segunda-feira, 16 de julho de 2018

É a lama, é a lama


O jogo bonito está (quase) morto

Na falta do que aplaudir, ultimamente os torcedores de futebol podem usar as mãos para se dedicar plenamente ao consumo de batatas chips, pipoca e outras guloseimas. O chamado jogo bonito está praticamente morto. Na Copa do Mundo na Rússia, foi preciso um olhar microscópico para encontrar lances brilhantes, que enaltecem a qualidade técnica de um jogador.

O passe açucarado de calcanhar do francês Kylian Mbappé na semifinal contra a Bélgica, por exemplo, foi uma das exceções. Não é de se admirar que o lance tenha sido celebrado e compartilhado maciçamente nas redes sociais, embora não tenha resultado em gol.


Outros craques, que poderiam ter criado momentos especiais diante do gol – como os astros eleitos cinco vezes como melhores jogadores do mundo Lionel Messi, da Argentina, e Cristiano Ronaldo, de Portugal, ou o postulante ao trono Neymar – despediram-se da Copa com suas seleções antes do esperado. Algo quase sintomático, pois no torneio dominaram as defesas, e não as forças ofensivas.

Pouco espaço para criatividade

"Foi possível observar que as equipes, incluindo aquelas consideradas menores, foram treinadas para ficar na defensiva e fechar os espaços para as equipes adversárias", aponta o professor Daniel Memmert, diretor do Instituto de Ciência do Treinamento e Informática no Esporte da renomada Universidade Alemã de Esportes, em Colônia. "Exceto por talvez um ou dois jogos da Copa do Mundo, o lema era: não sofrer gol."

Como resultado, a Copa do Mundo proporcionou vários jogos que apenas amantes de tática do futebol puderam apreciar e que não corresponderam às altas expectativas em relação ao nível técnico. Até mesmo as duas semifinais não foram exceção.

"Na maioria das vezes faltou criatividade para furar as barreiras defensivas. Se continuamente são usadas as mesmas armas, estas se tornam inofensivas rapidamente", analisa Memmert. "Prova disso é que muitos gols nesta Copa do Mundo foram marcados em jogadas ensaiadas, e não de bola rolando."

O fim do tiki-taka

Cerca de 40% de todos os gols da Copa do Mundo de 2018 resultaram de bolas paradas, ou seja, de cobranças de falta, escanteios, laterais ou pênaltis. No Mundial sediado pelo Brasil, em 2014, foram apenas 26%. A quarta colocada, Inglaterra, por exemplo, marcou nove de seus 12 gols dessa forma.

Também foram bem-sucedidas as seleções que construíram ataques rápidos a partir de uma defesa sólida, com o bom e velho contra-ataque – atualmente chamado de transição – como receita de sucesso.

O tiki-taka, o jogo de passes curtos que os espanhóis aperfeiçoaram e que fora celebrado como deslumbrante por anos, está fora de uso. As três seleções com as maiores médias de posse de bola foram cedo para casa: Alemanha, na fase de grupos, e Espanha e Argentina, nas oitavas de final.

A Copa do Mundo na Rússia mostrou claramente que quem quiser ser bem-sucedido precisa, em primeiro lugar, ser sólido defensivamente. No entanto, muitas equipes dominam isso, e para se destacar da concorrência, é preciso mais.

"Mudanças no ritmo de jogo estão se tornando cada vez mais importantes", afirma Memmert. "As equipes têm que treinar como jogar de forma variável e integrar muitas ideias em seu jogo, a fim de serem mais imprevisíveis para seus oponentes. Há muita coisa para se fazer em termos de criatividade."

Assim, artistas da bola com habilidades técnicas notáveis provavelmente poderão ser mais decisivos num jogo – e fazer com que os torcedores comuns deixem as batatas chips de lado para voltar a aplaudir o jogo bonito.

Censo

Na colina onde ficava Troia
foram escavadas sete cidades.
Sete cidades. Seis a mais
para uma única epopeia.
Que fazer com elas? Que fazer?
Arrebentam os hexâmetros,
um tijolo afabular espia pelas brechas,
no silêncio do filme mudo, muros derrubados,
vigas queimadas, correntes rompidas,,
cântaros esvaziados até a última gota,
amuletos da fertilidade, caroços de fruta
e caveiras tangíveis como a lua de amanhã.

Santiago Caruso
Nossa dose de antiguidade vai crescendo,
fica apinhada de gente,
inquilinos brutais
se empurram na história,
hordas de carne para a espada,
extras de Heitor iguais a ele em bravura,
milhares e milhares de rostos singulares,
cada um o primeiro e o último no tempo,
e em cada rosto dois olhos sem par.
Era tão fácil não saber nada sobre isso,
tão comovedor, tão amplo.

Que fazer com eles? O que lhes dar?
Algum século pouco povoado até agora?
Um pouco de apreço pela arte da ourivesaria?
Pois é muito tarde para o juízo final.

Nós, três bilhões de juízes,
temos nossos problemas,
nossas turbas inarticuladas,
estações, arquibancadas, procissões,
incontáveis números de estranhas ruas, andares, paredes.
Desencontramo-nos para sempre nas grandes lojas
comprando um jarro novo.
Homero trabalha num instituto de estatística.
Ninguém sabe o que ele faz em casa.

Wislawa Szymborska, "Um amor feliz"

Lula não é o Brasil

No início de setembro de 2014, o então governador do Distrito Federal, Agnelo Queiróz (PT), candidato à reeleição, comemorou. Seu maior adversário, o também ex José Roberto Arruda (PR), líder absoluto nas pesquisas, com 37%, estava fora do páreo.

Impedido pela Lei da Ficha Limpa, Arruda se viu obrigado a desistir da disputa, sem o que não poderia colocar outro nome no seu lugar.

Dois outros candidatos a governos estaduais também foram banidos pelas mesmas regras: José Riva, do Mato Grosso, e Neudo Campos, de Roraima, substituído na última hora por sua mulher, a atual governadora Suely Campos.
“Ficha suja não pode participar de eleição”, proclamava o governador petista, que acabaria derrotado por Rodrigo Rollemberg (PSB) dois meses depois.

Hoje, Queiróz é companheiro de Arruda nos enroscos envolvendo o Mané Garrincha, um dos estádios mais caros do planeta – custou mais de R$ 1,7 bilhão, com superfaturamento calculado em R$ 950 milhões. E a campanha feita por ele pró-Ficha Limpa é o que o PT quer esquecer. Ou, pelo menos, driblar.
Condenado por órgão colegiado em segunda instância – exatamente como está escrito na Lei Complementar 135 que ele próprio sancionou em 2010 -, Luiz Inácio sabe que Lula não pode ser candidato. Assim como sabia da falseta do habeas corpus de soltura do desembargador de plantão. Não há recurso possível, janela ou hipótese para tal.

Mas isso são apenas leis, e leis pouco importam para essa turma. Da cadeia, Lula faz o que sempre fez: chacota do Judiciário e da Justiça. E, claro, estimula os desatinos.

Como do ponto de vista legal sua candidatura inexiste, Lula puxa a corda que seus fiéis esticam.


Obedientes, eles entopem a Justiça com recursos impróprios e petições idênticas, exigem que Lula possa fazer campanha, como se sua condenação fosse ilegítima. Alardeiam ao mundo que o Brasil vive em regime de exceção, apostam no caos.

No limite, pretendem mais do que simplesmente inscrever Lula como candidato. Querem postergar a recusa definitiva do TSE com recursos no STF, e, por que não?, provocar o constrangimento de uma anulação das eleições com a cassação de Lula depois do voto dado.

Ao mesmo tempo, deixam claro a impossibilidade de sobrevida sem o chefe. Escancaram que qualquer plano B ou C, que tanto espaço ocupa na mídia, salva pouco ou quase nada do que resta do partido.

O desembargador amigo de domingo e a assumida esperança depositada no STF presidido por Dias Toffoli a partir de setembro, seriam trunfos, agora exauridos.
Embora no afã de livrar Lula o PT se esforce para o país andar para trás, o avanço já se deu. A candidatura Lula terá o mesmo final da de Arruda, também enrolado com a Justiça, de Neudo Campos, em prisão domiciliar desde 2016, e de Riva, condenado a 26 anos de xilindró.

Do contrário, revogam-se não só as leis, mas o Brasil.

Mary Zaidan

Pensamento do Dia


A espanhlinha e o Príncipe Gurdjieff

“Españolita” não por sexismo falocrata, nem pela paixão dos peruanos por diminutivos, mas sim pelo afeto, por alguém tão frágil, magrinha e vulnerável ao que parece, lá no bairro de San Martin de Pangoa, em plena selva amazônica, onde deve ter sido comida viva por mosquitos, com seu bebê de um mês nos braços e aqueles grandes olhos de menina corajosa, que descobriu a verdade e sabe que este mundo desaparecerá, mas ela será salva com a ajuda do príncipe Gurdjieff e será a mãe de uma nova humanidade.

Sua história eu posso imaginar perfeitamente. Patrícia Aguilar, 16 anos, está lá em sua terra natal, Elche (Alicante), entristecida pela morte de um tio muito querido, navegando na internet. E de repente aparecem na tela as palavras salvadoras, vindas do outro lado do mundo, o Peru. Primeiro, elas a deixaram intrigada, depois a seduziram e, finalmente, a convenceram. Este mundo ia acabar por causa da insensatez e crueldade dos humanos; mas poucos seriam salvos, graças ao príncipe Gurdjieff e sua sabedoria para passar sobre aparências e chegar à verdade crua e dura. Com ele, sobreviveriam aqueles que escutassem sua mensagem. O que poderia importar a ela que tais textos estivessem crivados de erros ortográficos, se comunicavam algo que tocou seu coração e a contagiou com uma força desconhecida? Escondida de seus pais, Patrícia manteve longas conversas com o guru peruano, que a levou ao conhecimento das verdades epistemológicas, astrais e esotéricas que possui e dando instruções que a jovem seguiu ao pé da letra.

Quando completou dezoito anos, a maioridade, disse a seus pais que iria jantar na casa de um amigo. Na verdade, desapareceu, levando seis mil euros da família. Desembarcou em Lima, onde conheceu seu mestre, mentor e, desde então, amante. O príncipe Gurdjieff tinha uma esposa legítima e pelo menos mais duas amantes. E filhos com todas elas. Vivia em um bairro muito pobre, mas a espanholinha estava preparada para todos os sacrifícios. Ficou grávida e, como as outras mulheres do harém do qual agora fazia parte, tornou-se vendedora ambulante para alimentar e vestir seu príncipe e guru. Segundo os vizinhos da casa onde ele vivia com seu harém e creche, de lá vinham ruído violentos, de golpes.

Aqui, aparece o herói da história, segundo os jornalistas: Alberto Aguilar Berna, comerciante que fornecia fermento a todos os padeiros de Elche, homem modesto, trabalhador e invulnerável ao desânimo. Ele começou a mover céus e a terra para encontrar a filha desaparecida. Denunciou seu sumiço à polícia de Alicante, mobilizou a opinião pública, conseguiu fundos e, quando soube que Patrícia estava no distante Peru, partiu até essa remota fronteira. Lá, ele apresentou outra queixa à polícia local. Ao mesmo tempo, ele fez perguntas e chegou a descobrir o bairro em que vivia o príncipe Gurdjieff: encheu o local com cartazes oferecendo recompensa de dez mil sóis a quem revelasse o paradeiro da menina.

Até então, o bruxo, xamã e vigarista tinha fugido para Junín, várias centenas de quilômetros a leste de Lima e se refugiado em um povoado amazônico, Alto Celendin, onde Patrícia e as outras mulheres trabalhavam como garçonetes em um restaurante para dar-lhe o que comer. Alberto Aguilar Berna chegou lá, com policiais peruanos aos quais precisou pagar pela viagem, alimentação e hospedagem, dados os magros orçamentos da polícia. Finalmente eles a encontraram e essa é a fotografia distribuída pelo mundo: a da menina espanhola em bombachas floridas, anatomia delgada, com sua bebê nos braços e um olhar fixo e sereno, que desafia o mundo, porque ela sabe qual é a sua verdade.

A polícia também capturou o príncipe Gurdjieff, cujo nome verdadeiro é Felix Steven Manrique Gómez. Ele tem 35 anos e, além de bruxo, guru, sedutor e inventor de histórias, promete às suas seguidoras do sexo feminino diminuir seus quadris se estes forem muito largos, aumentar seus seios se isso for necessário e perfilar seus narizes. Tem gestos afetados impressionantes. Mal foi capturado, logo pediu um cabeleireiro-barbeiro para cortar o cabelo e fazer a barba, para ficar mais bonito nas fotos de imprensa. É um eletricista qualificado, expulso de uma seita chamada Gnosis por conduta imprópria e, utilizando diferentes nomes e pseudônimos no Facebook e YouTube, vinha anunciando há muito tempo o irremediável fim do mundo, e a sua recriação graças a ele, o escolhido.

Até agora tudo tem a aparência de uma história bastante frequente, neste mundo de obscurantistas mais ou menos desonestos e garotas ingênuas. No entanto, em vez de um final feliz, os problemas de Alberto Aguilar Serna e sua esposa estão apenas começando. Porque sua filha Patrícia, que está sendo “desprogramada” por psicólogos da polícia peruana, nega, ao que parece, ter sido sequestrada. Diz que está muito feliz com sua sorte e com a pequena filha, que lhe deu o príncipe Gurdjieff, e se recusa a ser salva. Não nos esqueçamos que ela é maior de idade e que, a menos que seja louca, ela pode fazer o que quiser com sua vida. É verdade que, como está vivendo ilegalmente no Peru, pode ser deportada para a Espanha, onde sua simpática mãe disse “esperar por ela e pela menina de braços abertos.”

Eu tenho tão pouca simpatia por esse príncipe Gurdjieff como pelo verdadeiro Gurdjieff, que, de acordo com Jean-François Revel, era um “canalha bêbado”, na Paris dos anos 1940, seduzindo com sua farsa espiritualista a senhoras milionárias e intelectuais progressistas (inclusive a ele, Revel, por um tempo), para que pagassem por suas bebedeiras. Mas se todos os vendedores de absurdos religiosos fossem presos e nós nos dedicássemos a “desprogramar” aqueles que acreditaram no que lhes diziam, o mundo, eu temo, ficaria despovoado. E, pior, a liberdade desapareceria.

Em contraste, embora todos os livros esotéricos tragam-me um bocejo de crocodilo, sinto muito carinho pela delgada Patrícia e sua odisseia me traz uma certa admiração misturada com tristeza. Era feliz, levando uma existência deplorável ao lado do príncipe, servindo-o como as outras infelizes que também acreditavam nas idiotices que ele lhes dizia com erros ortográficos? Será que aqueles que “desprogramam” abrirão para ela o caminho da normalidade? E se a transformarem em uma moça bem-vestida, bem alimentada, mas sem rumo, infeliz, convencida de que, como uma pessoa normal, ela perdeu sua alma e razão de viver?

Não digo que isso aconteça, mas poderia acontecer e, nesse caso, o que é mais justo? Eu acho que eu a deixaria fazer o que ela quisesse, o que a faz se sentir melhor, respeitar o destino que ela escolher para a menina que ela teve nos braços daquele príncipe de lixo. A “normalidade” também pode ser assustadora quando imposta à força e consiste em aniquilar a liberdade dos outros, aqueles que não acreditamos serem normais.

Criticar é preciso

Depois do direito de criar, o direito de criticar é o bem mais precioso que a liberdade de pensamento pode ofertar
Valdimir Nabokov

Cobertura eleitoral sem tabus

A Copa do Mundo acabou. Desceu a cortina. O sonho do hexa ficou para 2022. Agora voltamos ao País real. Estamos num ano eleitoral dramaticamente importante. Não será uma cobertura da eleição fácil. Vivemos tempos de radicalização amplificados por uma das maiores crises da nossa História.

Ataques aos adversários, promessas irrealizáveis e imagens produzidas farão parte, mais uma vez, do discurso dos candidatos. Assistiremos diariamente a um show de efeitos especiais capazes de seduzir o grande público, mas, no fundo, vazio de conteúdo e carente de seriedade. O marketing, ferramenta importante para a transmissão da verdade, pode, infelizmente, ser transformado em instrumento de mistificação. Estamos assistindo à morte da política e ao advento da era da inconsistência.


Os programas eleitorais vendem uma bela embalagem, mas, de fato, são paupérrimos na discussão das ideias. Nós, jornalistas, somos (ou deveríamos ser) o contraponto a essa tendência. Cabe-nos a missão de rasgar a embalagem e desnudar os candidatos. Só nós, estou certo, podemos minorar os efeitos perniciosos de um espetáculo audiovisual que certamente não contribui para o fortalecimento de uma democracia verdadeira e amadurecida.

Por isso uma cobertura de qualidade será, antes de mais nada, uma questão de foco. É preciso declarar guerra ao jornalismo declaratório e assumir, efetivamente, a agenda do cidadão. Não basta um painel dos candidatos, é preciso cobrir a fundo as questões que influenciam o dia a dia das pessoas. É importante fixar a atenção não nos marqueteiros e em suas estratégias de imagem, mas na consistência dos programas de governo. É necessário resgatar o inventário das promessas e cobrar coerência. O drama das cidades – segurança, educação, saúde, saneamento básico, iluminação, qualidade da pavimentação das ruas, transporte público de qualidade e responsabilidade fiscal, entre outros – não pode ficar refém de slogans populistas e de receitas irrealizáveis. Os candidatos deverão mostrar capacidade de gestão, experiência, ousadia e criatividade.

Não se pode permitir que as assessorias de comunicação dos políticos definam o que deve ou não ser coberto. O centro do debate tem de ser o cidadão, as políticas públicas, não mais o político, tampouco a própria imprensa. O jornalismo de registro, pobre e simplificador, repercute a Nação oficial, mas oculta a verdadeira dimensão do País real. Precisamos fugir do espetáculo e fazer a opção pela informação.

O jornalista Eugênio Bucci afirma, com razão, que “os jornalistas e os órgãos de imprensa não têm o direito de não ser livres, não têm o direito de não demarcar a sua independência a cada pergunta que fazem, a cada passo que dão, a cada palavra que escrevem. (...) Os jornalistas devem recusar qualquer vínculo, direto ou indireto, com instituições, causas ou interesses comerciais que possam acarretar – ou dar a impressão de que venha a acarretar – a captura do modo como veem, relatam e se relacionam com os fatos e as ideias que estão encarregados de cobrir”.

A independência é, de fato, a regra de ouro da nossa atividade. Para cumprir a nossa missão de levar informação de qualidade à sociedade precisamos fiscalizar o poder. A imprensa não tem jamais o papel de apoiar o poder. A relação entre mídia e governos, embora pautada por um clima respeitoso e civilizado, deve ser marcada por estrita independência.

Um país não se pode apresentar como democrático e livre se pedir à imprensa que não reverbere os problemas da sociedade. Não apenas os que aparecem na superfície, mas também aqueles que vão corroendo os pilares da cidadania. A intolerância é, de longe, um dos mais nefastos filhotes do sectarismo. A radicalização ideológica não tem a cara do brasileiro.

Procuram dividir o Brasil ao meio. Jogar pobres contra ricos, negros contra brancos, homos contra héteros. Querem substituir o Brasil da tolerância pelo país do ódio e da divisão. Tentam arrancar com o fórceps da luta de classes o espírito aberto dos brasileiros. Querem extirpar o DNA, a alma de um povo bom e multicolorido. Não querem o Brasil café com leite. A miscigenação, riqueza maior da nossa cultura, evapora nos rarefeitos laboratórios arianos do radicalismo ideológico.

Está surgindo, de forma acelerada, uma nova “democracia”, totalitária e ditatorial, que pretende espoliar milhões de cidadãos do direito fundamental de opinar, elemento essencial da democracia. Se a ditadura ideológica constrange a cidadania, não pode, por óbvio, acuar jornalistas e redações. O primeiro mandamento do jornalismo de qualidade é, como já disse, a independência. Não podemos sucumbir às pressões dos lobbies direitistas, esquerdistas, homossexuais ou raciais.

O Brasil eliminou a censura. E há somente um desvio pior que o controle governamental da informação: a autocensura. Para o jornalismo, em ano eleitoral e em qualquer tempo, não pode haver vetos, tabus e proibições. Informar é um dever ético.

O leitor espera uma imprensa combativa, disposta a exercer o seu intransferível dever de denúncia. Quer um quadro claro, talvez um bom infográfico, que lhe permita formar um perfil dos candidatos: seus antecedentes, sua história de vida, seu desempenho em cargos atuais e anteriores.

Os políticos, pródigos em soluções de palanque, não costumam perder o sono com o rotineiro descumprimento da palavra empenhada. Afinal, para muitos, infelizmente, a política é a arte do engodo. Além disso, contam com a amnésia coletiva. O jornalismo de qualidade deve assumir o papel de memória da cidadania. Precisamos falar dos planos e do futuro. Porém devemos também falar do passado, das coerências e das ambiguidades.

Deixemos de lado a pirotecnia do marketing. Nosso papel, único e intransferível, é ir mais fundo. A pergunta inteligente faz a diferença. E é o que o leitor espera de nós.

'Pobre não pode se dar ao luxo de não sair da cama'

Quando Andressa Duvique, de 21 anos, moradora de Guaianases, zona leste da capital paulista, confessou a uma conhecida da sua igreja que estava com depressão, ouviu da mulher que a doença era uma questão de fé. "Ela perguntou pra mim 'Ah, mas você está orando?', como se isso fosse um problema espiritual, mas isso é um problema emocional. Por isso falam que é frescura", conta a jovem evangélica.

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A depressão afeta 11,5 milhões de brasileiros (ou quase 6% da população), segundo dados de 2015 da Organização Mundial da Saúde (OMS). Andressa encontrou ajuda para lidar com a doença em sessões de terapia gratuitas, oferecidas por uma psicóloga. "Depois que descobri que não tinha passado no vestibular, por bem pouco, as coisas pioraram e eu vi que precisava de ajuda. No princípio, foi por causa de vestibular, mas depois fazendo terapia eu descobri que era uma questão emocional minha, que eu precisava cuidar", diz.

Existem poucos estudos nacionais relacionando depressão e classe social. De acordo com uma pesquisa do Ibope, realizada sob encomenda da Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos (Abrata), de dez anos atrás, as classes C e D são as mais vulneráveis à depressão – a pesquisa identificou sintomas depressivos em 25% das pessoas desse estrato social, contra 15% das classes A e B.

Essa conclusão é amparada por dados americanos que apontam que pessoas vivendo na pobreza têm o dobro de chances de estarem deprimidas. Esses dados ainda fazem sentido hoje? Teng Chei Tung, psiquiatra membro do Conselho Científico da Abrata, acredita que "as pessoas pobres sofrem mais com a depressão, pelo menos por causa da falta de acesso a tratamentos adequados".

Em 2017, o rapper baiano Diogo Moncorvo, o Baco Exu do Blues, tinha tudo para estar vivendo o melhor momento de sua vida. O músico acumulava milhões de visualizações em seus clipes no YouTube. Seu álbum, Esú, foi elogiado pela crítica e lançou os holofotes para o rap criado fora do eixo Rio-São Paulo.

Mas uma das faixas do álbum já mostrava que Baco estava sofrendo. "O álcool está me matando/Minha raiva está me matando/Sua expectativa em mim está me matando/Homem não chora/Foda-se, eu tô chorando!/ (...) /Isso é um pedido de socorro/Você está aplaudindo/Eu tô me matando".

"Eu acho que o negro, rico ou periférico, é condicionado à depressão devido à história de vida dele sabe? Porque ele sempre é deixado de lado, sofre preconceito. Isso tudo abala o seu bem-estar, sua autoconfiança, suas vontades. Se você deixar isso te afetar, você entra numa psicose maluca e não consegue sair dela", afirma o rapper Baco, que mora em Salvador e cujo público, na Bahia, é composto principalmente por jovens de periferia.

Em sua tese de mestrado, defendida na Universidade Estadual de Feira de Santana (BA), a pesquisadora americana Jenny Rose Smolen propõe uma revisão na relação entre raça e transtornos mentais no Brasil.

Analisando 14 pesquisas sobre transtornos mentais, ela chegou à conclusão de que não brancos têm mais tendência a sofrer com doenças como depressão. Segundo Smolen, esse problema não está ligado a fatores genéticos.

Uma pista para explicar a questão pode ser encontrada em outro estudo, da Universidade do Texas, que, analisando pessoas negras dos EUA, concluiu que sofrer discriminação diária impacta na saúde mental das pessoas.

"Quando você se vê diante de um perigo, o seu nível de cortisol aumenta. Só que o nosso corpo foi feito para que isso aconteça num período de cinco, dez minutos, que é o tempo de você entrar em estado de alerta e fugir do perigo. Em uma situação de preconceito, de violência social, a gente se vê nessa situação o tempo todo, então, o indivíduo passa 24 horas em estado de alerta, não sabendo se ele vai ser bem recebido, não sabendo se ele vai sofrer violência policial, violência urbana, e isso a médio ou longo prazo causa uma extrema fadiga no corpo e na mente."