Não aconteceu. Em vez disso, uma parte expressiva da população celebrou a operação, o saldo negativo e violento foi rapidamente diluído por uma cobertura midiática que priorizou a narrativa oficial, a ponto de um desavisado poder se perguntar se, no Brasil, há pena de morte sem necessidade de julgamento prévio ou mesmo identificação das vítimas — para além da cor da pele ou do local de nascimento. A execução e a gestão da tragédia narrada como guerra interna se mostraram eficaz na estratégia de comunicação política de Cláudio Castro, que, com isso, acenou para a agenda da extrema-direita interna e internacional, ganhou visibilidade e redirecionou a pauta brasileira.
Não foi a primeira vez que o limite ético no Brasil foi muito ultrapassado pelas mãos do Estado nos últimos 525 anos. A bem da verdade, essa é a regra mais do que a exceção. E, ainda assim, seguimos naturalizando a violência estatal como se fosse um custo aceitável da vida pública. “Naturalizando”, digo, sem excluir os posts revoltados nas redes sociais ou as vozes ativistas relevantes, as manifestações importantes. Estou falando da massa. Em algum momento a população irá se revoltar por ter seus cidadãos assassinados pelo Estado que deveria protegê-los? Ou, antes disso, em algum momento irá reconhecer essas pessoas como seus concidadãos, seus iguais?
Em Portugal, no dia 10 de novembro, um menino brasileiro de 9 anos teve as pontas de dois dedos decepadas por outros alunos de idade semelhante na escola em que estudava, no Distrito de Viseu. Criança torturando criança. Onde será que aprenderam tamanha desumanização?
Nas redes sociais, essa notícia compartilha espaço com gatos, memes, filhos de amigos, a Tempestade Cláudia, a COP30 e as ações e consequências das guerras recentes e crônicas na Palestina e no Sudão. Levanto o pescoço do celular, olho para o vagão de metrô ao meu redor e vejo todos os outros rostos em outros celulares. O real parece perder densidade, achatado no virtual, enquanto este oferece a promessa de um mundo mais suportável — ou pelo menos, mais editável. Até a revolta aqui é fácil.
Esse movimento permanente entre horror e distração produz um verdadeiro cansaço moral, um estado de hiperconsumo de tragédia em que já não conseguimos distinguir o que exige ação do que apenas exige um scroll. A desumanização também é cognitiva.
Então, será que já não somos humanos? Ou que essa “humanidade” sempre foi tão pouco? Ou será que estamos apenas treinados para tolerar o intolerável? Fico me perguntando o que mais é preciso acontecer para que a gente pare. Para que a história chegue a um ponto em que nós digamos: não, aqui é o limite. Não trabalharemos mais para o mundo em ruínas.
Nós temos tanta criatividade para criar grandes feitos. Por que não temos para parar a barbárie? Talvez porque, antes de criá-la, precisaríamos primeiro reconhecê-la, senti-la e arcar com as consequências. Quanto do intolerável ainda estamos dispostos a aceitar?

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