sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Extremistas tem um feriadão aziago com Toffoli e delação de Mauro Cid

Que feriadão "aziago", lembrando o bardo, para as modalidades mais influentes da extrema direita nativa, que ambicionaram —e jamais desistirão; esse é seu "ethos"— tomar o poder por meio de golpe, seja conspirando contra o ordenamento legal, seja investindo na disrupção institucional. Perderam. E perderão sempre se nos mantivermos vigilantes. É o preço, sim, da liberdade.

Os reaças costumam evocar esse brocado a cada vez que se veem tolhidos no prazer perverso de humilhar os humilhados. Nas redes, um sujeito chegou a evocar um texto contra o nazismo, de autoria do pastor Niemöller, para acusar a perseguição aos super-ricos no Brasil. Como é mesmo? "Um dia, vieram e levaram meu vizinho judeu. Como não sou judeu, não me incomodei..."


O valente nos convidava, também aos superpobres, a reagir contra a cobrança de impostos das offshores e dos fundos exclusivos. Na cabeça dele, no que concerne à tributação, o governo Lula está para o nazismo como os nababos estão para os judeus, católicos e comunistas perseguidos. Os fascistoides e sonegadores, em tempos de redes sociais e de ignorância alastrante, exercitam um discurso de resistência. Entendo seu "patético momento", mas não me comovem.

"E o desconcerto e desconserto das direitas, Reinaldo?" Já chego. É preciso caracterizar minimamente o ambiente moral e ideológico acanalhado em que se movem esses patriotas, que se sentem sufocados pela democracia e pelo Estado de Direito. Bradava outro dia, contra o que vê como "censura de Xandão", um desses entusiasmados: "A liberdade é quase sempre a liberdade de quem pensa de modo diferente". Aí fiquei comovido. Citava a comunista Rosa Luxemburgo... É bem verdade que, nesse caso, ela estava contestando Lênin. Mas o bruto ignorava a autoria da frase —e também o resto.

Dada a metafísica dos patetas, vamos às personagens. Dias Toffoli, ministro do STF, fez o óbvio: anulou as chamadas "provas" que embasaram o acordo de leniência da Odebrecht em razão das múltiplas e estupefacientes ilegalidades cometidas pelo órgão acusador, em conluio com o julgador.

As evidências dos malfeitos estão no material colhido pela Operação Spoofing, determinada "de ofício" —e estamos nos esquecendo disto—, por Sergio Moro, então ministro da Justiça de Jair Bolsonaro. Ninguém produziu provas contra si mesmo com tanta determinação e competência. Imaginava destruir aquele conteúdo. Não se deu conta de que o hackeamento era, claro!, ilegal, mas não a sua apreensão, ordenada por ele mesmo. Eliminar provas é crime. O cara costuma ter um padrão, digamos, solipsista em matéria de língua e de direito...

E tonitruam os Catões da moralidade pública, inconformados com o que consideram os riscos de a Cartago petista destruir a Roma de que são patrícios: "A roubalheira não aconteceu? Está tudo apagado?". Os grupos até então mais perigosos formados no Brasil e que justificam o cometimento de crimes sob o pretexto de combater crimes eram as milícias e o esquadrão da morte. E a democracia repudia milicianos, ainda que em terninhos cafonas. Se o padrão de oposição ao PT não mudar, reeleições estão garantidas ao partido. Convém ler as pesquisas.

No front dos disruptivos, a má notícia diz respeito à delação de Mauro Cid, acordada com a Polícia Federal, que depende agora da homologação da Justiça. Alexandre de Moraes é o relator dos inquéritos em que o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro é investigado. A informação foi dada com exclusividade pela jornalista Andréia Sadi, do G1 e da GloboNews.

Com suas idas e vindas, parece que havia método na aparente maluquice de Cezar Bitencourt, defensor de Cid, para lembrar de novo o Shakespeare lá do primeiro parágrafo. A ver como se comportará a defesa de Bolsonaro. Já exibiu várias estratégias. Tendo muitas, não tem nenhuma.

"Mas que dia aziago [...], que tristeza!", lamenta a vanguarda do atraso, diante de suas ilusões mortas. Num outro palco, mas no mesmo drama, Lula liderou um Sete de Setembro em paz. E os Catões a roer os cotovelos do seu reacionarismo: "Ah, como eu odeio esse cara! Ele tem de ser destruído!". Os deserdados da Lava Jato e do "Capitão" perderam. Mas sejamos vigilantes. É o preço da liberdade.

Pensamento do Dia

 


Língua só pra números

Hoje estamos vivendo em um Brasil feio. Não gosto do Brasil em que vivo hoje.
Um Brasil que só fala de números. O Brasil vai bem porque a economia vai bem. Mas e nós, o povo? Nós estamos bem? Estamos seguros, respeitados? Estamos dignamente humanos? Temos uma escola boa, uma saúde boa? Temos uma segurança boa? O Brasil vai bem porque a economia vai bem. Mas e eu não conto? Sou apenas um número? Estudei na física que o planeta não tem nem luz própria. Olha que coisa terrível morar em um planeta que não tem nem luz própria. Estamos em uma periferia do cão. E para ter o dia e a noite você nem precisa de uma estrela de primeira grandeza. Uma estrela de quinta grandeza, como o Sol, serve. Resolve isso numa boa. E ainda temos alguma verdade para dizer? É só a dúvida que nos une, que nos aproxima. É só disso que precisamos. Precisamos de amparo com a nossa dúvida. E a literatura nos ampara. Tenho muito medo da verdade. Não acredito que haja nada verdadeiro. Tive um professor de filosofia, o padre Henrique Vaz, para quem eu perguntei “o que era a fé”. Ele me respondeu que a fé é a dúvida. Tem dias que você tem muita, tem dias que tem pouca, tem dias que não tem nenhuma. Isso se chama fé, porque nos é possível somente a dúvida. Hoje, estamos com muita gente encontrando a verdade. Quando uma pessoa encontra a verdade, a única coisa que ela adquire é a impossibilidade de escutar o outro. Ela só fala, não escuta mais. Quem encontra a verdade só fala.
Bartolomeu Campos de Queirós

Golpista, genocida ou ladrão?

Bolsonaro golpista, genocida ou ladrão —qual pagará primeiro? Os tribunais a que ele está respondendo ainda não decidiram a ordem em que será incriminado, donde, enquanto eles não chegam lá, é melhor marcar um palpite triplo. O importante é: qual desses crimes mais repercutirá entre os seus fiéis? O lance é livre, mas, antes de apostar, temos de distinguir entre os bolsonaristas. Eles se dividem em três grupos.

O primeiro é o dos cínicos, que sempre conheceram Bolsonaro e nada do que ele fizesse os surpreenderia. São os seus colegas de Brasília, para quem, com ele na Presidência, haveria dias prósperos pela frente. É também o de certos empresários, de quem Bolsonaro há muito se aproximara e que sabiam que, sob sua asa, podiam dispensar os escrúpulos. E de uma casta de policiais, operadores de dinheiro vivo, pequenos pilantras e a turma da pesada, capaz de valentias, queima de arquivos e execuções.


Um segundo grupo é o dos que desconfiavam que Bolsonaro não era flor que se cheirasse, mas o apoiaram na certeza de poder controlá-lo, de botá-lo sob a hierarquia. São basicamente os militares. Havia os ingênuos, que sabiam do seu prontuário de caserna e do que já fora capaz —insubordinação, baderna, terrorismo—, mas para quem, como presidente, ele não repetiria as indisciplinas de capitão e poria o país nos eixos, "como em 1964". E os gorilas assumidos, para quem Bolsonaro era a porta para a ansiada volta à ditadura, da qual o Brasil "nunca deveria ter saído".

E um terceiro grupo, o dos crédulos, bovinos e pascácios, que, por não o conhecerem, deixaram-se hipnotizar pela sua fantasia de vestal, viram-no como um enviado do divino e acreditaram que, com ele, seria o fim da roubalheira.

Os políticos não se alteram pelo Bolsonaro golpista e os militares se recusam a vê-lo como genocida. Mas os pascácios, com razão, não gostam de ladrões.

Algema ideológica

Os gregos chamavam de paideia a educação que seus cidadãos recebiam desde a infância para formar a mente de seu povo. A paideia brasileira forma nossas mentes para se acostumarem e conviver com a desigualdade social e para não perceberem que ela decorre da inequidade como a qualidade da escola é distribuída, conforme a classe social do brasileiro. O paradoxo da brasilidade é que para eliminar a brutal desigualdade social é preciso oferecer educação com a mesma qualidade para todos: implantar em todo o país um sistema único público. Para tanto, será necessário mudar o sentimento geral de aceitação da desigualdade que dribla as leis que tentam superá-la.


Quando, no século 19, o avanço técnico forçou a política a aceitar a Lei do Ventre Livre, a cultura entranhada foi mais forte do que a lei: negou escola aos recém nascidos. O filho da escrava foi solto, mas não libertado, por não dispor de mapa que lhe permitisse escolher um destino e conhecer o caminho. A falta da escola impôs uma algema invisível que driblou a lei. Anos depois, a Lei Áurea soltou os escravos, mas outra vez, negou-se escola para eles. Ficaram soltos, não livres. Ficou ilegal vendê-los ou compra-los. Mas, por falta de escolaridade, até hoje seus descendentes sociais se oferecem à escravidão moderna nas esquinas das cidades.

Foi preciso esperar até o século 21 para a política assegurar o direito à matrícula para todos, mas em escolas com qualidade diferente, implantando um sistema com “escolas senzala” e “escolas casa grande”. Porque matrícula não significa frequência todos os dias, nem assistência ao longo do dia; não representa permanência até o final da educação de base, o que não é sinônimo de aprendizado para formar o aluno no entendimento do mundo contemporâneo, dando-lhe o mapa necessário para facilitar sua busca de felicidade pessoal e para construir um país melhor e mais belo. Da mesma maneira que “soltar” não é “libertar”, “matricular” não é “ensinar”, e ensinar não é aprender. O resultado é que quase todos já se matriculam, mas poucos são alfabetizados plenamente para a contemporaneidade.

A lei da Abolição foi corrompida pela última trincheira da escravidão: a desigualdade da educação conforme a renda e o endereço da criança. Essa realidade social é aceita com naturalidade, inclusive pelos políticos progressistas. Até hoje, os descendentes sociais dos escravos levam algemas sociais inivisíveis, e os militantes de esquerda usam algemas ideológicas invisíveis, vindas de um mundo passado e de teorias importadas.

As forças de esquerda defendem distribuição de terra e aumento de salários, mas não defendem para o filho do trabalhador escola igual à escola do filho do patrão. Os movimentos negros defendem cotas para os que concluíram o ensino médio ingressarem no ensino superior, mas não lutam pela erradicação do analfabetismo, nem pela igualdade na qualidade da educação de base, independentemente da renda, da raça e do endereço do aluno. Promovem alforrias para alguns, não a abolição para todos.

O pensamento progressista brasileiro acredita que é preciso igualdade social para assegurar educação de qualidade para todos, e não o contrário: a igualdade na qualidade educacional é uma condição preliminar para a quebra da desigualdade social. Defende a distribuição de renda para melhorar educação, mas se recusa a entender que a educação de qualidade para todos é o caminho para distribuir renda: não defende que o Brasil implante um sistema nacional único público de educação de base sem desigualdade na qualidade. Nossa esquerda foi formada na paideia brasileira, e seus lideres e famílias são beneficiários da desigualdade educacional. Por isso defendem estatizar bancos e indústrias mas aceitam a privatização do ensino. Não defendem fazer público todo sistema educacional com a mesma qualidade.

No tempo da escravidão, a negação de escola era indecente, agora ela é também estúpida, obscena na moral e obtusa na lógica. Porque além de ser a ferramenta para quebrar a desigualdade, é também o vetor da eficiência, da inventividade, da competitividade que a economia moderna requer, e o caminho para distribuir o resultado obtido. Mas isso não é percebido pelo pensamento progressista aprisionado também por uma algema ideológica. Este é o problema central do Brasil: a formação, ao longo de séculos, de uma mente nacional educada naturalmente para aceitar a desigualdade social e para não entender que a fábrica da iniquidade está na desigualdade escolar.