quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Pensamento do Dia

 


Velha ordem em agonia

Aposta-se no surgimento dessa nova ordem de uma nova política que substitua a obsoleta democracia liberal que, manifestamente, está caindo aos pedaços em todo o mundo, porque deixa de existir no único lugar em que pode perdurar: a mente dos cidadãos.

A crise dessa velha ordem política está adotando múltiplas formas. A subversão das instituições democráticas por caudilhos narcisistas que se apossam das molas do poder a partir da repugnância das pessoas com a podridão institucional e a injustiça social: a manipulação midiática das esperanças frustradas por encantadores de serpentes; a renovação aparente e transitória da representação política através da cooptação dos projetos de mudanças; a consolidação de máfias no poder e de teocracias fundamentalistas, aproveitando as estratégias geopolíticas dos poderes mundiais; a pura e simples volta à brutalidade irrestrita do Estado em boa parte do mundo, da Rússia à China, da África neocolonial aos neofascismos do Leste Europeu e às marés ditatoriais na América Latina.

E, enfim, o entrincheiramento no cinismo político, disfarçado de possibilismo realista dos restos da política partidária como forma de representação. Uma lenta agonia daquilo que foi essa ordem política.

Manuel Castells. "Ruptura – A crise da democracia liberal"

A direita dispensa Bolsonaro

A direita não precisa mais de Bolsonaro. Ela lhe deve o mérito de tê-la tirado do armário, mas seus surtos transformaram-no num encosto. O patrono da cloroquina, que dizia ter “o meu Exército”, tornou-se um mau espírito encostado no velho conservadorismo nacional.

Afinal, uma direita que teve Roberto Campos, Eugênio Gudin e Castelo Branco terá perdido muito em qualidade, mas com Bolsonaro ganhou em quantidade, elegendo um presidente e grandes bancadas parlamentares. Quem tem Tarcísio de Freitas e Ronaldo Caiado governando São Paulo e Goiás produziu quadros qualificados para novos voos. Esse é o caminho da lógica, mas a direita brasileira padece de um oportunismo suicida.


Em 1959, na União Democrática Nacional, berço do conservadorismo, havia um candidato à Presidência. Era Juracy Magalhães, tenente de 1930, ex-governador da Bahia e primeiro presidente da Petrobras. O partido resolveu atrelar-se à candidatura de Jânio Quadros. Um demagogo de carreira fulgurante, sem qualquer vínculo partidário, capaz de levá-la ao poder.

Segundo a piada, Jânio era “a UDN de porre”. Deu no que deu.

Anos depois, já na ditadura, o conservadorismo emplacou o marechal Castelo Branco, um reformador austero. O oportunismo suicida levou a base conservadora do regime a aninhar-se na anarquia militar e na candidatura do ministro da Guerra, general Costa e Silva. Deu no que deu, o Ato Institucional nº 5 e a crise decorrente da isquemia cerebral que o incapacitou em agosto de 1969.

Essa direita que come com garfo e faca achou em Jair Bolsonaro sua oportunidade. A eleição de 2018 foi um arrastão conservador, e o ex-capitão acabou no Palácio do Planalto muito mais pelos erros do PT que pelas suas qualidades.

O último surto de Bolsonaro, contra uma tornozeleira, espantou até mesmo seus aliados. Espanto tardio diante de um personagem que duvidava das vacinas durante uma epidemia que matou 700 mil pessoas e acreditava nas pesquisas de uma empresa americana que tentava transmitir eletricidade sem o uso de fios. (Na cena em que um finório vendeu a Bolsonaro essa maravilhosa ideia, o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, tomou distância.)

O ex-capitão que se lembra do que fez em 1987, desenhando um gráfico pueril de explosão de uma adutora e sendo exonerado de culpa pelo Superior Tribunal Militar, adquiriu incompreensão do que são as instituições em geral e o Poder Judiciário em particular. Chamou um ministro do Supremo de “canalha”. Anunciou que não cumpriria decisões de tribunais. Flertou com o golpismo da trama contra a posse de Lula.

Será árdua a tarefa de livrar-se do encosto sem ofendê-lo. Os filhos de Bolsonaro gastam mais tempo condenando Tarcísio do que Lula e seu governo. A UDN conseguiu se livrar do encosto de Jânio, e os comandantes militares da ditadura livraram-se do encosto de Costa e Silva com sua saída da cena, remetendo seu principal conselheiro militar, o general Jayme Portela, para um comando de segunda antes de mandá-lo para a reserva.

O que será grave para nos tirar da apatia coletiva?

Começo pelo Brasil, porque é impossível não começar por ele. No dia 28 de outubro, quando 121 pessoas foram mortas em uma ação policial malsucedida comandada pelo governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, entre elas, quatro policiais trabalhando a seu serviço, na mais letal operação policial da história do país, pensei que o Brasil fosse parar. Imaginei que haveria uma grande greve geral, que a desumanização profunda das vítimas e de suas famílias, em especial de suas mães, faria com que até o mais sem coração dos homens corasse — e agisse.

Não aconteceu. Em vez disso, uma parte expressiva da população celebrou a operação, o saldo negativo e violento foi rapidamente diluído por uma cobertura midiática que priorizou a narrativa oficial, a ponto de um desavisado poder se perguntar se, no Brasil, há pena de morte sem necessidade de julgamento prévio ou mesmo identificação das vítimas — para além da cor da pele ou do local de nascimento. A execução e a gestão da tragédia narrada como guerra interna se mostraram eficaz na estratégia de comunicação política de Cláudio Castro, que, com isso, acenou para a agenda da extrema-direita interna e internacional, ganhou visibilidade e redirecionou a pauta brasileira.


Não foi a primeira vez que o limite ético no Brasil foi muito ultrapassado pelas mãos do Estado nos últimos 525 anos. A bem da verdade, essa é a regra mais do que a exceção. E, ainda assim, seguimos naturalizando a violência estatal como se fosse um custo aceitável da vida pública. “Naturalizando”, digo, sem excluir os posts revoltados nas redes sociais ou as vozes ativistas relevantes, as manifestações importantes. Estou falando da massa. Em algum momento a população irá se revoltar por ter seus cidadãos assassinados pelo Estado que deveria protegê-los? Ou, antes disso, em algum momento irá reconhecer essas pessoas como seus concidadãos, seus iguais?

Em Portugal, no dia 10 de novembro, um menino brasileiro de 9 anos teve as pontas de dois dedos decepadas por outros alunos de idade semelhante na escola em que estudava, no Distrito de Viseu. Criança torturando criança. Onde será que aprenderam tamanha desumanização?

Nas redes sociais, essa notícia compartilha espaço com gatos, memes, filhos de amigos, a Tempestade Cláudia, a COP30 e as ações e consequências das guerras recentes e crônicas na Palestina e no Sudão. Levanto o pescoço do celular, olho para o vagão de metrô ao meu redor e vejo todos os outros rostos em outros celulares. O real parece perder densidade, achatado no virtual, enquanto este oferece a promessa de um mundo mais suportável — ou pelo menos, mais editável. Até a revolta aqui é fácil.

Esse movimento permanente entre horror e distração produz um verdadeiro cansaço moral, um estado de hiperconsumo de tragédia em que já não conseguimos distinguir o que exige ação do que apenas exige um scroll. A desumanização também é cognitiva.

Então, será que já não somos humanos? Ou que essa “humanidade” sempre foi tão pouco? Ou será que estamos apenas treinados para tolerar o intolerável? Fico me perguntando o que mais é preciso acontecer para que a gente pare. Para que a história chegue a um ponto em que nós digamos: não, aqui é o limite. Não trabalharemos mais para o mundo em ruínas.

Nós temos tanta criatividade para criar grandes feitos. Por que não temos para parar a barbárie? Talvez porque, antes de criá-la, precisaríamos primeiro reconhecê-la, senti-la e arcar com as consequências. Quanto do intolerável ainda estamos dispostos a aceitar?