vamos deixar? Por que motivo?

Deputados e senadores, os senhores foram tão eleitos quanto o presidente. Engavetem logo essas tentativas de usar excludente de ilicitude como se fosse band-aid. Não é. É instrumento excepcional. Não sejam cúmplices desse atentado gradual e diário à democracia, pois a próxima vítima podem ser os senhores. Vale para veículos de imprensa, que olham acovardados para as investidas contra seus congêneres sem se dar conta de que estão no mesmo balaio.

E vale para os ministros do Supremo. Parem de investir vocês também contra a segurança jurídica do País e se assenhorem do seu papel de guardiões da Constituição.

Um ministro me disse nesta semana que se Bolsonaro insistir no caminho do arbítrio haverá demissão coletiva. Será? Senhores civis e militares, examinem suas consciências: com quanto de abusos os senhores estão dispostos a transigir? Porque um tanto vocês já engoliram em meio a risos nervosos e declarações bizarras.

Um presente envenenado

Quando uma distopia publicada em 1962 parece mais atual hoje do que na época em que foi escrita, é porque a Humanidade tropeçou no caminho para o futuro. Além disso, podemos imaginar que o seu autor visitou o futuro, não gostou do que viu, e escreveu o livro com a intenção de alterar o rumo dos acontecimentos. Relendo “O homem do castelo alto”, de Philip K. Dick, ou assistindo à extraordinária série inspirada no mesmo, fico com a impressão de que ambas as suposições são verdadeiras.

Philip K. Dick sabia demasiado sobre o nosso estranho tempo. Disfarçou um pouco, ao escrever, em 1968, “Androides sonham com ovelhas elétricas?” (que deu origem ao filme “Blade Runner”), cuja ação decorre nos nossos dias. É verdade que ainda não confundimos humanos com androides. Contudo, muitas das grandes questões colocadas por Dick no seu romance estão sendo debatidas agora. Fomos avisados — mas não compreendemos o aviso.

O que mais surpreende e perturba no caso d'"O homem do castelo alto" não são tanto os avanços tecnológicos, e a sua eventual má utilização, mas o paralelismo com o recuo democrático que vivemos hoje. O livro defende a tese de que “pessoas normais” — ou seja, pessoas que em circunstâncias democráticas seriam cidadãos pacíficos — podem, quando enquadradas num regime despótico, transformar-se facilmente em monstros abomináveis.

Qualquer pessoa que tenha vivido parte da sua vida sob um regime autoritário reconhece a elementar justiça de tal tese: democracias autênticas tendem a puxar pelo melhor de nós; regimes autoritários, pelo contrário, apostam na cultura do ódio, deformando e corrompendo os seus cidadãos, e transformando muitos deles em delatores e assassinos.

Escrevo esta coluna depois de assistir à quarta e última temporada da série “O homem do castelo alto”. Criada por Frank Spotnitz (“Arquivo X”) e produzida pelo cineasta Ridley Scott para a Amazon, a série imagina um mundo alternativo, no qual os nazistas e os seus aliados venceram a guerra. Os EUA estão divididos. A Costa Leste está ocupada pelo Grande Reich Nazista. A costa do Pacífico integra o Império Japonês.

A série permite-nos ter acesso à intimidade da família nazi-americana. Conhecemos suas ideias e aspirações, mas também as suas dúvidas e receios. O "Reichsführer" John Smith (Rufus Sewell) é um vilão que poderia não o ser — que não o seria em circunstâncias diferentes. E é justamente isso que perturba. Todos nós temos amigos ou familiares que se parecem com aquelas pessoas. Todos nós conhecemos um colega de trabalho ou um vizinho com aspirações a Reichsführer.

As democracias estão em crise. Crise que também é uma crise da esperança e do sonho. Para desmontar um regime democrático há primeiro que abastardar as instituições e os ideais que o sustentam. Um bom exemplo desta política é a recente nomeação de Sérgio Nascimento de Camargo para presidente da Fundação Cultural Palmares. Como já fora antes a nomeação da inefável Damares Alves para ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, ou de Ricardo Salles para ministro do Meio Ambiente.

Talvez Philip K. Dick tenha visitado o Brasil do futuro, no início dos anos 1960. O Brasil que temos hoje. Talvez ele tenha visto este presente envenenado.
José Eduardo Agualusa

Paisagem brasileira

Mato Grosso

É difícil derrotar um presidente que se sente obra de um milagre e eleito por Deus

O ex-presidente Lula saiu da prisão com o firme propósito de derrotar o presidente Bolsonaro. Não será tão fácil enquanto ele e seus fiéis seguidores de extrema direita continuarem convencidos de que foi Deus quem o escolheu após o milagre de sair ileso de uma facada recebida na barriga por um desequilibrado durante a campanha eleitoral, e que quase o matou. Ele mesmo contou que os médicos lhe disseram que de 200 casos como o seu somente um sobrevive. Ao deixar o hospital, Bolsonaro, aquele que foi salvo por um milagre, levava no pulso uma fita azul com a citação do Apocalipse, 12,11, “protegido pelo sangue”.


O Brasil é presidido por um capitão reformado que se confessa objeto de um milagre de Deus que salvou sua vida e o elegeu nas urnas. Deus é a palavra mais usada do escasso vocabulário de Bolsonaro, junto com as armas, a família e a pátria. Em seu discurso de posse, em 1º de janeiro, em poucos minutos falou Deus 12 vezes. No passado, na mesma ocasião, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso não o nomeou uma vez sequer, Dilma uma e o católico Lula, duas. Bolsonaro se considera um resgatado pela mão de Deus. “Sou um sobrevivente e devo minha vida a Deus”. A vida e a eleição a presidente.

A fé religiosa pode ser libertadora e opressiva, nunca inócua. Por isso deveria ficar à margem da política. Pode ser escudo e arma. É as duas coisas no Brasil multireligioso em que praticamente não existem ateus e poucos agnósticos. Deus está no sangue dos brasileiros que o usam, dos mais pobres aos mais ricos.

“Eu me pergunto", disse Bolsonaro (após ser eleito com 157 milhões de votos), "o que fiz para merecer isso”. E acrescentou: “Eu não nasci para ser presidente, nasci para ser militar”. E enquanto se pergunta como pôde chegar à presidência para indicar que foi Deus que o conduziu pela mão, Lula, pelo contrário, se queixa de que o impediram de ser presidente pela terceira vez já que ele, diz, “sabe como governar esse país”. Um duelo entre Bolsonaro, fruto de um milagre, e Lula que sabe para que nasceu. Duelo perigoso.

Ambos, Bolsonaro e Lula, sentem-se ser o novo Moisés capaz de retirar o Brasil de sua latente escravidão, ainda que por caminhos e visões opostas de tal escravidão. Bolsonaro se sente tomado pela mão de Deus, e Lula talvez pense ser a mão desse Deus. Ao juiz Moro durante um interrogatório em um de seus processos por corrupção, Lula disse que a Bíblia proíbe “invocar o nome de Deus em vão”. Bolsonaro se sente o favorito de Deus e Lula parece querer emular esse mesmo Deus. Competição difícil no ringue para elucidar quem o céu escolheu para dar-lhe a vitória final.

Luta inútil por emular o Altíssimo em um mundo globalizado que há tempos escolheu o deus da secularidade após ter se libertado dos deuses religiosos relegando-os à esfera íntima e pessoal. O Brasil ainda está a meio caminho dessa conquista civilizatória enquanto os defensores da teocracia lutam, com Bolsonaro, para mudar a Constituição sacralizando-a e colocando-a aos pés de Deus. O lema de Bolsonaro que o acompanhou durante toda a campanha eleitoral, foi “Deus acima de tudo”. O nome desse Deus ainda é uma incógnita nessa batalha entre duas concepções diferentes de Brasil e da História.

E se tudo fosse uma ilusão, se o Brasil real não fosse o de Bolsonaro e o de Lula, o dos milagres e o dos caudilhos? Talvez a verdadeira esperança de que esse país possa saber expressar um dia a grande riqueza cultural, ecumênica e de convivência pacífica gestada em seu ventre, não passe por milagres e bravatas fora do tempo, e sim pelos caminhos dolorosos e salvadores da liberdade sem cores e sobrenomes.

Os verdadeiros heróis, os criadores da paz e liberdade na diversidade, deverão ser do mais humilde ao mais poderoso do Brasil. Deles, de sua fadiga, de sua capacidade de resistência à barbárie e não de milagreiros, poderá nascer um novo Brasil que leve o sabor do pão sovado pelas mãos juntas de todos os seus filhos.

A banalidade autoritária

Ninguém que defenda a democracia pode considerar normal a banalidade com que se tem invocado a edição de um novo AI-5. Com o AI-5, o Congresso foi fechado, o presidente da República foi autorizado a decretar estado de sítio por tempo indeterminado, demitir pessoas do serviço público, cassar mandatos, confiscar bens e intervir nos Estados e municípios. A liberdade de imprensa e de expressão foi extinta. Essa é a verdade dos fatos. Escondê-la é distorcer a realidade, é fabricar fake news.

Autor do recém-lançado Existe democracia sem verdade factual? (Estação da Letra e Cores Editora), no qual dialoga sobre o impacto da desinformação no debate público com o pensamento da filósofa Hannah Arendt, criadora da teoria da “banalidade do mal”, Eugênio Bucci, professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP, faz uma analogia entre a tentativa de negar a verdade dos fatos e a ameaça ao estado democrático de direito.


À coluna, Bucci lembrou que a democracia é uma construção histórica, um engenho social, um projeto humano. “Sem cuidados, ela pode perder vigor e desaparecer. A democracia existe porque existiram e existem seres humanos que cuidam dela, com muito trabalho. Sem eles, nada feito.”

Para existir a democracia, é preciso haver liberdade de expressão e de imprensa. Mas até quando a liberdade de imprensa e de expressão sobreviverá à ameaça de soluções autoritárias, como a da volta do AI-5, ou à tentativa de banalização do uso das Forças Armadas em conflitos urbanos e rurais, que podem esconder intervenções nos Estados e quebra do princípio federativo?

Bucci observa que no Brasil e em outros países aumentam a atividade e o espaço dos que trabalham contra e combatem as liberdades individuais, os direitos fundamentais, as conquistas sociais, a tolerância, o pluralismo e a cultura de paz, valores que servem de balizas civilizatórias. “A democracia ainda está aí, as instituições estão funcionando, mas as ameaças contra ela se avolumam.”

Nesse contexto, os primeiros ataques tentam atingir a liberdade de imprensa – a frente mais frágil e mais visível das sociedades democráticas, diz Bucci. “No Brasil, o clima de ameaças se tornou escancarado. Artistas são xingados e execrados. As universidades sofrem infâmias diárias, como a de que não passam de centro de consumo e de produção de drogas. Por que isso? Porque na universidade há pensamento livre, coisa que os autoritários não suportam. E porque nas artes há imaginação à solta, coisa que os apavora. Mas é contra a imprensa que se detonam os bombardeios mais baixos e mais covardes, incluindo intimidações pessoais, ameaças de morte e de prisão, chantagens e tentativas, vindas do Estado, de quebrar o negócio de órgãos jornalísticos.”

Para Bucci, não há nada mais frágil do que a verdade factual, mas, ao mesmo tempo, não há nada que o autoritarismo mais tema. “Cerremos fileiras com a liberdade de imprensa. Se ela cair, todo o resto cairá logo em seguida. Se queremos uma democracia que não dobre os joelhos, queremos uma imprensa incômoda, independente e sustentável. A liberdade de imprensa será o fiel da balança no Brasil de agora, como já foi no passado. Sem ela, além de acuados, estaremos perdidos.”

Despedida
Esta é minha última coluna. A intenção, ao pedir a Eugênio Bucci que falasse sobre a liberdade de imprensa para o texto de despedida, foi lembrar que essa liberdade sofre ameaças muito sérias. Entendo que Bucci, ao lado do ex-presidente do STF Ayres Britto, e de veículos de comunicação como o Estado, simbolizam, cada um em seu espaço, a luta pela liberdade de expressão. Que, em resumo, é a defesa da democracia. E a garantia da liberdade.

Liquidação

Eu não vejo dentro do discurso dos atuais secretários e dos ministros do governo Bolsonaro nenhum plano concreto de construção. É só destruição, é só desmantelamento 
Vik Muniz

Bolsonaro edita o Ato Institucional n° 1: 'Folha não!'

As aparências não enganam: Quando você vê um presidente da República comportando-se de forma autoritária, provavelmente ele é autoritário. Desde que assumiu, o atual inquilino do Planalto tenta conciliar duas necessidades conflitantes: ser Jair Bolsonaro e manter a compostura exigida pelo cargo.

Ao excluir a Folha de uma licitação governamental e incitar um boicote aos anunciantes do jornal, o presidente potencializou a impressão de que Bolsonaro e compostura são realmente coisas inconciliáveis.

"Eu não quero ler a Folha mais. E ponto final. E nenhum ministro meu", disse Bolsonaro. "Recomendo a todo Brasil aqui que não compre o jornal Folha de S.Paulo. Até eles aprenderem que tem uma passagem bíblica, a João 8:32. A imprensa tem a obrigação de publicar a verdade. Só isso. E os anunciantes que anunciam na Folha também".

Para Ayres Britto, ex-presidente do STF, o Planalto não realiza uma licitação, mas uma "ilícita ação". Como leitor, Bolsonaro tem todo o direito de não gostar da Folha. Como consumidor, pode se abster de comprar o jornal. Como presidente, comete uma ilegalidade ao excluir um dos principais jornais do país de uma licitação pública para a aquisição de acesso digital ao noticiário de veículos de imprensa.


A decisão de Bolsonaro viola os "princípios constitucionais da impessoalidade, isonomia, motivação e moralidade", anotou o subprocurador-geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, Lucas Furtado, em representação protocolada na última sexta-feira.

No trecho predileto de Bolsonaro, o Evangelho de João anota: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará". O problema é que o capitão opera num mundo com duas verdades: a dele e a verdadeira. O defeito não está na liberdade de expressão da imprensa, mas na dificuldade do presidente de se exprimir.

Bolsonaro chama a Folha de mentirosa e, na sequência, acusa Leonardo DiCaprio de financiar incêndios na selva amazônica. Desmantela o aparato ambiental e confraterniza-se com desmatadores. Depois, diz que o problema são as ONGs, os cientistas do Inpe e as doações feitas pelos governos da Noruega e da Alemanha.

Na sua concepção de verdade, Bolsonaro considera-se um político avesso à corrupção e aos maus costumes. Na versão verdadeira, convive doce e fraternalmente com ministros indiciados, denunciados e até um condenado.

O presidente bate bumbo pela transparência, mas esconde o amigo Fabrício Queiroz e as relações dele, que vão da assessoria tóxica ao primogênito Flávio aos vínculos com milicianos. Alardeia que Luciano Bivar, do PSL, está "queimado pra caramba" e não repara nas pesquisas que o colocam na frigideira.

Não é que Bolsonaro não goste da imprensa. A questão é que ele só aprecia três tipos de imprensa: a que não tem nada a dizer, a que prefere não dizer e a que deseja dizer coisas deliciosamente favoráveis.

A imprensa que tem o incômodo hábito de imprensar não serve. Por uma razão simples: ajusta as aparências de Bolsonaro à realidade em vez adaptar a realidade às aparências do Brasil ficcional que o capitão escolheu para governar.

Além do versículo bíblico, Bolsonaro guia-se na presidência por um slogan: "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos". Nem acima, nem à direita. O desapreço de Bolsonaro pela liturgia democrática joga o Brasil para baixo.

A julgar pela aversão do presidente à imprensa livre, embora Deus esteja em toda parte, é o Tinhoso quem ocupa a mente baldia de Bolsonaro. A escassez de reações ao desatino presidencial revela que o capitão pratica suas exorbitâncias num cenário em que o absurdo vai adquirindo uma doce e persuasiva naturalidade.

Pouca gente se deu conta. Mas Bolsonaro acaba de editar o seu Ato Institucional Número Um: "Folha não!". Fez isso num instante em que o AI-5 escorre tanto de lábios aloprados como os de Eduardo Bolsonaro quanto de bocas improváveis como a de Paulo Guedes.

Com honrosas exceções, políticos, autoridades e personalidades não fizeram a concessão de uma surpresa. Aos pouquinhos, o país vai suprimindo dos seus hábitos o ponto de exclamação. Se Bolsonaro servir, num banquete, mentira desossada, a maioria engolirá com gosto. É mentira? Pois que seja mentira! E com abóbora.

Quando vier a indigestão, será tarde.