segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Brasil com a cepa da morte

 


Impeachment de Bolsonaro: a vingança e a vingança de Maia

Depois de levar uma punhalada de ACM Neto, o seu Brutus, e demais cúmplices do DEM, Rodrigo Maia, ainda presidente da Câmara, cogita aceitar um dos pedidos de impeachment de Jair Bolsonaro — que aliciou com mais de 3 bilhões de reais em emendas e cargos no governo deputados de quase todos os partidos, inclusive o DEM, que deve abocanhar o Ministério da Educação, para que deixassem o barco de Baleia Rossi (sem trocadilhos), do MDB, e subissem no de Arthur Lira, do Progressistas, candidato do Planalto e do Centrão à presidência da Casa. Como relatado pela imprensa, em reunião ontem à noite, Maia afirmou ter em mãos um parecer jurídico favorável à abertura do processo de impeachment.

A política brasileira é aborrecidamente vergonhosa. Assim como vem ocorrendo desde sempre, o que move esse pessoal é a vingança, visto que a única convicção que exibem é a de que o dinheiro do pagador de impostos lhes pertence. Até a semana passada, Maia dizia que o impeachment do sociopata causaria instabilidade indesejável a um país que precisa enfrentar uma pandemia mortífera. Fingia ignorar que a saída de Bolsonaro da presidência da República é parte de um eficaz enfrentamento nacional da crise sanitária causada pela Covid-19. Mas mudou de ideia ao ter o seu tapetinho puxado pelo Planato et caterva. Agora tem até parecer favorável, veja só. Maia é mais do mesmo.

O presidente da Câmara decide monocraticamente pela abertura do processo de impeachment do presidente da República, de acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal datado de 2015. Trata-se de decisão irrecorrível, sem possibilidade de recurso em plenário. A menos que o STF, uma vez provocado, mude de opinião (o que sempre é possível onde impera a jurisprudência de ocasião), o rito do impeachment seguiria numa comissão e o resto nem Deus sabe.



Maia poderia ter decidido pela abertura de um processo de impeachment no início do ano passado, quando ainda estava forte e Bolsonaro apenas esboçava a compra do Centrão. Teria poupado o país de milhares de mortos pelo vírus. Não o fez. A sua conveniência política prevaleceu. Contentou-se com notas de repúdio às barbaridades cometidas pelo presidente da República. No apagar das luzes como mandachuva na Câmara, quer vingar-se e sair como herói. Assim como Eduardo Cunha fez com Dilma Rousseff. Assim como vem ocorrendo desde sempre, como já dito.

Se Maia abrir mesmo o processo de impeachment, o Centrão vai regozijar-se: poderá cobrar fatura ainda mais alta de Bolsonaro, para mantê-lo no Planalto. Se a popularidade do presidente da República despencar, a rejeição a ele aumentar e manifestações populares de porte ocorrerem, o Centrão mudará de lado sem vergonha (e do que ele tem vergonha?), depois de lambuzar-se com o que lhe foi oferecido por Bolsonaro. O jogo do Centrão é de ganha-ganha; o do Brasil é sempre de perde-ganha-perde. O impeachment de Bolsonaro em 2020 teria saído mais barato em vidas e dinheiro. Por causa de Maia, sairá mais caro em todos os aspectos, se vier a ocorrer. É o que temos no cardápio: vingança, não convicções.

Em 2016, escrevi um artigo sobre o papel da vingança na política brasileira. Escrevi-o depois que Eduardo Cunha se viu cassado e caiu na rede da Lava Jato. A história no Brasil não se repete como farsa porque não temos originalidade nenhuma, as variações de moldura enfatizando o tema único da pintura. Repito-me também, reproduzindo o artigo de quase cinco anos atrás:

“Devemos ao ex-presidente da Câmara, que agora terá de se haver com o juiz Sergio Moro, o impeachment de Dilma Rousseff. Não há como negar: o seu ato de vingança foi essencial para apeá-la do poder. Se não tivesse aceitado o pedido do trio Hélio Bicudo, Miguel Reale Jr. e Janaína Paschoal, é provável que Dilma ainda continuasse a presidir o Brasil, apesar de todos os seus crimes e com todas as consequências funestas que isso significaria. Aos petistas restou vingar-se de Eduardo Cunha votando pela cassação dele. Essa história ainda não acabou. O peemedebista disse que contará em livro toda a história do impeachment. Aguardamos ansiosamente, visto que deve sobrar também para os seus colegas de partido.

Livramo-nos de duas pragas graças à vingança, sentimento que ensinamos às crianças ser feio, mas que na política brasileira tem servido como antibiótico. Senão, vejamos:

Em 1992, Fernando Collor caiu porque o seu irmão, Pedro, deu uma entrevista bombástica à Veja, para contar as relações promíscuas entre o então presidente e o seu tesoureiro, Paulo César Farias. Pedro estava fulo com o fato de Fernando ter cantado a sua mulher, Thereza.

Em 2005, a mesma Veja tentou circunscrever o escândalo de corrupção nos Correios, revelado pela revista, ao PTB de Roberto Jefferson. Ao perceber que o PT estava armando para cima dele por meio da Veja, o petebista procurou a revista para denunciar o mensalão e foi repelido (presenciei o fato). Jefferson, então, soltou o verbo na Folha de S.Paulo, para contar que o esquema era muito maior e comandado pelos petistas.

Roberto Jefferson foi condenado no mensalão, assim como Eduardo Cunha será condenado no petrolão. Ambos levaram con- sigo os seus algozes.

A morte dos vingativos é final comum no gênero literário-teatral conhecido como “peças de vingança”, do qual William Shakespeare é o maior mestre. As ‘peças de vingança’ nacionais, contudo, não estão à altura de um bom dramaturgo. Os seus personagens são demasiado estúpidos.

Fernando Collor foi estúpido ao achar que o irmão seria corneado mansamente. O PT foi estúpido ao acreditar que poderia jogar toda a culpa da corrupção governamental sobre Roberto Jefferson, sem que ele reagisse. O PT foi igualmente estúpido ao imaginar que poderia anular Eduardo Cunha na presidência da Câmara, um dos cargos mais poderosos da República.

Havia algo de podre no estado da Dinamarca, para citar a frase de Marcellus em Hamlet, a ‘peça de vingança’ mais popular de Shakespeare. Há algo de podre no Estado do Brasil. Não precisamos, contudo, de fantasmas magníficos para os nossos personagens se vingarem uns dos outros.”


Temos de contar com a vingança, apenas, para termos a impressão fugidia de que algo mudou em Brasília. Aborrecidamente vergonhoso.

A política que mata

Há muito tempo que gostaria de escrever sobre outra coisa: a dimensão do realismo fantástico num país em que o presidente acha que vacina nos transforma em jacaré, oferece hidroxicloroquina para a ema do palácio e manda os jornalistas enfiarem uma lata de leite condensado no rabo.

Mas a urgência do drama proíbe digressão. Não absorvemos bem o que aconteceu em Manaus. Não quero dizer apenas que era necessário avaliar os estoques de oxigênio, planejar, em termos estratégicos, a produção e o consumo desse elemento vital.

Pazuello foi a Manaus defender a cloroquina e não percebeu a gravidade da falta de oxigênio. Quando percebeu a gravidade da falta de oxigênio, tarde demais, não percebeu outro fato decisivo: a presença de uma nova variante do coronavírus.

Desde quando os japoneses sequenciaram o mapa dessa variante em turistas que chegaram da Amazônia, era preciso acionar o alarme.

A variante brasileira tem características, ao que parece, semelhantes às mutações encontradas na Inglaterra e na África do Sul.

Todos se adaptaram de tal forma que podem se propagar com mais facilidade. Boris Johnson imediatamente decretou um lockdown para conter a nova onda que estava a caminho.

No Brasil, confirmada a existência da variante, não houve um debate nacional sobre o que fazer diante desse novo perigo. Na verdade, a variante brasileira é mais destacada nos jornais estrangeiros do que nos nossos.

Parece que, no Brasil de Bolsonaro, adotamos aquele velho lema: desgraça pouca é bobagem. Pazuello decidiu transferir os doentes de Manaus sem cuidados especiais de segurança. O aeroporto de Manaus durante algum tempo foi muito usado pelas UTIs aéreas que saíam do estado com os doentes mais ricos.



Somente Roraima e Pará, dois estados limítrofes, tentaram erguer uma tímida barreira sanitária. A variante já apareceu em São Paulo e no Rio Grande do Sul, sem contar seus voos mais longos: Estados Unidos e Alemanha.

Os voos do Brasil para Portugal foram suspensos. Biden manteve as restrições à entrada de brasileiros.

Muitos já notaram que Pazuello errou ao receitar hidroxicloroquina. Está sendo questionado por isso. Errou ao ignorar o avanço da crise de oxigênio, algo que não acontece de um momento para outro.

Mas não estamos cobrando do governo um projeto para conter a variante amazônica no norte do país. Na verdade, nem se toca no assunto, como se o vírus mutante fosse brasileiro e já tivesse o direito de circular livremente pelo nosso território.

Muito menos nos espantamos com o fato de os japoneses terem sequenciado e anunciado a variante. Na Fundação Oswaldo Cruz em Manaus, já era conhecida. Mas a verdade é que rastreamos pouco, sequenciamos pouco, por falta de recursos.

O negacionismo da política de Bolsonaro não se limita a tiradas verbais. Ele tem uma tosca base teórica. Prefere gastar com remédios a gastar com vacina e não se preocupa com testes. Milhares deles foram abandonados num galpão de São Paulo. O que adianta conhecer e monitorar? O que adianta sequenciar mutações de vírus?

Pelo que li, o governo já sabe que uma nova onda virá, dobrando o número de mortos. Diz que vai correr atrás da vacina. Para milhares de vidas, será tarde demais.

Quando Bolsonaro pagará por isso? Quem quiser pesquisar desde o início as frases, decisões, atitudes, omissões vai recolher um acervo, mais amplo ainda do que o enviado ao Tribunal Internacional.

Quando vejo Pazuello respondendo ao TCU pela compra da cloroquina, à PF pela omissão em Manaus, a sensação que tenho é de que tudo é um único e indivisivel processo: a história da negação e as mortes que ela produz diariamente no Brasil.

E ele é apenas o homem que obedece.

Fumaça contra incompetência


Ele busca sempre uma polêmica até para disfarçar as suas incompetências
Flávio Dino, governado do Maranhão

A ideologia bolsonarista

Dando prosseguimento ao artigo anterior (18/1), centrado no conjunto de ideias que estrutura o bolsonarismo, ressaltemos alguns outros aspectos para que tenhamos uma visão mais abrangente desse fenômeno. Por mais que alguns insistam, talvez com certa dose de razão, que essas “ideias” não sejam propriamente ideias dado o seu caráter tosco, são elas que orientam as ações de seus militantes, que se comprazem histericamente em gritar: “Mito!”.

Note-se, preliminarmente, como muito bem observou um leitor, que os aspectos por mim assinalados da ideologia bolsonarista não se restringem à extrema direita, mas são igualmente válidos para a extrema esquerda, configurando um tipo de autoritarismo ou totalitarismo cujas consequências são as mesmas na dominação da sociedade e no controle ou aniquilamento das liberdades. Eis por que autores como Hannah Arendt incluem na análise do totalitarismo tanto o nazismo quanto o comunismo. Se me detive mais no caso da extrema direita, é por ser ela a experiência concreta que o País está vivendo.

Subversão da democracia – Um aspecto importante desse fenômeno reside na subversão da democracia por meios democráticos, as eleições sendo usadas como instrumentos para corroer suas instituições e seus valores. Hitler conquista o poder por meios democráticos visando a destruir as próprias instituições republicanas. Chávez conquista “democraticamente” o poder, para eliminar progressivamente todas as instituições democráticas da Venezuela, hoje destruída e exaurida. O presidente Bolsonaro, por sua vez, está sempre testando os limites das instituições democráticas, erodindo seus valores e princípios, embora se diga o seu defensor. Quando convoca as Forças Armadas para defenderem a democracia, faz jogo duplo: o de defensor das liberdades e o de seu verdugo.



Militares – A convocação dos militares é elemento constitutivo de um discurso que busca criar condições para que eles, junto com as forças policiais, passem a responder a ele, e não à Constituição, com o intuito de estabelecer uma relação direta com eles, e não mais unicamente pela hierarquia militar. Há o menosprezo da representação. O presidente gasta boa parte do seu tempo em comemorações militares dos mais diferentes níveis, que não seriam, em condições normais, afeitas à posição de um presidente. Os comandantes militares seriam as pessoas que naturalmente deveriam presidir tais cerimônias. Uma vez que sempre procura comparecer a tais eventos, tem como objetivo chamar a si as pessoas homenageadas, estabelecendo uma relação direta com elas, independentemente de seus superiores hierárquicos.

Trata-se de um meio de também manter os comandantes sob controle, ao mostrar que pode deles prescindir. É um empreendimento difícil nas Forças Armadas, por serem elas hierárquicas e ordenadas, apesar de um suposto chamamento à tropa embutido em tal comportamento, embora o caso não seja o mesmo em algumas Polícias Militares, cuja cadeia de comando é fraca, além de pouco estruturada em torno de valores. Aí as chances do bolsonarismo germinar são maiores, o que explicaria a atual tentativa de uma reorganização das forças policiais, tirando o poder dos governadores e estabelecendo uma forma de coordenação nacional, à revelia das Forças Armadas.

Milícias – Se o bolsonarismo conseguiu com êxito criar uma milícia digital, não se pode dizer o mesmo da criação de um partido, cuja tarefa seria a de estruturar seus adeptos em grupos organizados, que responderiam a vozes de comando paramilitares. Nota-se uma desorientação do bolsonarismo nesse sentido, visto que, no afã da família Bolsonaro de tudo controlar, dividiu e fragmentou um partido eleitoralmente vitorioso, o PSL. Saindo vencedor das últimas eleições, foi vítima da tentativa bolsonarista de tudo dominar, nem aceitando o compartilhamento do poder. Sua orientação de extrema direita, sem uma estratégia correspondente, conseguiu minar a si mesma. O que teria sido um instrumento seu de poder, terminou sendo seu óbice, com as desorientações partidárias daí derivadas. Até hoje não sabe o presidente por qual partido se candidatar em 2022, seu maior, se não o único, objetivo.

Idiotas – O vídeo de ampla repercussão em que o presidente da República, numa tirada sua característica, totalmente imprópria para uma figura presidencial, manda a imprensa pôr uma lata de leite condensado “naquele lugar”, de eliminação fisiológica do corpo, com odor fétido, exibe em toda a sua “pureza” o desprezo pela liberdade de imprensa, sua profunda aversão à crítica e ao outro em geral. Mais surpreendente ainda, contudo, é que, ladeado pelo ministro das Relações Exteriores, a sua plateia, em delírio, grite: “Mito! Mito!, Mito!”. Enseja pensar por que um discurso tão tosco e grosseiro ainda encontra quem o acolha, pois quem assim o faz age como idiota, como se habitasse outro mundo. Talvez isso explique o comparecimento do chanceler, pois é como se ele estivesse numa terra estrangeira.

Pensamento do Dia

 


Bolsonaro e o escafandrista do Leblon

Conta a lenda que um escafandrista, nos anos 70, vestido com seu pesado equipamento de mergulho, entrou no Antonio’s, bar mítico do Leblon, na esquina das ruas Bartolomeu Mitre e Ataulfo de Paiva, sentou a uma mesa, tirou o capacete e pediu uma cerveja.

Depois de certo tempo, irritado com a indiferença dos frequentadores do lugar, o jornalista João Saldanha subiu numa cadeira, bateu palmas para chamar atenção e disse em voz alta para ser escutado por todo mundo:

"Pessoal, tem um homem aqui, um escafandrista, com capacete e tudo, tomando cerveja, e isso não é normal, não pode ser normal."

Ninguém deu bola para a fala irritada de Saldanha. Nem mesmo o pacato escafandrista que, depois de tomar três cervejas e servir-se de poucas iguarias, pediu a conta, pagou, repôs o capacete de metal que escondia todo o seu rosto e foi embora se arrastando.



Ah, os cariocas e seu ar blasé! Em janeiro de 1964, o Rio foi sacudido com a notícia de que Brigitte Bardot, uma das atrizes mais famosas do cinema, chegara sem aviso à cidade. Depois do assédio inicial, ela refugiou-se em Búzios com o namorado.

Ficou por lá sem ser incomodada durante quase um ano. Vez por outra surgia o boato: Brigitte voltou ao Rio. Os mais cariocas entre os cariocas já não se abalavam. Alguns se limitavam a comentar com desdém: “Quem, aquela chata? De novo?”

Ninguém parece mais estranhar quando o presidente Jair Bolsonaro diz palavrões em público. Nem mesmo quando os palavrões são usados como ariete para atingir a honra de pessoas ou de um conjunto delas. A ele tudo é permitido.

Os presidentes Lula e Dilma diziam palavrões, mas jamais em público. O país ficou chocado com a quantidade de palavrões que Bolsonaro disparou em abril último durante reunião ministerial que provocou a saída do governo do ex-juiz Sérgio Moro.

Depois disso, não mais. Assim, ele sentiu-se autorizado para na semana passada, em reação ao noticiário sobre gastos do governo com leite condensado, mandar os jornalistas “à puta que os pariu”. Na quarta-feira, numa churrascaria de Brasília, ele esbravejou:

"Vai para puta que o pariu. Imprensa de merda essa daí. É para enfiar no rabo de vocês aí, vocês não, vocês da imprensa essa lata de leite condensado."

No dia seguinte, em Propriá, cidade na divisa de Sergipe com Alagoas, Bolsonaro voltou ao tema, sendo apenas mais sucinto:

"É para enfiar no rabo de jornalista."

Por pudor, por estar acostumada a ser agredida ou sabe-se lá por que, de uma maneira geral a imprensa preferiu não dar destaque a mais um despautério do presidente da República. Praticamente ignorou-o. As redes sociais se encarregaram da tarefa.

Nem o ex-presidente Donald Trump, o precursor universal dos ataques desmedidos à imprensa, ousou valer-se de linguagem tão agressiva e desrespeitosa com profissionais que eram obrigados a cobrir suas atividades como chefe de Estado.

Só quem ganha com a normalização do comportamento estúpido de Bolsonaro é ele. A malta que o tem como ídolo, também ganha e faz questão de imitá-lo. Cresce no país o número de casos de jornalistas hostilizados no desempenho de suas funções.

Atenção, Justiça! O que falta para que se dê um basta definitivo a isso? Que um jornalista seja morto?

Bolsonaro é o grande responsável pela disseminação da epidemia no Brasil

A explicação é que não há como explicar.

A formação em ciência exige humildade para analisar opiniões e ideias opostas às nossas, o contraditório é parte intrínseca do pensamento científico. Não fosse assim, até hoje acharíamos que a Terra é plana e que o Sol foi criado para girar em torno dela.

Em janeiro do ano passado, quando o novo coronavírus atormentava apenas os chineses, tive a impressão de que os casos de maior gravidade ficariam restritos aos mais velhos. Para boa parte dos especialistas a doença teria mortalidade semelhante à das gripes.

Hoje, eu me penitencio por ter feito essa avaliação apressada. Lembrar que ela foi influenciada por uma palestra do doutor Anthony Fauci, uma das maiores autoridades em moléstias infecciosas dos Estados Unidos, não me consola.

Foi em fevereiro, quando a doença semeou o terror nas UTIs da Itália, que o mundo entendeu a gravidade da ameaça. Imediatamente, os países adotaram medidas rígidas para reduzir a movimentação nas cidades e insistiram na necessidade do uso de máscaras protetoras.

Marilena Nardi (Itália)


No Brasil, o presidente da República contraindicou com veemência essas recomendações. O argumento foi o de que elas destruiriam a economia e matariam de fome um número maior de brasileiros, do que a doença seria capaz de fazê-lo.

Achei que ele estava errado. Primeiro, porque não havia dados para estimar o impacto de uma improvável epidemia de fome na mortalidade da população; depois, porque a história das epidemias nos mostra serem elas as responsáveis pelas repercussões negativas na economia, não o isolamento social. Enquanto circula um agente infeccioso potencialmente letal, é impossível convencer as pessoas a gastar dinheiro para estimular o crescimento econômico.

Considerei, no entanto, a possibilidade de que o empenho presidencial na defesa de estratégias para manter os empregos pudesse ter alguma lógica, hipótese abandonada quando o vi pela primeira vez sem máscara promovendo aglomerações, para delírio de apoiadores fanáticos. Se estivesse interessado em proteger a economia, de fato, qual o sentido de incentivar a adoção de comportamentos que disseminam o vírus? Por que razão não diria aos brasileiros: saiam de casa para trabalhar, mas usem máscara e evitem aglomerações?

Para enfrentar o medo de contrair o vírus repetiu à exaustão que não deveríamos acreditar nas “conversinhas” dos jornalistas, que a doença só matava os “bundões”, que deixássemos de ser “maricas” e que contávamos com a cloroquina, remédio milagroso quando administrado nas fases iniciais da doença. Não faltaram médicos que não têm o hábito de estudar ou formação científica suficiente para avaliar a qualidade dos trabalhos publicados, para lhe dar razão e preconizar a distribuição do inacreditável kit Covid.

A queda de dois ministros da Saúde que se negaram a adotar a cloroquina como política de combate à epidemia não bastou para evitar que a farmácia do Exército fosse obrigada a investir recursos preciosos na importação da droga, a preços inflacionados. A cegueira foi de tal ordem que deixamos o ex-presidente dos Estados Unidos desovar aqui os milhões de comprimidos encalhados que os médicos americanos se recusaram a prescrever, para não correr o risco de processos por más práticas.

Quando o mundo entendeu que estávamos próximos da obtenção das primeiras vacinas e os países iniciaram a corrida para comprá-las, o Brasil não estava entre eles.

Pelo contrário, o presidente se empenhou em afirmar que não seria vacinado, que ninguém era obrigado a fazê-lo contra a vontade e que os efeitos colaterais poderiam ser “terríveis”. Contra a visão dos economistas —inclusive a de seu ministro— de que a vacinação é a única forma de reativar a economia, insistiu em boicotar a imunização em massa com argumentos de fazer inveja aos grupos antivacina mais ignorantes.

Esse boicote sistemático justifica mais de 220 mil óbitos? Ele é o único culpado? É claro que não, a culpa é de muitos, especialmente dos egoístas estúpidos que se aglomeram sem máscara nos bares e nas festas. No entanto, pela natureza do cargo que ocupa, os absurdos que fala e a indignidade dos exemplos que dá, o presidente da República tem sido o grande responsável pela disseminação da epidemia. Não é por acaso que somos o segundo país com o maior número de mortes.

O bê-á-bá do chavismo

Os fanáticos camisas pardas bolsonaristas costumam dizer que “Bolsonaro sempre tem razão”, não por acaso uma das divisas do fascismo italiano. Mas a inspiração do movimento extremista liderado pelo presidente Jair Bolsonaro está bem mais próxima no tempo e no espaço: é o chavismo.

Os bolsonaristas podem não querer se lembrar, mas Bolsonaro já fez rasgados elogios ao ditador venezuelano Hugo Chávez, a quem hoje trata como demônio. Em entrevista ao Estado, em 1999, Bolsonaro disse que Chávez era uma “esperança para a América Latina” e que “gostaria muito que sua filosofia chegasse ao Brasil”.

Do defunto caudilho venezuelano, de fato, Bolsonaro pegou vários cacoetes: o profundo ódio pela imprensa livre, o desprezo pela democracia representativa, a militarização do governo, o apreço pelas teorias da conspiração e a mendacidade sistemática como política de Estado.




A afinidade é tanta que, enquanto Bolsonaro receita a inócua cloroquina como elixir mágico contra a covid-19, o atual tirano chavista, Nicolás Maduro, anunciou a fabricação de um certo “carvativir”, suposto antiviral que, em suas palavras, são “gotinhas milagrosas” que “neutralizam 100% o coronavírus”.

Nada disso, é claro, faz do Brasil sob Bolsonaro automaticamente um congênere da Venezuela chavista, mas há sinais evidentes de que o presidente está estudando com afinco a cartilha de Chávez – em especial os capítulos referentes ao modo como o chavismo tomou o Estado de assalto e subjugou o Legislativo e o Judiciário.

“Vamos, se Deus quiser, participar, influir na presidência da Câmara”, informou Bolsonaro, sem meias-palavras, na quarta-feira, em referência à sucessão no comando da Câmara dos Deputados. Para o presidente, isso é necessário “para que possamos ter um relacionamento pacífico e produtivo para o nosso Brasil”.

Por “relacionamento pacífico e produtivo” o presidente certamente entende como subserviente e caudatário. Praticamente desde a posse de Bolsonaro, o Congresso tem sido uma barreira razoavelmente sólida para as pretensões autoritárias do presidente, graças ao perfil democrático e reformista de sua atual liderança.

Mas a eleição para a presidência da Câmara, na segunda-feira, pode alterar drasticamente esse quadro em caso de vitória do deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), explicitamente apoiado por Bolsonaro. Fina flor do Centrão, com robusta ficha corrida e igualmente expressiva desenvoltura para angariar apoio em troca de favores, verbas e cargos, o parlamentar, se eleito, será a cabeça de ponte de Bolsonaro para conquistar o Congresso.

Se a cidadela da Câmara cair, o bolsonarismo terá removido um obstáculo crucial para avançar na tomada institucional do Estado, tal como fez o chavismo. Outros já ficaram pelo caminho: a Procuradoria-Geral da República é comandada por um fiel servidor de Bolsonaro e o bolsonarismo se espraia entre policiais e militares. É só o começo.

Profundo conhecedor do baixo estrato do Congresso, pois fez parte dele por três décadas, Bolsonaro sabe como ninguém o que faz brilhar os olhos de parlamentares que mercadejam o voto. Graças a essa habilidade e ao poder da caneta que preenche cargos e libera verbas, Bolsonaro conseguiu cooptar deputados de partidos que não estão em sua base, como DEM e PSDB.

Consta que alguns correligionários do próprio presidente do DEM, ACM Neto, decidiram votar no bolsonarista Arthur Lira porque este lhes prometeu manter apadrinhados em cargos na máquina federal. O fato de uma vitória de Arthur Lira representar enorme risco para a independência da Câmara, com consequências funestas para o País, não lhes pareceu relevante.

Cada um tem o lugar na História que merece: Bolsonaro já assegurou o dele, como o mais nocivo presidente do Brasil; já os parlamentares que elegerão o presidente da Câmara ainda podem escolher como querem ser lembrados, se como políticos responsáveis que honram o mandato que receberam ou como aqueles que, em troca de uma boquinha, entregaram o Congresso de bandeja ao Chávez de Eldorado.

Covid-19

Na cadência elegante de um alexandrino
Ou em versos bisonhos, de linhagens toscas,
Feridos sem perdão por um tempo assassino,
Morrendo vamos, dia a dia, como moscas.

Raul Drewnick

Tempos de barbárie

É inquestionável: a modernização melhorou a base material da civilização, mas contribuiu para melhorar as dimensões morais e éticas da Humanidade? A resposta é não. E a argumentação leva em conta o que o professor Samuel Huntington, de Harvard, chama de “paradigma do caos”. Estados fracassados, anarquia, repulsa aos princípios democráticos, inclusive nas maiores democracias mundiais, quebra da lei e da ordem, ondas de criminalidade, cartéis de drogas, deterioração dos valores da família e assim por diante.

O caos se instala sob sistemas democráticos em momentos de tensão e risco, e ante a frustração da regra fundamental para a convivialidade planetária: uma civilização que se esforce para buscar e consolidar valores comuns a todas as civilizações. Tarefa distante pela diferença entre Nações, Ocidente e Oriente, muçulmanos, cristãos, ateus, enfim, todos os povos deste planeta. Não existiria um aspecto que pudesse transcender vontades individuais e agregar interesses em todas as culturas?

Difícil. Mas sem isso estaremos cada vez mais corroendo a vida humana, projeção que pode até ser entendida como catastrofista. Mas não estamos vendo a catástrofe, quando constatamos mais de 2 milhões de mortos pela Covid-19?


O fato é que ressurge a barbárie, paisagem mais agressiva que a dos filmes do velho oeste americano. A paisagem de hoje é de barbárie. As democracias – governo do povo pelo povo e para o povo – estão sendo corroídas por dentro, usando-se dribles legais em nome da Constituição, falsidades, mentiras repetidas à exaustão.

O que ocorreu nos EUA, com Donald Trump, ocorre em muitas Nações e também aqui, como se viu nesta preciosa pérola sobre democracia, do dicionário do nosso governante-mor: “Quem decide se o povo vai viver democracia são as Forças Armadas”. Um libelo contra a democracia na índole autoritária do Chefe de Estado.

Imagine-se então o modo de vida do amanhã do planeta quando a pandemia escancarar o rombo de cerca de US$ 12 trilhões na produção econômica global, tirando o Brasil do ranking das 10 maiores economias mundiais. A pobreza aumentará, como em nosso país, que tem 50 milhões abaixo da linha da pobreza, os EUA, com 25 milhões e a Europa com 70 milhões.

A tendência é de tentar salvar as economias, ampliar o cobertor social, salvaguardar seus Tesouros, apesar de os Estados Unidos de Joe Biden anunciarem políticas abertas aos imigrantes, respeito à pluralidade, defesa do meio ambiente. Grupos do nacional-populismo deverão fazer pressões em sentido contrário.

É possível que a China se transforme na maior potência econômica nos próximos anos, o que conduz a outra hipótese: as democracias terão de mudar posturas, flexibilizar políticas, banir preconceitos sob o pragmatismo dos mercados. E a evitar as ameaças que, segundo o Relógio do Juízo Final (criado em 1947 por cientistas atômicos), pairam sobre nossas cabeças: avanços russos, americanos e chineses em mísseis hipersônicos, o desmantelamento do acordo nuclear iraniano e o risco de guerra com os EUA, novos armamentos da Coreia do Norte e a Guerra Fria 2.0 entre Pequim e Washington.

Que os ponteiros do Relógio nos afastem do Juízo Final.
Gaudêncio Torquato