segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Serão quatro disso?

A briga entre Carlos Bolsonaro e Gustavo Bebianno foi uma disputa entre a facção do bolsonarismo que depende do clima de campanha permanente e a facção que quer começar a funcionar como um governo normal, no bom e no mau sentido.

O bolsonarismo das redes, a turma do Olavo, os filhos do Jair dependem desse clima de mobilização constante. Se o governo começar de fato, o que vai sobrar para eles? Nenhum olavista sabe nada de útil, nem do ponto de vista técnico, nem do ponto de vista político, que ajude alguém a governar.

O olavismo só engana otário, e na turma que Bolsonaro precisa convencer agora —os parlamentares, o mercado— não tem otário.

Por outro lado, a turma que apoiou Bebianno foi a que defende uma certa institucionalização do bolsonarismo. Estão nesse grupo Rodrigo Maia, recém-eleito presidente da Câmara, o vice-presidente Hamilton Mourão, a deputada Janaina Paschoal e toda a turma que está preocupada com a aprovação da reforma da Previdência.

Os olavistas, ao que parece, venceram a briga. A previsão é que Bebianno será demitido hoje. Perderam Maia, Guedes, Paschoal e Mourão.


O problema é o seguinte: Bebianno estava articulando com o Congresso pelas reformas. O governo já havia desistido sem maiores resistências do discurso "nova política". Muita gente estava de olho na distribuição das direções do Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) nos estados. O segundo escalão dos ministérios estava sendo distribuído aos aliados como sempre foi, para que os aliados fizessem o que sempre fizeram.

Se as denúncias contra Bebianno forem referentes a essas negociações, ou se os aliados acharem que toda negociação será exposta pelo Twitter, a articulação política do governo Bolsonaro morre.

É como escrevi aqui depois da eleição para as presidências da Câmara e do Senado: com rede social você derruba o Renan, mas não aprova reforma.

Nesse quadro, como interpretar a decisão de Bolsonaro em favor do filho?

Em primeiro lugar, é possível que Carlos tenha denúncias graves contra Bebianno, graves demais para serem abafadas por muito tempo. Nesse caso, é preciso que o presidente da República as divulgue, mesmo que isso traga mais dificuldades para seu governo.

Em segundo lugar, como notou o jornalista Alon Feuerwerker, não é fácil para um governo se desvencilhar de sua facção mais leal, a que cai se ele cair. Bolsonaro não é indispensável para Guedes, para Moro, para os generais. Mas é indispensável para os doidões do Twitter. Os olavistas teriam o mesmo espaço em qualquer outro governo? Não.

Se for esse o caso, entretanto, Bolsonaro precisa se perguntar se vale a pena estar cercado de gente leal em um governo fraco. Porque se ele desistir de Guedes, Moro e, especialmente, dos generais, não chega o Carnaval.

Restam as ameaças de Bebianno. O quase-ex-ministro vem dando todos os sinais de que cairá atirando. Se suas revelações forem referentes às finanças da chapa Bolsonaro/Mourão, pode ser instaurado um processo de cassação de chapa.

Há, enfim, um cenário de inferno para Bolsonaro em que Carlos derruba a reforma e Bebianno derruba o governo.

É difícil imaginar quatro anos de um governo como o da semana passada. Ou não será como na semana passada, ou não durará quatro anos.
Celso Rocha de Barros

Padrão Dilma de governo

Quem diria que, no começo do mandato, um governo liberal ia sancionar subsídios e discutir retomada de proteções setoriais. Não é só a tarifa do leite, é a proteção de bens de capital, todas as medidas criativas para lidar com o problema dos estados, como usar receita futura para pagar despesa corrente. Isso é padrão governo Dilma Rousseff, não esperava ouvir isso nunca mais, mas ouvimos de novo esta semana, e isso preocupa
Marcos Lisboa 

O vento no laranjal

Saio do Brasil por uma semana para visitar minha filha em Portugal. Mas saio apreensivo. Coração na mão. Houve uma série de tragédias neste início de ano. Há muitas coisas pendentes desses desastres. Como se não bastasse essa sensação de casa velha caindo que o Brasil nos transmite hoje, há ainda uma crise política, provocada pelo próprio governo.

Uma pena, porque os temas básicos precisam ir adiante: reforma da Previdência, combate ao crime organizado. Os liberais levaram um chega pra lá no caso do leite. O governo manteve restrições ao leite da Europa e Nova Zelândia. Falando de subsídios, a ministra da Agricultura afirmou: o desmame não pode ser radical. No mundo biológico, o desmame tem um momento de acontecer. Se deixar apenas pelo gosto de algumas crianças, a coisa vai longe.

O plano de Sergio Moro é voltado para mudar as leis, adaptá-las ao combate ao crime. Se forem aplicadas com seriedade, vão levar mais presos às cadeias? O que faremos com elas?

A última das minhas escolhas em política é falar de intrigas palacianas e familiares. Mesmo para contestar o ministro do Meio Ambiente, no caso do Chico Mendes, hesitei um pouco. Tenho vontade de deixar tudo isso pra lá, seguir focado no que importa.

É tudo tão subversivo para minha concepção de política que me sinto um pouco espécie em extinção. No mundo que se foi, presidentes reuniam-se com ministros, acertavam sua demissão e, em alguns casos, trocavam cartas diplomáticas de agradecimento etc.

Hoje, são demitidos pelo Twitter. Não é novo. Trump costuma usar esse método. Mas esse estilo de fazer política representa mesmo um avanço?

No caso de Bolsonaro, há um dado delicado. Ele divulgou uma gravação telefônica com um ministro. Presidentes não punem primeiro nas redes sociais . Nem costumam divulgar suas falas.

É um cochilo em termos de segurança nacional. Mas é, sobretudo, uma falta de consideração. Se houvesse alguma coisa a ser resolvida, deveria ter sido pessoalmente. Sem humilhações públicas.

O poder, isso é um lugar-comum, revela muito as pessoas. Sobretudo no princípio de governo, quando ainda estão embaladas pelo voto popular e ainda não sofreram o desgaste das limitações reais.

A tendência é um excesso de autoconfiança. Mesmo entre os generais, que são uma força moderadora e mais tranquila, às vezes surgem surpresas.

Na minha concepção política, os governos, de um modo geral, ao saber que serão criticados, apenas preparam-se para a defesa, que será proporcional às críticas e suas repercussões.

O governo brasileiro resolveu se antecipar às potenciais críticas que sofreria de bispos de esquerda num sínodo sobre a Amazônia. Nesse movimento, ele trouxe as atenções para as críticas que podem sair daí. O sínodo ainda não aconteceu. Dizem que o celibato dos padres será um dos temas. Por que não esperar que aconteça e reagir de acordo com os fatos reais?

Enfim, é tudo tão perturbador para uma visão mais clássica. Governos minimizam críticas, não criam um palco planetário para elas.

Um dado novo também é a importância dos filhos de Bolsonaro nas crises políticas.

Como um sobrevivente do século XX, impossível não levar em conta a intensidade da relação pai e filho. Não usaria jamais a frase redutora: “Freud explica”. Arriscaria apenas dizer que ele fornece algumas pistas.

O que me parece fato neste momento é a intensidade emocional deste governo, as rivalidades, as tramas, os ciúmes. A experiência mostra que existe um antídoto para as veleidades pessoais: é a existência de um projeto comum, algo que nos transcenda.

A retirada do Brasil desta crise, as necessárias reformas, tudo isso deveria falar mais alto. Mas não fala. A própria insegurança estrutural pela ausência de uma cultura de precaução só aparece nas primeiras semanas pós-desastre.

Quando este governo se instalou, dispus-me a ficar atento e, se necessário, fazer uma crítica construtiva. Mas esse projeto se esvaziou um pouco. Daí minha apreensão. Será preciso, em primeiro lugar, libertá-lo dessa tendência autodestrutiva.

Tratem-se bem, cuidem uns dos outros, vivemos num país quase em ruínas. Isso é o pressuposto para trabalhar com a sociedade, levá-la para as mudanças que deseja.

Deixem, pelo menos, a oposição trabalhar.

Brasil do Império


O nome do problema não é Carlos nem Bebianno

Está evidente que o governo tem um problema. Ele tem nome e sobrenome. Alguns o chamam de Gustavo Bebianno. Outros, de Carlos Bolsonaro. Se estivessem certos, a solução seria simples. Bebianno já está a caminho da porta de saída do Planalto. Bastaria, então, trazer as opiniões do "filho-pitbull" na coleira e a coisa estaria resolvida. O diabo é que estão todos equivocados. Chama-se Jair Bolsonaro o verdadeiro problema do governo.

O capitão chegou ao Planalto como solução dos 57 milhões de brasileiros que o elegeram. Assumiu uma máquina estatal ideal para a instalação de uma administração pública inteiramente nova. Caos não falta. Entretanto, Jair Bolsonaro tornou-se um problema ao fazer uma opção prioritária pela trapalhada. Empenha-se tanto na produção de enroscos que se arrisca a tomar um processo judicial de Dilma Rousseff por plágio.

Outros presidentes precisavam tourear opositores. Com a oposição em frangalhos, Bolsonaro administra autocrises. Na falta de fatores externos, ele fabrica os próprios tropeços. No percalço mais recente, atribuiu-se à beligerância tuiteira de Carlos Bolsonaro a origem da "Operação Tabajara" que mantém um ministro palaciano pendurado nas manchetes em estado crônico de demissão há cinco dias. Engano. A trapalhada é coisa do pai.

Vendeu-se à opinião pública a falsidade segundo a qual Jair Bolsonaro reproduzira numa entrevista à TV Record o estampido das balas perdidas disparadas contra Gustavo Bebianno no Twitter do filho "Zero Dois". Deu-se, porém, o oposto. Embora divulgada no telejornal noturno, a entrevista do presidente fora gravada de manhã, no hospital Albert Einstein.

Testemunha da conversa com o jornalista, Carlos ecoou o pai, não o contrário. Fez isso com o consentimento de Jair Bolsonaro, que lhe forneceu a munição mais letal: um áudio que enviara a Bebianno, via WhatsApp, para informar que não falaria com o ministro.

Nada disso deveria ter acontecido. Com o Diário Oficial ao alcance de sua caneta Bic, Bolsonaro não precisa atirar nos seus próprios ministros. Se a confiança em Bebianno evaporou, bastaria demiti-lo. Junto com o ato de exoneração seria distribuída à imprensa uma nota sobre a abertura do inquérito da Polícia Federal para apurar a denúncia de que Bebianno é correponsável pelo "laranjal" do PSL.

O problema é que, de crise em crise, Bolsonaro tornou-se uma espécie de prisioneiro do próprio impudor. Suas ações e declarações perderam o nexo. Para se comportar como um autêntico presidente, seguindo as regras do manual, o capitão teria de responder a pelo menos três perguntas:

1- Como pode o pai do senador Flávio "Coaf" Bolsonaro, marido de Michele "Cheque de R$ 24 mil" Bolsonaro e amigo de Fabrício "Faz-Tudo" Queiroz espicaçar Gustavo "Laranjal"Bebianno?

2 - Como levar a sério um presidente que invoca valores éticos para livrar-se apenas de Bebianno se pelo menos sete dos 22 ministros que nomeou ostentam algum tipo de suspeição?

3 - Como acreditar na cara de nojo que Bolsonaro faz para o escândalo do PSL se o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, tão enrolado no caso do laranjal quanto Bebianno, continua no cargo como se nada tivesse sido descoberto sobre ele?

Desde que Bolsonaro elegeu-se presidente, aconteceram tantas esquisitices, uma se sobrepondo à outra, que muitas delas parecem esquecidas.

Em dezembro, por exemplo, quando se descobriu que o "amigo" Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro, borrifara R$ 24 mil na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro, o presidente se incluiu no problema: "Se algo estiver errado —seja comigo, com meu filho ou com o Queiroz— que paguemos a conta deste erro. Não podemos comungar com erro de ninguém." Por ora, em meio ao esconde-esconde, prevalece a impunidade.

No mês anterior, quando se verificou que o ministro escolhido para a pasta da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, responde a denúncia por fraude em licitação, tráfico de influência e caixa dois, Bolsonaro piscou: "Não é nem réu ainda. O que está acertado entre nós? Qualquer denúncia ou acusação que seja robusta, não fará mais parte do nosso governo." Bebianno tornou-se um sub-Mandetta.

Diante da notícia de que o ministro Edson Fachin, do Supremo, autorizara uma investigação preliminar contra o chefe da Casa Civil, Onyx Lorezoni, por suspeita de caixa dois, Bolsonaro renovou o lero-lero: "Havendo qualquer comprovação ou denúncia robusta contra quem quer que seja do meu governo, que esteja ao alcance da minha caneta 'bic', ela será usada". Bebianno talvez pergunte aos seus botões: "Por que a política de 'mata-e-esfola' só vale pra mim?"

O capitão perdeu a fala quando o ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, foi condenado em primeira instância por improbidade administrativa. Premiado com o silêncio do chefe e elogiado no Twitter de Carlos Bolsonaro, o sentenciado sente-se à vontade até para achincalhar a memória de Chico Mendes.

Com tantas evidências de desapreço pelos bons costumes, é improvável que a aversão que Bolsonaro passou a nutrir pelo ex-amigo Bebianno tenha como causa o laranjal do PSL. As verdadeiras razões apareceram nos diálogos mantidos pelo presidente na última sexta-feira.

Bolsonaro passou a se referir a Bebianno como "X", uma alusão ao apelido que os criminosos dão aos traidores nas cadeias. Chamou de "quebra de confiança" a audiência que Bebianno marcara —e ele mandara cancelar— com um executivo do "inimigo" Grupo Globo. Por isso, armou o salseiro que consome as energias de um governo que deveria estar concentrado na articulação da maioria necessária à aprovação de suas reformas no Congresso.

Foi assim, tratando com suavidade a falta de ética e estocando bílis no congelador, que Bolsonaro converteu-se no principal problema do seu governo. Ao magnificar as crises que fabrica, o capitão conseguiu o milagre de dar conteúdo oposicionista a si mesmo. De tanto atirar contra o próprio pé, virou alvo de Bebianno, um auxiliar que o idolatrava.

Enquanto aguarda pelos torpedos domésticos, resta a Bolsonaro um consolo. Na oposição, a única novidade é que Lula, ainda preso em Curitiba, foi convencido por seus devotos de que sua biografia o credencia para uma candidatura ao Prêmio Nobel da Paz.

O poder por trás do trono

Muitos governantes têm à sua sombra um homem frio, discreto e leal que, por sua capacidade de observação e análise, os orienta sobre o que pensar, dizer ou fazer. É o poder por trás do trono. O cardeal Richelieu (1585-1642) foi esse homem para o rei Luís 13 na França do século 17. O chanceler Otto von Bismarck (1815-1898), para o imperador Guilherme 1º na Alemanha do século 19. E o folclórico Rasputin (1869-1916), para o czar Nicolau 2º na Rússia —nem sempre o trono se dá bem.

No Brasil, José Bonifácio (1763-1838) foi uma das forças por trás do príncipe d. Pedro no Fico e na Independência. O poeta Augusto Frederico Schmidt (1906-1965) soprou a Juscelino Kubitschek, entre outras, o “50 anos em 5”. Mas ninguém bate o advogado Jorge Serpa (1923-2019): pegava o telefone e falava diretamente com JK, Jango, Tancredo, Collor, Itamar, Sarney e FHC. Era um homem de grande influência. Mas apenas dez amigos o levaram ao túmulo outro dia.


Hoje, no Brasil, temos um candidato a esse posto. É o vereador Carlos Bolsonaro (PSC), atualmente em seu quinto mandato na Câmara Municipal do Rio —cidade que ele abandonou, e logo agora, em que ela passa por uma crise atrás da outra.

Para que serve um vereador? Para legislar, fiscalizar e morder os calcanhares do prefeito ou, ao contrário, lhe fazer festinhas. Não lhe compete tapar buracos, mas pode obrigar o alcaide a tomar providências. Suas ocupações compreendem desde o Orçamento anual até a ocupação irregular das encostas e o esgoto entupido. Sua jurisdição é municipal. Só deveria ir a Brasília a passeio, e olhe lá.

Mas Carlos Bolsonaro, filho do presidente, não sai do Planalto e não larga o pai por um instante. Tuíta desaforos, demite ministros, desmoraliza generais. Deve julgar-se um Richelieu, um Bismarck mirim. Mas, pelo ritmo da tragédia, está fazendo lembrar Brutus, que César via como um filho.

Vida é apenas uma barata

*A Vale prevê pagar até R$ 300 mil para cada parente direto de mortos ou desaparecidos soterrados pela lama em Brumadinha.

 *Segurança de supermercado Extra paga fiança de R$ 10 mil e responderá, solto, a processo por assassinar jovem por asfixia na frente da própria mãe dentre do estabelecimento.

Licenciamento e desastre ambientais

Os desastres ambientais de Mariana e Brumadinho põem na ordem do dia, com alta prioridade, o problema do licenciamento ambiental. Isso significa uma séria inversão de prioridades do governo federal.

A reorganização administrativa promovida em janeiro levou à extinção e realocação de várias áreas ligadas a questões ambientais, o que indicava uma visão desenvolvimentista em que o licenciamento ambiental parece ser um obstáculo ao desenvolvimento.

Essa era explicitamente a visão do governo militar em 1972, por ocasião da primeira Conferência Internacional sobre Meio Ambiente, em Estocolmo, que levou à criação de Ministérios do Meio Ambiente (ou órgãos equivalentes) na maioria dos países do mundo. A visão do governo na época era a de “desenvolver primeiro” e se preocupar depois com as consequências sociais e ambientais decorrentes.


Apesar disso, o professor Paulo Nogueira Neto, da Universidade de São Paulo (USP), conseguiu convencer o presidente Médici a criar, em 1973, a Secretaria Especial do Meio Ambiente (Sema) no Ministério do Interior, à frente da qual permaneceu até 1985 e onde conseguiu introduzir toda a legislação e os órgãos administrativos da área ambiental no País.

A criação da Sema deveu-se mais ao prestígio pessoal de Paulo Nogueira Neto, integrante de tradicional família paulista, e sua reputação científica do que a uma compreensão clara da necessidade do governo militar de conciliar desenvolvimento com proteção ambiental.

Ele era visto com reservas por grupos interessados na expansão da ocupação da Amazônia, mas com seu perfil não confrontacional conseguiu introduzir no País legislação ambiental moderna, copiada de países da Europa e dos Estados Unidos. O melhor exemplo é o da criação da Companhia Estadual de Tecnologia e Saneamento Ambiental (Cetesb), em São Paulo. O sucesso em resolver o problema ambiental de Cubatão, no governo Montoro (1986-1989), deu à Cetesb estatura e prestígio para enfrentar outros desafios.

Isso não ocorreu, contudo, em muitos outros Estados e certamente não no governo federal, em que órgãos como o Ibama frequentemente não tiveram apoio para pôr em prática a excelente legislação criada por Paulo Nogueira Neto.

Estamos pagando hoje o preço disso com os desastres de Mariana e Brumadinho. E o governo Bolsonaro não ajudou nada, até agora, a resolver os problemas reais do setor ao reduzir o status do Ministério do Meio Ambiente (que até cogitou de extinguir) e tolerar entrevistas e declarações de membros de sua administração desqualificando a defesa do meio ambiente como inspirada por agentes internacionais e de modo geral “xiita” nas suas reivindicações.

A realidade é outra e esta é uma boa hora de recolocar o problema nos termos corretos.

A legislação atual tem basicamente dois instrumentos para forçar o cumprimento das normas ambientais adequadas: multas e interdições. A aplicação de multas revelou-se insuficiente, como o próprio presidente Bolsonaro tem declarado, porque a judicialização dos processos tornou-a inoperante. O único instrumento eficaz é o poder das agências ambientais de interditar empreendimentos. Foi o uso dela que permitiu à Cetesb “limpar” Cubatão, 40 anos atrás.

Sucede que a decisão de interditar é suscetível a influências políticas: se os órgãos ambientais não tiveram respaldo e apoio ativo dos prefeitos (nos municípios), dos governadores (nos Estados) e do presidente da República (na área federal), a interdição não é eficaz.

Exemplo na área federal é dado pela redução dramática do desmatamento na Amazônia conseguida pela ministra Marina Silva entre 2005 e 2010, que contou com o apoio entusiástico de setores importantes da sociedade, o que intimidou os promotores do desmatamento. Algo semelhante ocorreu no governo Collor, em 1991, quando a ação da Polícia Federal e o monitoramento do desmatamento feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) - que foi tornado público - levaram a uma redução do desmatamento, que recomeçou a subir no governo Fernando Henrique. Em ambos os casos foi a firmeza e a coragem do governo federal que apoiou os técnicos da área ambiental a cumprir suas tarefas. Não foi preciso criar novas leis, mas decidir cumpri-las.

Esta é uma situação parecida com a Operação Lava Jato e o papel do juiz Sergio Moro. A legislação anticorrupção, com delação premiada e outros dispositivos legais, já existia, mas foi a coragem do juiz em aplicá-la que fez toda a diferença.

Isso não significa que a legislação ambiental não possa ser aperfeiçoada e simplificada - sem perder o rigor -, sobretudo definindo melhor as características específicas dos empreendimentos. Licenciar uma pequena central hidrelétrica numa fazenda no interior não precisa ter a complexidade de licenciamento de uma grande usina hidrelétrica.

Para evitar novos desastres, como em Mariana e Brumadinho, o governo federal precisa demonstrar claramente que vai aplicar as leis vigentes, “doa a quem doer”. Somente assim os técnicos e engenheiros responsáveis pelos projetos e pela fiscalização ambiental se sentirão respaldados para propor a interdição de projetos inadequados e não conceder novas licenças sem a permissão de medidas protetoras da população.

Licenciar uma barragem como a de Brumadinho, permitindo que abaixo dela fossem instalados uma pousada e um refeitório da Vale, ultrapassa as raias do absurdo na sua irresponsabilidade. E poderia ter sido evitado por uma simples medida administrativa.

Não é possível, como querem alguns, resolver os problemas da pobreza no País mantendo a natureza intocada. Mas é possível fazer um licenciamento ambiental mais rigoroso e ágil, que proteja a população sem impedir o desenvolvimento.

Gente fora do mapa

Kargil ( Índia) - Blaine Harrington

A rebelião do andar de cima

Quem se encantou pela franquia Bolsonaro achando que se livraria das bandeiras do corporativismo petista, não sabia o tamanho do ativismo do andar de cima. O presidente anunciou que “vamos botar um ponto final em todos os ativismos do Brasil”. Todos, não.

Desde sua eleição, o governo foi confrontado por três movimentos corporativos. Cedeu em dois e é provável que a Procuradoria-Geral da República cederá no terceiro. Em todos os casos mobilizaram-se servidores do andar de cima, gente com salários mensais que vão de R$ 20 mil a sabe-se lá quanto.

A primeira rebelião veio dos procuradores da Fazenda Nacional. Paulo Guedes queria colocar um diretor do BNDES na cadeira de procurador-geral. A corporação rebelou-se, avisando que centenas de procuradores abandonariam seus cargos em comissão, pois o procurador-geral deveria ser escolhido no quadro da instituição. Ganharam.

O segundo confronto deu-se com os auditores da Receita Federal. A Agência Nacional de Aviação queria que eles cumprissem a norma da revista ao entrarem em áreas restritas dos aeroportos. Os descontentes mostraram seu desagrado "apurrinhando" a vida de milhares de passageiros, obrigando-os a esperas de até quatro horas nas filas das alfândegas. Resolveram inspecionar todas as malas desses supostos contrabandistas. No dia seguinte três ministérios foram acionados e o governo cedeu.

A terceira rebelião veio dos procuradores da República. Até a última terça-feira, 192 doutores devolveram 325 funções não remuneradas. Eles apresentam reivindicações técnicas, nas quais está embutida uma questão salarial, escondida nos penduricalhos de uma categoria que ganha, no barato, R$ 25 mil líquidos. Por trás dessa rebelião está o painel da sucessão da procuradora-geral, Raquel Dodge. A batalha ainda não terminou. Até hoje, magistrados e procuradores ganharam todas.

Ativismo do andar de cima é outra coisa.

Lima Barreto e os dias de hoje

Em “Diário do hospício”, primeira parte de “O cemitério dos vivos” (Planeta), Lima Barreto fala de uma das internações que teve, na realidade, a última, dois anos antes de seu falecimento. O problema do homem era a bebida, pelo menos era o que ele mesmo dizia. Tudo bem, ele dizia mais. Reproduzo suas palavras: “De mim para mim, tenho certeza que não sou louco; mas devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material, há seis anos, me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura, deliro.”

Apesar de todo o campo que se abre para discutir sobre a visão que o escritor tinha de si mesmo, um dos motivos que me levam a falar do livro é que, durante a leitura, encontrei a palavra geena, segundo o Houaiss, “local de suplício eterno pelo fogo, inferno” ou, por extensão de sentido, “sofrimento intenso, tormento, tortura”. Antes de buscar o significado do substantivo, me lembrei da amiga Stella Maris Rezende — escritora, colecionadora de prêmios Jabuti e verdadeira adoradora de palavras esquecidas — e a marquei no Face com a intenção de saber se ela o conhecia. Não, ela não conhecia. Concordamos que a sonoridade era bela, já o significado…

Henrique Fendrich, editor da revista Rubem, comentou que geena “era um vale fora de Jerusalém onde se jogava lixo e cadáveres” e que “Jesus usa muitas vezes a palavra como metáfora para o inferno”. Vera Moll — autora de “Meu adorado Pedro” (Bom-Texto), livro baseado na vida da imperatriz Leopoldina — reforçou a linha do Henrique ao perguntar: “não era desse modo que muitos eram condenados à morte segundo um dos livros da Bíblia? Na Geena.” Geena é uma palavra bíblica, que Lima Barreto usou com precisão ao escrever sobre seu calvário de viver num hospício, esse cemitério de vivos.

A ironia à postagem veio do Marco Túlio Costa — outro colecionador de Jabuti — ao fazer o seguinte comentário: “do modo que as coisas vão, alguém nascido na cidade do Rio de Janeiro poderá dizer ‘sou carioca da geena’”. Trocadilho digno de prêmio, reagiu o Henrique. Faço coro, quanto mais agora — um agora que não é de hoje — que o estado está à deriva. O autor de “O mágico desinventor” (Record), digníssimo Mago Túlio, como o poeta Antonio Barreto o chama, lacrou.

Volto ao diário da terceira internação de Lima Barreto. O interesse em lê-lo ainda hoje está não só no fato de que os “loucos” continuam por aí e são sempre personagens curiosos (quando são apenas personagens e não nossos familiares, sejamos honestos), mas na precisão com que Lima Barreto mostra que uma instituição dessas é a síntese do próprio país. Barreto fala de loucos ricos, com enfermeiros contratados, em contraposição aos despossuídos de juízo e dinheiro. Fala de médicos que não vão além daquilo que apregoa sua ciência, quer dizer, médico que está ali para receitar o mesmo tratamento para qualquer espécie de doente. Mostra enfermeiros pacienciosos, que, vivendo entre os loucos, sem o distanciamento reservado aos médicos, suportam todo tipo de maldição e impropérios.

Olhar arguto, Lima Barreto documentou um país que insiste em manter-se o mesmo. O Brasil, e não só o Rio, está jogado à geena. Ah, sim, e os escritores continuamos, como tem sido desde o início dos tempos, assoberbados pela falta de grana, com o que nos quedamos loucos mesmo sem a bebida e sem o delírio.
Alexandre Brandão

Valor da vida exposta ao risco das barragens da Vale: 2,6 milhões de dólares

Uma morte em caso de rompimento de barragem da Vale tem o valor de 2,6 milhões de dólares —9,8 milhões de reais, no câmbio atual—. É o que aponta um documento interno no qual a mineradora analisa os riscos de suas barragens e quantifica uma série de consequências econômicas de um eventual rompimento, incluindo as indenizações por morte. Este tipo de estudo é um procedimento normal das empresas cujas atividades são consideradas de risco e é utilizado na avaliação e valoração das companhias sobre quais os riscos de suas atividades que elas estão dispostas a aceitar. Nele, são avaliadas desde as implicações econômicas e ambientais até os prejuízos à imagem da empresa e os custos com saúde e segurança em caso de um eventual rompimento. A empresa estimou em 1,5 bilhão de dólares o custo de um rompimento hipotético.



Segundo a Vale, todas as informações contidas no documento, produzido em 2015, partem de "situações hipotéticas" e o valor da indenização que a empresa deverá pagar às famílias das vítimas fatais de Brumadinho ainda está em discussão com as autoridades brasileiras. A empresa insiste que a barragem I da Mina do Feijão, que ruiu no último dia 25 de janeiro, não apresentava riscos de ruptura e que nos últimos quatro anos aumentou em 180% o investimento em segurança nas suas barragens. Até a última quinta-feira, haviam sido contabilizadas 166 mortese 155 desaparecidos por conta do desastre.

O documento em que a empresa estima o valor das potenciais vidas humanas que podem ser perdidas no caso de rompimento de barragens é intitulado Análise Quantitativa de Riscos em Barramentos — Definição das Consequências. Ele registra que a “indenização por perdas de vidas humanas é o tema com maior divergência de opiniões, elevado grau de incerteza e questões éticas associadas”. E discute três metodologias para chegar a um valor de indenização. No fim, a Vale adota como base a chamada "curva de tolerabilidade de riscos", uma abordagem proposta pelo engenheiro norte-americano Robert Whitman na década de 1980 e que leva em consideração um gráfico que inclui consequências tanto em termos financeiros quanto em termos de potencial de perda de vidas humanas.

Com base nisso, essa metodologia instituiu na década de 1980 que o valor de uma vida é igual a um milhão de dólares. A própria Vale, no seu documento interno de 2015, corrige o valor para aquele ano e determina que a indenização por perdas de vida a ser considerada pela empresa deve ser de 2,6 milhões de dólares. "Esse valor deve ser convertido de dólar americano para reais conforme a cotação da moeda norte-americana na data de realização do cálculo do custo da indenização", aponta o documento. Com isso, a indenização por morte conforme os cálculos admitidos pela Vale poderia chegar a 9,2 milhões reais na cotação atual. Este cálculo, porém, não inclui uma correção monetária para 2019.

O valor estipulado pela mineradora é superior às indenizações determinadas pela Justiça brasileira em casos de morte, que têm variado entre 300 a 500 salários mínimos nos últimos anos (ou de 15.000 reais a 152.000 reais). Esta foi uma das opções ventiladas pela Vale no seu estudo, mas a própria empresa avaliou o valor pequeno. "Observa-se que, considerando a política e valores da Vale, nas quais a vida humana está em primeiro lugar, cabe destacar que os valores que vem sendo arbitrados são bastante reduzidos", argumenta a própria empresa no documento. A terceira metodologia considerada pela empresa tem como base de cálculo a quantia gasta para reduzir o risco ou quantia compensatória para se aceitar o risco, mas os valores eram tão discrepantes se aplicados a casos históricos que foram rechaçados pela mineradora.

Apesar de prever um valor superior de indenização à média determinada pela Justiça, não há como estimar o valor real das indenizações pagas pela Vale. No caso do rompimento da barragem de Mariana em 2015 — de propriedade da Samarco, empresa controlada pela Vale— foi feito um acordo extrajudicial para indenizar as vítimas que determina a confidencialidade dos valores. Parte das vítimas espera há três anos a reconstrução de suas casas. Também não é possível saber se o cálculo antes projetado pela Vale será considerado para indenizar os familiares das vítimas de Brumadinho. Questionada pelo EL PAÍS sobre isso, a mineradora disse apenas que "os estudos de risco e demais documentos elaborados por técnicos consideram, necessariamente, cenários hipotéticos para danos e perdas". E insistiu, em nota: "Não existe em nenhum relatório, laudo ou estudo conhecido qualquer menção a risco de colapso iminente da Barragem I da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho. Pelo contrário, a barragem possuía todos os certificados de estabilidade e segurança, atestados por especialistas nacionais e internacionais".