sábado, 8 de fevereiro de 2020

Pensamento do Dia


Pandemía do arbítrio representa ameaça maior que o agente biológico do coronavírus

A China isolou uma dúzia de metrópoles, 30 ou 40 milhões de habitantes, da província de Hubei. As “medidas extraordinárias diante de um desafio extraordinário”, na descrição elogiosa da Organização Mundial da Saúde (OMS), seriam política e legalmente impossíveis em nações democráticas.

Os EUA proibiram a entrada de estrangeiros que passaram recentemente pela China —e receberam (justas) críticas do regime chinês e da OMS.

Um vírus novo, misterioso, ameaçador entrou na circulação sanguínea de uma tirania totalitária e de um governo xenófobo. A pandemia do arbítrio representa ameaça maior que o agente biológico da doença.

Conceitualmente, o gesto americano não se distingue da “medida extraordinária” chinesa. Se Xi Jinping colocou em quarentena uma província inteira, por que Donald Trump não teria razão ao impor quarentena a um país inteiro? A OMS, que cumpre funções úteis, é um órgão político. Sua glorificação do confinamento compulsório em massa reflete o objetivo de, finalmente, ser admitida como parceira do regime chinês.

Até o momento, o coronavírus provocou menos de mil óbitos, quase todos na China. Segundo estimativas do Centro de Controle de Doenças dos EUA, 8.400 americanos morreram de influenza sazonal só na metade inicial deste inverno. A taxa de letalidade da epidemia de Sars (2002-2003) foi de 9,6%.

Na atual epidemia, estimativas iniciais apontam 2%, uma taxa que cairá bastante pois o número de infecções é fortemente subestimado. No fim, talvez revele-se menor que a das gripes comuns. A política, não a epidemiologia, guia as reações da China e dos EUA.


Do fracasso no combate à Sars, o regime chinês extraiu a decisão de que a humilhação jamais se repetiria. “O coronavírus é um teste do sistema chinês e de sua capacidade de governo”, proclamou Xi Jinping.

Por isso, depois de perseguir o médico que identificou as primeiras manifestações do vírus, o aparato de controle social moveu-se na direção contrária, para proteger a sacrossanta imagem da China. O isolamento de Hubei não evita a difusão do vírus, mas mostra que o Grande Irmão pode tudo.

O hospital erguido em dez dias figurou na mídia mundial como campanha de propaganda do regime totalitário. Enquanto as escavadeiras operavam, centenas de milhares de chineses gripados interpretavam o sentido da mensagem oculta e enfileiravam-se diante de hospitais, intercambiando vírus diversos.

O sistema de saúde de Hubei inclina-se quase exclusivamente para o combate ao coronavírus. Nessas semanas, quantos chineses morrem, por falta de atendimento adequado, de outras moléstias?

“Leprosos” —é assim que a China classifica tacitamente todos os residentes de Hubei. Assim, também, os EUA classificam implicitamente todos os chineses —mas não apenas eles. Sob justificativas genéricas de segurança nacional, Trump baniu, em 2017, a entrada de cidadãos de sete países e, agora, adiciona seis países à lista negra.

O coronavírus não é um ebola. O banimento de chineses não deriva do saber científico: funciona como “normalização” da xenofobia.

A quarentena interna de Hubei e a quarentena externa da China cobrarão um preço econômico incalculável, deprimindo a expansão do PIB chinês e, por consequência, do PIB global. Vida é, antes de tudo, emprego e renda. Qual é o impacto das “medidas extraordinárias” na mortalidade difusa, ao longo do tempo?

O coronavírus não pode ser tratado como algo insignificante pois talvez seja transmitido por indivíduos assintomáticos. A saúde pública exige políticas específicas de contenção: quarentenas focalizadas, restrições de aglomerações, suspensões localizadas de atividades produtivas.

China e EUA preferiram, porém, o caminho do arbítrio estatal ilimitado. O pânico, a histeria servem a Xi Jinping e Trump. Você conhece algum “inimigo do povo” mais perfeito que um vírus?
Demétrio Magnoli

E na ditadura Vargas....

Também, na época, nazistas faziam fogueira com livros
Aos dezenove dias do mês de novembro de 1937, em frente à Escola de Aprendizes Marinheiros, nesta cidade do Salvador e em presença dos senhores membros da comissão de buscas e apreensões de livros, nomeada por ofício número seis, da então Comissão Executora do Estado de Guerra, composta dos senhores capitão do Exército Luís Liguori Teixeira, segundo-tenente intendente naval Hélcio Auler e Carlos Leal de Sá Pereira, da Polícia do Estado, foram incinerados, por determinação verbal do sr. coronel Antônio Fernandes Dantas, comandante da Sexta Região Militar, os livros apreendidos e julgados como simpatizantes do credo comunista (...)

Tendo a referida ordem verbal sido transmitida a esta Comissão pelo sr. Capitão de Corveta Garcia D'Ávila Pires de Carvalho e Albuquerque e a incineração sido assistida pelo referido oficial, assim se declara para os devidos fins.

Os livros incinerados foram apreendidos nas livrarias Editora Baiana, Catilina e Souza e se achavam em perfeito estado.

Por nada mais haver, lavra-se o presente termo, que vai por todos os membros da Comissão assinado, e, por mim segundo tenente intendente naval Hélcio Auler, que, servindo de escrivão, datilografei. (assinados)

Luís Liguori Teixeira, Cap. Presidente (Ata ordenando a queima de livros em Salvador)

Um secretário de Educação absolutamente inadequado

Rondônia foi premiada com um secretário de Educação que é uma figura extraordinária! Você, leitor, leu a lista de livros que ele queria que fossem recolhidos das escolas estaduais? Ainda bem que algum funcionário mais atilado percebeu que aquela lista era uma bofetada no país!

Com o argumento de que os livros listados tinham conteúdo inadequado às crianças e adolescentes, o secretário Suamy Vivecananda Lacerda de Abreu não teve pejo em incluir em seu memorando livros como “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Os Sertões”, duas das maiores obras literárias assinadas por brasileiros!

Curiosamente, o secretário, apesar de confirmar a existência do documento, declarou que o mesmo não passava de um rascunho! Segundo o secretário, foram técnicos que redigiram o “rascunho” cujo teor ele não aprova, apesar de tê-lo assinado. Mais curioso ainda: para defender os técnicos, o secretário disse que eles foram levados a agir devido a uma denúncia que os livros continham palavrões!

Gostaria que o senhor Lacerda de Abreu mostrasse em qual capítulo, em quais páginas tanto de “Os Sertões” quanto de “Memórias Póstumas”, seus honoráveis técnicos encontraram palavrões.

O mesmo digo de “O Processo”, de Franz Kafka e de "Contos de terror, de mistério e de morte”, de Edgar Allan Poe, dois clássicos da literatura universal que também figuravam na lista da secretaria.

Segundo a indefectível lista, 19 livros de Rubens Fonseca, 8 de Carlos Heitor Cony e 3 de Nelson Rodrigues também deviam ser recolhidos. Bem, nesses podemos encontrar, aqui ou ali, palavras de baixo calão que não destoam. e sim enriquecem, o tema escolhido pelo autor. São livros que só honram nossa literatura. Mas cá pra nós, seria o caso desses livros serem adotados por escolas básicas?

Francamente, senhor secretário Suamy Vivecananda Lacerda de Abreu. Parece que tudo em sua secretaria deve ser revisto. A começar pela escolha dos técnicos.

A lista, ainda bem, foi cancelada e os livros nela contidos não serão recolhidos. Torço para que façam parte da Biblioteca Pública Estadual de Rondônia.

Nem por isso a notícia deve ser ignorada. Ao contrário, devemos falar muito nela, para que nunca mais isso se repita, em nenhuma Secretaria de Cultura de nenhum estado brasileiro.

O guarda da esquina

O caso é conhecido e já entrou para a história política brasileira. Em 13 de dezembro de 1968, o governo Costa e Silva decretou o Ato Institucional 5, e na reunião ministerial, o único voto contrário foi do vice-presidente Pedro Aleixo, que alegou, premonitoriamente: “o problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país. O problema é o guarda da esquina”.

A censura a livros em Rondônia é o típico caso de o guarda da esquina sentir-se autorizado a cometer abusos de autoridade, não mais pelo AI-5, revogado ainda na ditadura militar com Geisel, mas pelo exemplo do ministro da Educação e do próprio presidente Jair Bolsonaro.

Não se pode dizer que há uma ordem direta deles para que atitudes desse tipo sejam tomadas, mas palavras do líder são levadas a sério pelos liderados mais afoitos ou com menos bom senso.

A mesma coisa aconteceu com o meio-ambiente. O ex-presidente do Instituto Nacional de Pesquisas (INPE) Ricardo Galvão, em pleno debate sobre o aumento do desmatamento na Amazônia, disse que não tinha dúvidas de que foi a leniência do governo Bolsonaro com o desmatamento que fez com que ele crescesse no primeiro ano de governo. As críticas de Bolsonaro às ONGs que defendem a Amazônia também teriam dado respaldo aos grileiros que atuam na região.

O “guarda” no momento na Prefeitura do Rio, bispo Crivella, já censurou histórias em quadrinhos com beijo gay, alegadamente para proteger nossas crianças. Quando ainda era próximo politicamente do governo Bolsonaro, o “guarda” governador de São Paulo João Dória mandou recolher uma cartilha com material escolar de ciências para alunos do 8º ano do Ensino Fundamental da rede estadual.

A cartilha tratava de conceitos de sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual. Também trazia orientações sobre gravidez e doenças sexualmente transmissíveis. As duas decisões foram revogadas pela Justiça.

O “guarda” no governo de Rondônia, Coronel Marcos Rocha (PSL), ex-chefe do Centro de Inteligência da PM do Estado e ex-secretário de Educação de Porto Velho, mandou recolher dezenas de livros das bibliotecas das escolas públicas, entre eles clássicos da literatura brasileira como “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, “Os Sertões” de Euclydes da Cunha, e “Macunaíma”, de Mario de Andrade.

Também estava querendo proteger nossas crianças e adolescentes de “conteúdos inadequados”. Alegadamente, a decisão foi tomada por um técnico sem a autorização do secretário de Educação, Suamy Lacerda de Abreu. O memorando incluía 43 livros de autores brasileiros e estrangeiros, que deveriam ser devolvidos pelas escolas ao Núcleo do Livro Didático da secretaria estadual da Educação.

A medida, como não poderia deixar de ser, provocou protestos de instituições regionais, como a OAB de Rondônia, e nacionais, como a Academia Brasileira de Letras (ABL), que tem como missão a defesa da cultura nacional. Eis a nota:

“A Academia Brasileira de Letras vem manifestar publicamente seu repúdio à censura que atinge, uma vez mais, a literatura e as artes. Trata-se de gesto deplorável, que desrespeita a Constituição de 1988, ignora a autonomia da obra de arte e a liberdade de expressão.

A ABL não admite o ódio à cultura, o preconceito, o autoritarismo e a autossuficiência que embasam a censura. É um despautério imaginar, em pleno século XXI, a retomada de um índice de livros proibidos. Esse descenso cultural traduz não apenas um anacronismo primário, mas um sintoma de não pequena gravidade, diante da qual não faltará a ação consciente da cidadania e das autoridades constituídas”.

São tantas as críticas do governo, e do próprio Bolsonaro, à cultura, são tantas as referências ao que denominam esquerdização na literatura, no cinema, no teatro, tantas denúncias de supostas imoralidades, que os guardas da esquina estão se sentindo empoderados pelos novos tempos.

O bendito teto

Em 2019, sete dos oito órgãos que compõem o Poder Judiciário e os dois que constituem o Ministério Público romperam o teto de gastos em R$ 2,450 bilhões. A infração não acarretará sanções, já que o excedente foi compensado pelo Executivo, mas revela a falta de compromisso do Poder Judiciário e do Ministério Público em relação ao equilíbrio das contas públicas. A partir deste ano, contudo, esse compromisso terá de ser assumido a gosto ou contragosto, uma vez que os demais Poderes não poderão contar com o Executivo para cobrir seus excessos.

O Poder Judiciário executou R$ 2,36 bilhões acima do teto. O maior estouro foi o da Justiça do Trabalho, que gastou R$ 1,63 bilhão além do seu limite. Em seguida vieram a Justiça Federal (R$ 514 milhões), Justiça Militar (R$ 97 milhões), Justiça do Distrito Federal (R$ 80 milhões), Supremo Tribunal Federal (R$ 70 milhões), Justiça Militar da União (R$ 6,62 milhões) e Conselho Nacional de Justiça (R$ 3,8 milhões). Além disso, o Ministério Público da União ultrapassou o teto em R$ 90,05 milhões.

Os tetos foram estabelecidos em 2016 pela Emenda Constitucional 95, que prevê os limites de gastos para os próximos 20 anos. Nos últimos três anos eles foram sistematicamente rompidos. Ocorre que a Emenda previu uma regra de transição, pela qual o Executivo poderia compensar os excessos até 2019. A partir deste ano, contudo, os Poderes precisarão se enquadrar aos seus respectivos tetos, caso contrário serão proibidos de conceder reajustes, criar cargos, alterar estruturas de carreira, contratar pessoal e realizar concursos públicos.


Em média, 85% dos gastos desses órgãos são com pessoal e seus benefícios (auxílio-saúde, moradia, alimentação, etc.). Tudo somado, as despesas obrigatórias perfazem 89% dos gastos. Os 11% restantes cobrem infraestrutura (luz, limpeza, manutenção, etc.), além de investimentos em inovação e outras despesas discricionárias. É sobre elas que recairão os cortes, com o risco de prejudicar a prestação de serviços à população.

Segundo projeções da Instituição Fiscal Independente do Senado, em 2020 o Ministério Público precisará reduzir cerca de 10% dos seus gastos discricionários e o Judiciário quase 6%. Mas alguns órgãos precisam realizar cortes particularmente dramáticos. A Justiça do Trabalho, por exemplo, precisa reduzir em quase 40% seus gastos não obrigatórios. Como essas estimativas foram feitas em meados de 2019, quando a expectativa de quebra do teto era menor, os cortes devem ser ainda maiores. Para ter uma ideia, à época previa-se que a Justiça do Trabalho estouraria o teto em R$ 1,119 bilhão. Na prática, o estouro foi de R$ 1,63 bilhão.

Este desrespeito sistemático da Justiça em relação aos limites impostos pela Constituição evidencia a necessidade de reformar amplamente a máquina pública. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 186/19, não à toa denominada PEC Emergencial, é essencial para se garantir o cumprimento dos dois principais dispositivos constitucionais de equilíbrio fiscal: o teto de gastos e a “regra de ouro”, segundo a qual o governo não pode “realizar operações de crédito que excedam o montante de despesas de capital” (art. 167, III). A PEC, em tramitação no Congresso, autoriza o corte de despesas obrigatórias, a principal ameaça ao cumprimento do teto, sempre que a despesa corrente superar 95% da receita corrente.

Além disso, é indispensável para a sustentabilidade do Estado a implementação de reformas administrativas que adaptem o serviço público às necessidades e contingências do tempo presente, a começar pela eliminação de privilégios, em especial os acumulados pela sua elite, justamente o Judiciário e o Ministério Público. Entre 2013 e 2018, enquanto a massa salarial dos empregados do setor privado encolhia 0,7%, os vencimentos e benefícios dos agentes públicos cresceram 12%. Em boa hora vem se impor sobre suas cabeças este teto, forçando-os a pôr os pés no chão.

Brasil da Besta


Coronavírus no Planalto

Jair Bolsonaro pode até agradar e ser paparicado por aquela parcela de eleitores que o apoia até mesmo quando ele ataca homossexuais e enaltece torturadores. Mas cresce de modo contínuo uma outra parte que prefere dele não se aproximar. Primeiro foram os policiais que, irritados com a reforma da Previdência, o chamaram de traidor. Depois, a turma do agronegócio começou a se afastar para não ser contaminada pela pauta contra-ambiental do presidente. Inúmeros parlamentares e governadores, que foram eleitos na sua onda, hoje não querem aparecer ao seu lado em razão de seu estado de permanente beligerância.

Na semana passada, Bolsonaro recebeu no Planalto alguns músicos sertanejos, e sua assessoria divulgou uma lista acrescida de 22 nomes que não estiveram presentes. Foi uma gritaria. Justamente os mais importantes, como Bruno e Marrone e César Menotti e Fabiano, mandaram avisar que não foram ao beija-mão. Muitos não estão mais dispostos a associar suas imagens à errática política cultural do presidente. Pode parecer bobagem, mas não é. Os sertanejos se associaram a Bolsonaro desde cedo, ainda na campanha, em razão de sua raiz no interior do país e pela proximidade com o agronegócio.

Mesmo entre os músicos dos grandes centros sem viés ideológico há um contingente de profissionais cada vez incomodado com o governo que se lixa para a cadeia produtiva da música. São milhares de pessoas que vivem, alimentam suas famílias, colocam seus filhos nas escolas, pagam impostos, contribuem com a Previdência e que têm suas pautas ignoradas pelo governo. Um grupo do Rio fracassou quando tentou organizar uma comitiva para ir a Bolsonaro fazer lobby contra a Medida Provisória que isenta hotéis de recolher direitos autorais em seus quartos.


Ancestralmente próximos do capitão, os garimpeiros também ameaçam pular fora. Dizem que estão sendo perseguidos pelo governo que lhes prometeu apoio. Nem o projeto que autoriza mineração e geração de energia em terra indígena os anima. Segundo líderes garimpeiros, em algumas reservas a mineração se dá em acordo com líderes tribais há quase meio século. O projeto apresentado na terça-feira, segundo eles, vai ser bombardeado e pode atrapalhar os garimpos que hoje funcionam com o aval e a participação de comunidades indígenas.

Os garimpeiros dizem que os índios mundurucus, do Amazonas, convivem com eles há quatro décadas e participam da mineração com dragas próprias. As maiores reservas de diamante no Brasil ficam nas terras dos índios cinta largas, entre Rondônia e Mato Grosso, que as exploram. Os caiapós-xicrins, de Tocantins, estão no garimpo há 30 anos e têm aviões e maquinário próprio, além de gado e área de pastagem. Eles citam também garimpos tucanos, na fronteira com Colômbia e Venezuela, e macuxis, da reserva Raposa Serra do Sol. O que eles queriam era a regularização dessas reservas, mas a fiscalização do governo ignora os entendimentos e parte para cima deles “com virulência”, reclamam os garimpeiros.

A proposta de Bolsonaro incomoda os três lados da questão. Irrita ambientalistas, que enxergam no projeto carta branca para a degradação das reservas; aos índios, que perdem a autonomia sobre seu território; e aos garimpeiros, que temem que a chancela de Bolsonaro crie mais dificuldades do que resultados positivos. Na apresentação do projeto, Bolsonaro reconheceu que o texto vai ser objeto de ataques de ambientalistas. E disse: “Se puder, confino os ambientalistas na Amazônia”. Dá para entender por que tanta gente quer distância.


Expo de armas
A Tabacaria Africana, uma das mais tradicionais charutarias do Centro do Rio, permitiu que se realizasse nos seus salões uma reunião, aparentemente ilegal, de donos de armas. Um frequentador chegou ao local, num sábado à tarde, há cerca de um mês, e se deparou com um grupo de cerca de 20 homens que expunham suas armas sobre as mesas da tabacaria. Esses homens manipulavam as armas, comparavam umas com outras, parecia que negociavam entre eles. O charuteiro de fim de semana que viu a cena não pôde garantir se eles comercializavam ou apenas exibiam suas armas, porque, assustado, se mandou do lugar rapidinho.

Política Tributária
Já se viu de tudo na formulação do emaranhado de impostos que assombra o Brasil, mas fazer política tributária na porta do Palácio da Alvorada, empurrado por um grupo de adoradores que vai lá apenas para bater continência ao presidente, foi a primeira vez.

Privatizar a Cedae
São inúmeras as razões que pode-se listar em favor da privatização da Cedae, mas uma delas é imbatível e ficou cristalina (ao contrário da água que a empresa fornece) com a crise de abastecimento atual. Se associações de moradores do Rio se reunissem e movessem uma ação contra a Cedae, e a Justiça obrigasse a empresa a indenizar os usuários pela péssima qualidade do serviço prestado, quem iria pagar a conta? Pois é, seríamos você, eu e todos os nossos vizinhos. A conta seria paga pelo contribuinte fluminense. Pagaríamos para nós mesmos. Agora, se a Cedae pertencesse a um desses megaempresários chineses ou a uma grande empresa privada brasileira, a conta da indenização pelo desastre não seria de nossa responsabilidade. Embora os cidadãos do Rio nada tenham a ver com a má gestão da empresa, a responsabilidade pecuniária pelo desastre hoje é deles. É nossa.

Boa medida
Não era necessário esperar tanto, mas, enfim, parece estar saindo do papel projeto que acaba com a reserva de mercado para empreiteiras brasileiras sobre as obras públicas de infraestrutura. Em março, o megaescândalo que expôs a rede de corrupção das empreiteiras brasileiras completa seis anos, e a Odebrecht e companhia ainda hoje têm exclusividade sobre obras nacionais. As estrangeiras só podem operar no Brasil se tiverem filiais nacionais.

Prerrogativas
As prerrogativas de foro foram criadas ainda na Grécia antiga para proteger a função pública e garantir a punição em instância superior de crime praticado pela pessoa que a ocupe. Aos poucos o foro especial virou foro privilegiado e no Brasil é sinônimo de impunidade. Por aqui, onde já vimos quase tudo, surgiu um novo caso, o do deputado Wilson Santiago (PTB-PB). O parlamentar, que se apropriou de R$ 1,2 milhão dos cofres públicos, foi mantido na função pelos seus pares na Câmara, apesar de seu afastamento ter sido determinado pelo ministro Celso de Mello. PT, PCdoB, PSOL, MDB e DEM votaram a favor de Santiago. Pois é.

Hospital em Dez dias
Na China, o governo chinês ergueu um hospital em dez dias para atender as vítimas do coronavírus, que já matou mais de 500 pessoas. No Brasil, onde 754 pessoas morreram por dengue no ano passado, os hospitais estão sendo destruídos há dezenas de anos.

Vampiro, fora
Não foram necessários crucifixos, dentes de alho e estacas de madeira. Bastou um peteleco de um senador para que o deputado Luiz Vampiro (MDB-SC) desistisse da cadeira de líder do governo na Assembleia de Santa Catarina. O que está por trás disso é uma guerra entre o governador-bombeiro Carlos Moisés e os filhos do presidente Bolsonaro (eles outra vez). O fato é que Vampiro estava fechando com o governador desafeto dos meninos quando lhe cortaram as asinhas.

Piromania à vista!

A aversão a livros é uma patologia perigosa. Esse tipo de moléstia exige reação vigorosa. Sob pena de assistirmos a uma escalada de restrições em que nem o catálogo telefônico estará a salvo da crítica literária de autoridades de plantão.
 
O brasileiro se espanta cada vez menos. É como se as pessoas suprimissem dos seus hábitos o ponto de exclamação. Perde-se a noção da importância do espanto. Mas há ocasiões em que o horror é essencial à preservação da sanidade
Josias de Souza

Voltem lá, idiotas, e proíbam a poesia

Voltem lá, idiotas, e recolham também os livros mais perigosos de todos. Vocês esqueceram de botar na lista de proibidos os versinhos falso-inocentes que se escondem por dentro dos livros de poesia. São os piores. Falam de amor - mas não enganam mais ninguém. Todos devassos, perversos e, de redondilha em redondilha, estão imbuídos apenas do projeto internacional de acabar com a família brasileira. Mais adiante, aguardem, vão tomar posse da Amazônia.

Vamos acabar com Machado de Assis e também com o Carlos Heitor Cony, todos realmente perigosíssimos para a formação da juventude brasileira. À fogueira com eles. Mas quem foi que esqueceu de prender o decassílabo heroico, de colocar na lista de excomungados didáticos o Manuel Bandeira, aquele pernambucano que sugeriu ir todo mundo para o vale-tudo da cama do rei em Pasárgada?


Voltem lá, idiotas, e não deixem o soneto dar a cara nas escolas porque ele é tão perigoso quanto um conto do Rubem Fonseca e em cada um dos seus versos há também o estímulo mais irresponsável ao sexo na adolescência. O Macunaíma preguiçoso do Mário de Andrade, a bonitinha mas ordinária do Nelson Rodrigues – são personagens que de fato não ajudam a construir um novo país, e fazem muito bem em estar na lista de proibidões. Mas quem não viu o mal cívico que se esconde nas pedras e mais pedras que o Carlos Drummond de Andrade jogou pelo caminho? Subversivamente, elas estimulam uma trava no progresso e não torcem para que o país vá em frente. O Brasil já tirou os pardais das estradas, vai tirar essas pedras da poesia também.

O único poeta na lista de 43 malditos foi Ferreira Gullar, mas o maranhense escancarou suas intenções já no título do livro – “Poema sujo”. Falta gente na fogueira. Fabrício Carpinejar, Elisa Lucinda, Olavo Bilac. Há muitas gerações o poeta é um notório fingidor. Foi um deles que disse, “é capaz de fingir tão completamente que finge ser dor o que deveras sente”. Não se deve acreditar neles. Por isso, ouçam esta voz de comando e voltem lá, seus idiotas. Prendam todo o Mário Quintana, um velhinho desses, de índole songamonga, que usa da falsa ingenuidade para propagar o ódio. Foi ele que um dia, sobre os que lhe atravancavam o caminho, escreveu revoltado: “eles passarão/eu passarinho”.

É muita poesia para uma hora dessas e o Brasil não tem tempo, precisar minerar as terras indígenas. Voltem lá, cretinos. Façam uma lista só de poetas. Impeçam Murilo Mendes de continuar dizendo que “o mundo começava nos seios de Jandira”, quando todos sabem que a Terra agora é plana. Não se esqueçam de Vinicius de Moraes, Oswald de Andrade, João Cabral de Melo Neto e demais destruidores da pátria nacional. Morte aos alexandrinos, decassílabos sáficos e todos os que praticam rimas parnasianas, modernistas e afins.

A poesia é o inimigo que se esconde atrás das nuvens, usa flores e corações para passar ideias que nem ela sabe direito quais são. Perigosíssima. Propaga pelas palavras um contágio de imaginação e liberdade que quarentena nenhuma segura. À fogueira com ela e seus despropósitos. Depois, só depois, cuidem do coronavírus.

O bolsonarismo autofágico

Na mitologia grega, Urano, deus supremo surgido após o caos, uniu-se a Gaia para gerar uma descendência. Porém, temeroso da traição dos filhos, os Titãs, enterrou-os no ventre da esposa. “Aqui mando eu e ninguém mais!”, dizia. Gaia, farta da tirania, propôs a um dos filhos, Cronos, que depusesse Urano e governasse o universo. Munido da foice dada pela mãe, Cronos castrou o progenitor e imperou sobre seu sangue.

Cronos, como o pai, bradava: “Aqui mando eu e ninguém mais!”. Sabendo que teria filhos, virtuais traidores, ordenou à mãe, Reia, que lhos entregasse para os devorar, um a um. Desse fado se salvou apenas Zeus, que a mãe ardilosamente substituiu por uma pedra, engolida sem que o genitor notasse. Mais tarde, também Zeus se voltou contra o pai, fê-lo regurgitar os irmãos e, ao lado deles, expulsou Cronos - que retornaria para a fatídica guerra dos Titãs, quando foi derrotado pelos deuses do Olimpo e enviado novamente às profundezas - desta feita não por seu pai, mas por seu filho.

A paranoia conspiratória desgraçou deuses, suscitando ressentimento e vingança. Cronos acreditou escapar do destino infligido ao pai, devorando os filhos. Não contava, porém, com o embuste da esposa, que lhe custou a derrota. Não é mesmo possível controlar tudo; mais sábio é não cevar inimigos, mormente dentre os tão próximos.



O Brasil também tem seu mito. Como deuses gregos, Bolsonaro alimenta paranoias conspiratórias sobre traições, sendo levado a devorar não os filhos (ao menos por ora), mas todo e qualquer aliado visto como ameaça. O problema das paranoias é que sugerem perigos até quando não existem, gestando inimigos onde havia amigos, atraindo mágoa e desforra. Assim, geram profecias autocumpridas, em que o oponente imaginário é transformado em antagonista real por ações que a imaginação provoca.

Ao final de janeiro, perícia da Polícia Federal atestou que mensagens depreciativas sobre o presidente, atribuídas em maio de 2019 ao general Carlos Alberto dos Santos Cruz, foram forjadas. Embora a prudência recomendasse suspeitar disso desde o princípio, Bolsonaro cismou com seu secretário de Governo, preferiu crer na montagem e, incitado pela prole, despachou o general.

Ainda em janeiro, outro capítulo das altercações entre presidente e ministro da Justiça. Cabreiro com a popularidade e as ambições de Sergio Moro, Bolsonaro ensaiou mutilar o ministério em prol do qual o ex-juiz abandonou a carreira de magistrado, seduzido pelo poder que teria ao acumular as atribuições de segurança pública. Percebendo que o passo em falso poderia não apenas lhe enfraquecer, mas robustecer ainda mais o subordinado-aliado-adversário, Bolsonaro recuou. Ato contínuo, voltou-se a discutir a indicação de Moro para o Supremo Tribunal Federal. Não que ministros do STF estejam impedidos de ingressar na política eleitoral, deixando a corte (e talvez a usando como novo trampolim), mas é uma aposta que o presidente pode arriscar.

Embora as escaramuças com Moro ocorram desde o início, com o presidente volta e meia lhe desautorizando com a frase dos deuses paranoicos - “Quem manda sou eu!” -, os conflitos intestinos do bolsonarismo vão além disto. Antes mesmo da posse, o aliado de primeira hora, Magno Malta, foi escanteado na formação da equipe. Com menos de dois meses de gestão, foi-se Gustavo Bebianno, estrategista principal das articulações eleitorais do mito, defenestrado da Secretaria-Geral da Presidência por estímulo do filho 02, Carlos.

Bebianno foi o primeiro membro do gabinete a cair pela teia de intrigas, mas não o último enredado por ela. Além do já mencionado Santos Cruz, quatro meses depois, também o vice-presidente, Hamilton Mourão, virou alvo constante das invectivas de Bolsonaro e filhos - ao ponto de ter em novembro o presidente dito ao “príncipe”, Luiz Phillippe de Orleans e Bragança, que o vice deveria ser ele, “e não esse Mourão aí”.

Em meio a tais confusões, Bolsonaro se viu às turras com o PSL, partido pelo qual se elegeu. Menos de dois meses após a agremiação dirigida por Luciano Bivar ter expulsado por unanimidade mais um neodesafeto presidencial, Alexandre Frota, o servil Bivar virou alvo, pois estaria “queimado pra caramba”. Deflagrou-se acirrada disputa pelo controle da legenda (com seus polpudos recursos), culminando na saída de Bolsonaro para criar sua (e só sua) Aliança pelo Brasil.

Vale notar que, além de Bivar, um dos que celebraram a expulsão de Frota foi o outrora aliado, senador Major Olímpio. Porém, no meio tempo, também Olímpio se desentendeu com a família presidencial - 01, 02 e 03. E quem briga com os filhos vira desafeto do pai e é expulso do Olimpo. Ipso facto, a ex-líder do governo no Congresso, Joice Hasselmann, desgostosa com a expulsão de Frota, também se tornou desavinda da família - assim como tantos outros parlamentares do partido, dentre os quais o então líder do PSL, Delegado Waldir - que fez o gesto de pistolinha ao lado de Bolsonaro na assinatura do decreto das armas. Depois, jurou “implodir o presidente”, segundo Waldir, um “vagabundo”.

Outro imolado em público foi o outrora presidente do BNDES, Joaquim Levy. Após anunciar, em junho passado, que a cabeça do funcionário estava a prêmio, Bolsonaro afirmou: “Eu já estou por aqui com o Levy”. Um dia depois foi apresentada sua demissão e ele se juntou ao ex-presidente dos Correios, general Juarez Cunha, na lista de expurgados.

Na visão do chefão, Levy se negou a abrir a “caixa-preta do BNDES”. Para cumprir tão hercúlea missão, nomeou Gustavo Montezano, amigo de balada do filho 03, Eduardo. Pois que, após sete meses e R$ 48 milhões gastos na auditoria, o parça de 03 anunciou nada encontrar. Insatisfeito com a busca inútil, de que não desistia, Bolsonaro se referiu a Montezano como “o garoto lá”. Cronos, deus do tempo, já conta os dias do infante no cargo. Claro, sem esquecer de Onyx Lorenzoni, aliado de primeira hora, fritado como se fosse um hambúrguer do Eduardo, desmembrado como o Cavaleiro Negro de Monty Python - que não obstante, teima em lutar.
Cláudio Gonçalves Couto