segunda-feira, 1 de maio de 2023

As vítimas 'invisíveis' da crescente inflação global

A voz de Meseret Addis é baixa e trêmula. A senhora etíope de 83 anos passa a maior parte de seus dias na cama. Ela respira fundo, conectada a uma cânula nasal para aumentar seus níveis de oxigênio.

"Não quero sofrer. Não quero passar fome. Não quero sentir frio", diz ela.

Addis divide um pequeno quarto com três netos na capital da Etiópia, Addis Abeba. Ela é viúva e sua filha morreu de diabetes.

As crianças tomam café da manhã e almoçam na escola. Addis guarda toda a comida que tem para jantar com os netos.

Ela só faz uma refeição por dia - e não todos os dias.

"A gente só come Qolo (mistura tradicional de grãos torrados), bebe água e vai dormir. Quando falta até isso, não há o que fazer."

Sua história não é um caso isolado.

Durante semanas, a BBC conversou com idosos e idosas em todo o mundo para entender o impacto da crise global da inflação.

Os testemunhos revelam extrema vulnerabilidade, dependência crescente de instituições de caridade e desafios para atender às suas necessidades básicas.

"Os dados sobre os idosos estão completamente inexistentes", disse à BBC Claudia Mahler, especialista independente da ONU sobre os direitos humanos dos idosos.

"Eles são deixados para trás quando se trata de sistemas de suporte porque não são visíveis", diz ela.

Para a especialista, outros grupos com maior ativismo acabam abafando a voz dos que defendem os idosos.

Meseret só faz uma refeição por dia e não consegue comer todos os dias

Um novo estudo realizado em 10 países pela HelpAge, uma rede de caridade financiada por agências internacionais, mostra que os idosos estão tomando "medidas drásticas para sobreviver", desde pedir comida nas ruas pela primeira vez a abandonar tratamentos hospitalares.

"Você pode ver que estou doente. Eu estou na minha cama. Se não receber ajuda, só posso esperar a morte", diz Meseret Addis, enquanto se tapa com um cobertor em seu quarto frio.

Em outro leito a mais de 4 mil km de distância, em Beirute, na capital do Líbano, Alice Chobanian, de 67 anos, fala de um desespero semelhante.

"Não quero falar sobre o número de vezes em que tentei me matar", diz ela.

Chobanian divide seu pequeno quarto na capital libanesa com 10 pessoas no total, duas filhas recém-divorciadas e seus oito filhos.

Ela diz que a situação financeira de sua família piorou desde 2020 e "as coisas nunca estiveram tão difíceis como agora".

Especialistas dizem que o impacto dessa crise na saúde mental dos idosos é grave.

"As depressões não são vistas como depressões. Elas são vistas apenas como 'algo relacionado à idade', algo que 'não é tão sério'. Mas esta é uma questão enorme que é totalmente ignorada", diz Claudia Mahler.

O Programa Mundial de Alimentos da ONU diz que o número de pessoas que enfrentam insegurança alimentar aguda aumentou de 135 milhões em 2019 para 345 milhões em 2022.

Além da covid e das mudanças climáticas, a invasão russa da Ucrânia em fevereiro de 2022 levou a uma interrupção global nas cadeias de suprimentos de alimentos, energia e remédios, além de fazer disparar a inflação.

O Líbano já estava em crise antes da guerra e a inflação dos alimentos atingiu 372,8% no país no ano passado.

"Minhas netas gostam de passar pelo restaurante de frango frito só para sentir o cheiro do frango", diz Chobanian.

"Ontem elas disseram que estavam com fome. Eu não tinha nada e elas falaram: 'Vamos dormir e torcer para sonhar com frango'."

A renda mensal da família de Chobanian é de US$ 20 por mês (cerca de R$ 100) e vem de sua filha, que trabalha como cuidadora.

"Antes da crise eu vendia peças de crochê. Com a crise ninguém compra nada. O que eu faço é considerado um luxo e as pessoas não podem mais pagar", diz.

Mulheres idosas como Addis e Chobanian são quem "sofrem com o peso desta crise", dizem os especialistas.

"Normas sociais e culturais muitas vezes obrigam as mulheres a serem as primeiras a desistir de suas refeições quando a comida é limitada. Também por causa das desigualdades sociais existentes, as mulheres têm menos capacidade de ter renda", diz Bob Babajanian, da entidade de caridade HelpAge.

"Isso também se traduz em dinâmicas intrafamiliares específicas, onde elas têm menos controle sobre os recursos."

Mulheres são as principais cuidadoras de crianças e parentes. E muitas vezes ganham menos do que os homens quando trabalham fora de casa, além de fazerem trabalhos mais informais.

"Falamos muito sobre a disparidade salarial entre homens e mulheres, mas também existe uma disparidade nas aposentadorias", diz a especialista da ONU Claudia Mahler.

"Se as mulheres ou meninas não tiverem acesso a boa educação, nunca terão as mesmas possibilidades de emprego que os homens. Isso também passa por não haver apoio e ajuda suficientes por meio de pensões ou outros subsídios", diz ela.

Mas os homens mais velhos também enfrentam sérios desafios.

É fim de tarde e Ziauddin Khilji está sentado na porta de sua oficina em Islamabad, no Paquistão. Sua esposa morreu no mês passado depois de fazer diálise por sete anos.

Aos 68 anos, ele ainda precisa trabalhar porque não tem aposentadoria. Mas ele perdeu a maioria de seus clientes no ano passado.

"Houve um tempo em que não tínhamos tempo livre o dia inteiro. Agora, este é o primeiro trabalho que tenho desde o início da manhã", diz Khilji, apontando para as máquinas cobertas de poeira.

Em fevereiro de 2023, os preços ao consumidor do Paquistão tiveram o maior salto ano a ano em quase 50 anos.

Ele agora dorme em um colchão dobrável nos fundos de sua oficina. Mas mesmo isso também está em risco, já que o aluguel da oficina mais que dobrou no mês passado.

Os empréstimos que ele fez para pagar o tratamento médico de sua esposa estão ficando mais caros porque as taxas de juros também dispararam.

"Sou diabético e tenho um stent cardíaco. Meus rins doem. Mas meus comprimidos estão muito caros agora. Às vezes, simplesmente paro de tomá-los. Quando posso pagar, tomo. Caso contrário, o que posso fazer?"

Addis, na Etiópia, também parou de comprar a maioria dos medicamentos vitais de que necessita para seus pulmões.

São casos que corroboram os resultados da pesquisa da HelpAge, que mostra que o aumento dos preços está impedindo que os idosos tenham acesso a tratamento médico e remédios.

Outros interrompem tratamentos porque não podem pagar pelo transporte até hospitais e farmácias.

O impacto da crise nos idosos vai além dos países em desenvolvimento como Etiópia, Líbano e Paquistão.

Também é visível no Reino Unido, um país rico.

Thabani Sithole, de 74 anos, é uma enfermeira aposentada que mora no sul de Londres. Ela depende de um banco de alimentos para comer.

“Nunca pensei em usar um banco de alimentos, nunca, porque tudo parecia bem. Com o pouco de dinheiro que eu tinha, pensei 'Por que essas pessoas estão usando bancos de alimentos?'

"E agora é minha vez de entrar na fila", diz ela, apontando para as latas na mesa da cozinha.

Quando se aposentou em 2019, ela pensou que "a vida estava apenas começando".

Mas a disparada dos preços mudou tudo.

"Às vezes você deseja algo. Mas agora não se trata de uma guloseima. É sobre ter comida para comer, ter comida suficiente."

Sithole ficou viúva quando sua filha tinha dois meses de idade. Ela mora com a filha única, cujas fotos cobrem as paredes da sala.

"Pelo menos ela está aqui para me ajudar. É por isso que posso comprar as coisas."

Mas depender de membros da família, embora comum, não é uma abordagem sustentável à medida que as populações envelhecem.

Wei Yang, diretor do Instituto de Gerontologia do King's College London, diz: "No Reino Unido, aqueles com 65 anos ou mais vão dobrar ou triplicar nas próximas décadas, então é quase impossível que as pessoas sempre tenham familiares mais jovens que os ajudem."

"Os governos precisam pensar em novas maneiras de financiar cuidados de longo prazo para idosos", diz Yang.

Sithole diz que também depende da ajuda de instituições de caridade como a Independent Age para sobreviver e teme que o pior ainda esteja por vir.

"A prestação do nosso imóvel continua subindo a cada dois meses", diz ela.

"Perderemos a casa porque não podemos pagar agora. Teremos que vendê-la e nos mudar para um lugar um pouco mais barato, o que dificultará a vida da minha filha, que precisa sair para trabalhar."

Ela faz um apelo para que as pessoas mais velhas em situação precária se manifestem mais.

"Não seja tímido. Não sinta medo. Não sinta vergonha."

A morfina de Jair Bolsonaro

O ex-Presidente Jair Bolsonaro alegou no seu depoimento à Polícia Federal que estava sob os efeitos da morfina quando fez o compartilhamento de um vídeo nitidamente golpista, promovido num momento de grande tensão política no país, gerado pela escalada de um golpe que ele conduzia. Se verdadeiro o uso deste argumento, ele apenas agrava a sua situação como futuro réu, porque é sabido que o compartilhamento não foi uma ação isolada, mas parte de um crime continuado, cometido em circunstâncias especiais de saúde mental e em momentos de plena lucidez, nos dois últimos anos do seu alucinado mandato.

Mas há uma segunda e uma terceira hipótese. Se a sua resposta – segunda hipótese – foi só uma orientação da sua defesa, para atenuar a sua responsabilidade penal, o argumento pode ser tomado como um apelo para a redução de uma futura pena, a ser cumprida em estabelecimentos de recuperação de pessoas afetadas por psicoses graves, que passam a ser serial-killers da política democrática, quando são capazes de planejar as suas ações.

Há, todavia, uma terceira hipótese que, para mim, é mais provável: Jair Bolsonaro fez uma ironia e apenas debochou dos poderes de Estado naquele momento, na presença dos Policiais Federais que antes ele buscava cooptar “pelo alto”, para uma conspiração de natureza golpista e fascista. Deu, assim, prosseguimento ao desprezo ao Estado de Direito, que ele odeia por dois motivos fundamentais: primeiro, porque os maníacos depressivos não aceitam ser contrariados; segundo, porque os paranoicos detestam até as formas de tolerância que a democracia devota aos seus carrascos.


Antes de “fechar” a ideia do presente texto, uma base para reflexão: Jorge Luis Borges está para a literatura assim como Hans Kelsen está para o direito, pela adoração ao império das formas que ambos cultivavam, ainda que por condutos e canais diferentes. A subjetividade anárquica do gênio de Borges instaura a falsa “pureza” formal da literatura, cuja arquitetura central – nos seus textos – esgotava-se nas relações da palavra com a palavra, que saíam do seu estado anímico, vivas apenas nos nexos dados a elas, no texto que ali estava sendo escrito.

Independentemente do significado da sua linguagem corrente, Jorge Luis Borges forjava a literatura em “estado puro”, na qual a dialética das formas – como que por encanto – se separava dos movimentos reais da vida e só a palavra aparecia como soberana, para projetar os sentimentos mais recônditos do autor, para os quais a presença da vida real e dos sentimentos dos outros não importava: todos são pequenos demais, menos os ingleses da sua linhagem, para merecer um outro tipo de encantamento mais generoso.

Qual a analogia de Borges com Kelsen? Ela reside no cerne da teoria pura do direito de Hans Kelsen, antes da grande virada que deu, quando passou a reconhecer que o Estado nazista não era um Estado de direito, cuja eticidade e moralidade estariam, presumidamente, presentes dentro do seu sistema de normas, só porque este era coerente consigo mesmo. O nazismo seria, assim, para o último Kelsen, um sistema de poder sem direito e sem moral, que escravizava a sociedade pela força bruta, que o direito – ao mesmo tempo que regularizaria – travava e organizava pelo medo.

A subjetividade de Hans Kelsen, antes dessa virada, dava a estabilidade estática e burocrática ao direito, dizendo que ele é – como forma orgânica do Estado – a lógica despida da emoção que todos deveriam cultuar a partir da norma fundamental, que tanto pode vir de Deus como da sociedade. As formas de Hans Kelsen revestiam o direito de uma dignidade presumida pela coerência interna do sistema e as formas de Jorge Luis Borges davam beleza a sua literatura, “pura” de qualquer conceito político, pela harmonia que ligava as palavras dotadas de novos sentidos.

Por este caminho Hans Kelsen formava o conceito do “estatal”, de maneira aparentemente “científica”, onde as relações entre as palavras devem ser cientificamente resolvidas: elas adquiriam o seu significado como normas (compostas por palavras), não como o discurso da arte em Borges. Em Hans Kelsen as palavras “superiores” dão significado às palavras “inferiores” e é nesta imputação que o direito assume sua neutralidade científica, afora e acima das “ideologias”. As palavras escolhidas pela ciência em Hans Kelsen, já vinham despidas de ideologias classistas ou religiosas e, em Jorge Luis Borges, elas se tornavam arte pela sua estética de conteúdos arbitrários.

Vejam como literatura e direito podem adquirir universalidade, a partir de episódios particulares que, ao mesmo tempo incorporam momentos mais singulares ou mais universais: um episódio singular é, por exemplo, o momento que um torturado perece nas mãos do torturador – forma jurídica dos inquéritos medievais na Inquisição – momento jurídico particular comum à época, que contado por um romancista de talento pode universalizar a redenção do heroísmo moderno, fazendo a fusão do direito com a grande literatura humanista do realismo crítico.

Borges conta que, quando Gabriel Rossetti leu O morro dos ventos uivantes, escreveu a um amigo: “a ação transcorre no inferno, mas os lugares, não sei porque, têm nomes ingleses”. A sentença sintetiza de maneira fantástica todo o impasse do bolsonarismo, no atual período histórico de resistência ao fascismo, num país de heróis e mártires, como o Brasil, onde a reverência europeia à nobreza e às famílias reais se banham em ironia e onde capitães aposentados por problemas mentais, que fariam o horror a Ernesto Geisel e Castelo Branco, tornam-se líderes de uma parte significativa da nação.

Ao revelar que estava dopado pela morfina, naquele interrogatório policial que deveria ser estudado em profundidade para entendermos o subconsciente e o inconsciente do bolsonarismo e do Brasil, da imprensa, dos poderes e dos partidos, que não ficaram estarrecidos com as declarações do ex-presidente, Jair Bolsonaro nos alertou. Suas palavras nos apresentaram o Brasil profundo, mais perto do inferno do que dos ingleses – mais perto do caos do que da idiotia coletiva que nos assolou, que pode restaurar por aqui modelos mais próximos dos campos de concentração do que das metáforas borgianas: mais perto da realidade da morte do que das palavras encadeadas só como beleza, que ora cortejam a alegria da leitura, ora cortejam o desastre da mortandade coletiva.

Pensamento do Dia

 


Resta o pânico

O irracionalismo fascista não precisa de razões; basta-lhe o pânico
Luiz Carlos Maciel

Debaixo da ponte

Moravam debaixo da ponte. Oficialmente, não é lugar onde se more, porém eles moravam. Ninguém lhes cobrava aluguel, imposto predial, taxa de condomínio: a ponte é de todos, na parte de cima; de ninguém, na parte de baixo. Não pagavam conta de luz e gás, porque luz e gás não consumiam. Não reclamavam contra falta d’água, raramente observada por baixo de pontes. Problema de lixo não tinham; podia ser atirado em qualquer parte, embora não conviesse atirá-lo em parte alguma, se dele vinham muitas vezes o vestuário, o alimento, objetos de casa. Viviam debaixo da ponte, podiam dar esse endereço a amigos, recebê-los, fazê-los desfrutar comodidades internas da ponte.

À tarde surgiu precisamente um amigo que morava nem ele mesmo sabia onde, mas certamente morava: nem só a ponte é lugar de moradia para quem não dispõe de outro rancho. Há bancos confortáveis nos jardins, muito disputados; a calçada, um pouco menos propícia; a cavidade na pedra, o mato. Até o ar é uma casa, se soubermos habitá-lo, principalmente o ar da rua. O que morava não se sabe onde vinha visitar os de debaixo da ponte e trazer-lhes uma grande posta de carne.

Nem todos os dias se pega uma posta de carne. Não basta procurá-la; é preciso que ela exista, o que costuma acontecer dentro de certas limitações de espaço e de lei. Aquela vinha até eles, debaixo da ponte, e não estavam sonhando, sentiam a presença física da posta, o amigo rindo diante deles, a posta bem pegável, comível. Fora encontrada no vazadouro, supermercado para quem sabe frequentá-lo, e aqueles três o sabiam, de longa e olfativa ciência.

Comê-la crua ou sem tempero não teria o mesmo gosto. Um de debaixo da ponte saiu à caça de sal. E havia sal jogado a um canto de rua, dentro da lata. Também o sal existe sob determinadas regras, mas pode tornar-se acessível conforme as circunstâncias. E a lata foi trazida para debaixo da ponte.

Debaixo da ponte os três prepararam comida. Debaixo da ponte a comeram. Não sendo operação diária, cada um saboreava duas vezes: a carne e a sensação de raridade da carne. E iriam aproveitar o resto do dia dormindo (pois não há coisa melhor, depois de um prazer, do que o prazer complementar do esquecimento), quando começaram a sentir dores.

Dores que foram aumentando, mas podiam ser atribuídas ao espanto de alguma parte do organismo de cada um, vendo-se alimentado sem que lhe houvessem chegado notícia prévia de alimento. Dois morreram logo, o terceiro agoniza no hospital. Dizem uns que morreram da carne, dizem outros que do sal, pois era soda cáustica. Há duas vagas debaixo da ponte.

Carlos Drummond de Andrade, "A bolsa e a vida"

Quem continua lucrando com a escravidão no Brasil?

Falta de mão de obra.

Essa foi a desculpa que o Centro de Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (CIC-BG) usou para tentar justificar o fato de, no último dia 22 de fevereiro, 207 trabalhadores terem sido resgatados em condições análogas à escravidão em meio à colheita de uvas que seriam utilizadas pelas marcas Salton, Garibaldi e Aurora.

Mas o escárnio criminoso não parou por aí.

A nota emitida afirma que a falta de mão de obra que justificaria a escravização de mais de duas centenas de pessoas seria oriunda do que o CIC-BG chamou de "um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade".

Trocando em miúdos: de acordo com o CIC-BG, empresas do Rio Grande do Sul optaram por usar mão de obra escravizada por conta de programas como o Bolsa Família.


É impressionante como os setores mais conservadores do Brasil têm a capacidade de nos surpreender. Embora essa surpresa resida numa constatação muito simples: a permanência de uma percepção de mundo baseada na desigualdade, que defende que pobre é pobre e que é assim que deve ser tratado. E que, se esse pobre for preto e nordestino, o tratamento deve ser ainda pior.

Segundo os relatos obtidos, a promessa de salários superiores a R$ 3 mil (com alimentação e acomodações pagas) se converteu numa escala extenuante de 15 horas de trabalho, comida estragada, intimidação, impossibilidade de sair do alojamento em que estavam instalados, aquisição de dívidas, e castigos corporais – estes parcialmente modernizados: além dos espancamentos de sempre, o chicote deu lugar ao spray de pimenta e a choques elétricos.

Infelizmente essa não é a primeira nem será a última vez na qual homens e mulheres são resgatados em condições análogas à escravidão no Brasil. No caso das vinícolas do Rio Grande do Sul, o Centro de Indústria, Comércio e Serviço que as representa nos lembrou que o problema é historicamente constituído.

Ao ler a nota que tenta justificar o injustificável, foi quase automático traçar um paralelo entre o CIC-BG e o Centro de Lavoura e Comércio (CLC), fundado no século 19 e que tinha entre seus principais participantes os maiores cafeicultores do país.

O CLC teve uma série de atuações, sendo um dos principais financiadores dos estandes brasileiros nas Exposições Universais a partir de 1881. Mas não era patriotismo ingênuo que fomentava as ações do CLC. Tais financiamentos tinham por objetivo defender perante o mundo que a lavoura era o futuro do Brasil (sobretudo a produção cafeeira). E que o Brasil da década de 1880 havia se modernizado: embora a produção agrícola continuasse usando mão de obra escravizada (disso eles não abriam mão), agora os homens e mulheres negros e escravizados trabalhavam de forma ordenada e asséptica.

É preciso dizer que, quando o CLC assumiu os estandes brasileiros nas Exposições Universais, o Brasil era a única nação soberana das Américas a manter a escravidão (Cuba e Porto Rico ainda eram colônias espanholas nesse período), num contexto em que o movimento abolicionista brasileiro ganhava uma capilaridade que já apontava o fim da escravidão como "uma questão de tempo" (e obviamente de luta da população negra).

Pois é, mais de 140 anos separam as ações desses dois centros brasileiros ligados à promoção da lavoura nacional. Foram 140 anos marcados pela abolição da escravidão, pela instauração da República e uma série de transformações sociais. E, mesmo assim, a defesa da escravidão (ou a desculpa esfarrapada perante a constatação de trabalho análogo à escravidão) segue sendo um ponto de união entre ambos os centros.

Ainda que precisemos conhecer e reconhecer as ações dos órgãos públicos que trabalham no resgate de pessoas em condições de escravidão, muito deve ser feito. A sociedade civil precisa estar atenta à todas as empresas que fazem uso do trabalho escravo e simplesmente deixar de consumir os seus produtos.

Cassação de licenças e multas volumosas também são ações esperadas dos governos estaduais e federal, que não podem relativizar situações como essa. Situações que, vale dizer, são criminosas e devem ser tratadas como tal (juridicamente falando).

Também é fundamental salientar a importância das políticas públicas de redistribuição de renda, aquelas que muitas vezes são chamadas de "assistencialistas". Num Brasil propositadamente desigual, essas políticas garantem o mínimo de dignidade a cidadãos, permitindo que eles e elas possam ter alguma margem de negociação de suas condições de trabalho.

Mas também precisamos falar e conhecer mais a história da escravidão brasileira, sobretudo a sua dimensão institucional. Entender por que ela perdurou por tanto tempo; compreender a quais interesses ela serviu; localizar quem lucrou com a escravização de milhares de homens e mulheres negros – para, assim, julgar e condenar quem continua lucrando com a escravidão.

Oremos por Anderson Torres. Cumpra-se a vontade do Senhor

Preso há mais de 100 dias em um batalhão da Polícia Militar, no Guará, o ex-ministro Anderson Torres, da Justiça, chora, emagrece e fala em se matar, enquanto sua família vai à missa em ação de graças por sua vida e saúde e pede que orem por ele.

Na Paróquia do Sagrado Coração de Jesus, no Jardim Botânico, o religioso Rogério Soares, conhecido como Frei Chico, diante dos pais e de amigos de Torres, proclamou neste domingo (30):

— Anderson é nosso, não é só filho de vocês, mas é filho de todos, é filho do Brasil.

Estavam entre os que assistiram à missa a senadora Damares Alves (Republicanos-DF) e o ministro Ives Gandra Martins Filho, do Tribunal Superior do Trabalho.


Acaba no início desta semana o prazo dado pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, para que o governo do DF informe se a vida de Torres corre perigo.

Se a resposta for sim, Moraes quer saber se Torres deveria ser transferido para um hospital penitenciário. Imagina-se que sob guarda policial , ele não tenha como se matar em lugar algum.

Verdade que o Exército, em outubro de 1975, disse que o jornalista Vladimir Herzog enforcou-se em uma de suas dependências. Herzog foi torturado e morto. O país vivia sob uma ditadura.

Torres tem comido pouco, é fato, mas isso não chega a caracterizar uma greve de fome. Quanto à depressão que enfrenta, é um estado comum à maioria dos presos. Não há preso feliz.

A CPI do Golpe começará a funcionar em breve. Torres será um dos primeiros nomes a ser convocado para depor. É tudo o que não querem os amigos bolsonaristas, muito menos do jeito que ele está.

Ninguém depõe em uma CPI sem ter sido treinado. Torres poderá depor munido de um habeas-corpus que lhe garanta o direito de ficar calado. Mas, só ouvir as perguntas já é muito desgastante.