quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Pensamento do Dia

 


Grito de 'bolsalidade', mal-estar na incivilização

A "bolsalidade" se espraiou pela vida pública e privada. Ajudou a embrutecer pessoas doces e a emburrecer pessoas escolarizadas. Luta por empobrecer um país, por se apropriar da sua riqueza material e suprimir sua riqueza imaterial, aquela que faz pensar e sentir antes de falar e agir. Tenta perpetuar a soberania de hierarquias e subjugar uma sociedade diversa.

A "bolsalidade" empobrece um país enquanto enriquece suas forças coloniais, extrativistas e grileiras. Enquanto enfraquece o Estado, a legalidade, as políticas públicas e abre avenidas para o crime organizado e a corrupção. Enquanto esgarça argumentos e esvazia valores constitucionais.

A "bolsalidade" não é surto que afeta somente os soldados do extremismo. A sua incivilidade contamina toda a esfera pública. A indigência discursiva passa a hidratar a linguagem de jornalistas declaratórios, colunistas e leitores; de políticos e magistocratas, advogados e cidadãos.

O grito de "bolsalidade" pode configurar crime. O leitor Luciano Napoleão de Souza reagiu a esta coluna semanas atrás: "Kanalha! Mil vezes, Kanalha! Militante da velha imprensa merece MORRER!!!!!!" O comentário ficou no ar por algumas horas. Em uma linha, pode ter cometido crimes de ameaça e incitação. O que mais excita Napoleão lendo jornal numa quinta de manhã? O que Napoleão pensa sobre Napoleão?

Mas a "bolsolidade" napoleônica não só comete crime. Ela também deprime. Marcos Benassi, o mais inspirado, lírico e carismático leitor da Folha, desabafou:

"Pô, caríssimo, eu tô farto disso... Farto do Bozo, da Bozonéscia, de Bozolinagem; farto da Bozolescência dos valores, da Bozolalia de seus seguidores, da Bozocracia que espreita. Como diriam os Titãs, ‘cansado de coisa vulgar, cansado de coisa rara’: cansadíssimo de quão rara é a aparição do bom-senso, da coragem, da altivez, do reconhecimento pela resistência. Tô farto de covardia, tergiversação, análises expelidas pelo ââânnus, oriundas do ‘segundo cérebro’. Tô farto da farta de vergonha."

"Bolsais" juram viver sob ditadura comunista, agravada por ditadura do Judiciário. Não porque dissidentes são torturados, assassinados e desaparecidos, mas porque réu perigoso, depois de obstruir a Justiça, sofre restrições de circulação e discurso nas redes sociais.

Somente no reino da "bolsalidade" decisões judiciais controversas ganham o nome de ditadura. A 
"bolsalidade" chama direitos humanos de "esterco da vagabundagem", mas apela ao devido processo legal. Não como um argumento esforçado e articulado pela doutrina jurídica, só como um grito primal.

"bolsalidade" também chama de liberdade a política liberticida, de patriotas as conspirações anti-nacionais, de vontade do povo o que não tem conexão com anseio popular, de democrático o que é irremediavelmente autoritário, e vice-versa. Chama de justiça os penduricalhos ilegais que magistocratas, já beneficiários dos melhores salários de Estado, acumulam.

O grito de 
"bolsalidade" não comunica divergência sincera sobre o significado de cada um desses termos e conceitos. Divergência sincera abunda na história do pensamento político e jurídico, que a "bolsalidade" ignora. Há só manipulação, apelo ao medo e ao ódio, à discriminação e à violência. E ao próprio bolso.

"bolsalidade" provoca esse mal-estar coletivo. E dessa prostração se aproveita.
Conrado Hübner Mendes

Deus, pátria e família para palerma ver

Os últimos acontecimentos deixam claro. Os Bolsonaros, pai e filhos, puseram as cartas na mesa e passaram a jogar aberto. Nem o slogan publicitário fascista "Deus, pátria e família", de que tanto se valeram, escapou. Já deve estar sendo aposentado tanto pelos pascácios, pessoas simplórias e bem intencionadas que acreditavam nele, quanto pelos espertos, que o usavam para tapear os ditos pascácios. Vejamos por quê.

Bolsonaros x Deus. Embora O invoquem o tempo todo, as verdadeiras relações entre Deus e os Bolsonaros são zero. Deus não admitiria entre os Seus um sujeito com a vulgaridade e falta de escrúpulos de Bolsonaro pai, defensor da tortura, dado a "pintar um clima" com vulneráveis e nitidamente hipócrita em suas atitudes diante da religião. Flávio Bolsonaro, por sua vez, comprador de mansões de R$ 6 milhões com dinheiro vivo oriundo de "rachadinhas", não passará pelo buraco da agulha.


Bolsonaros x pátria. Está mais do que claro agora que o mote "Brasil acima de tudo" era para palerma ver. A campanha de Eduardo Bolsonaro junto ao governo Trump para quebrar a economia brasileira em troca da liberdade de seu pai representa um golpe de estado por uma potência estrangeira. É um crime de traição nunca visto no país. Se as instituições se vergarem aos EUA e inocentarem Bolsonaro, o Brasil pode pedir sua incorporação como a 51ª estrela da bandeira americana.

Bolsonaros x família. Além do fato, hoje indiscutível, de que botam os interesses de sua família sobre os interesses do Brasil, os Bolsonaros têm posição marcada no embate entre a proteção às crianças brasileiras e o abuso e o estupro tecnológico dessas mesmas crianças, promovidos pelas Big Techs e pelos tarados que as frequentam. Os Bolsonaros são contra as crianças e a favor das Big Techs e dos tarados. Posição difícil de entender, sabendo-se que Flavio, Eduardo e Carlos Bolsonaro têm cinco filhos menores, dos quais quatro meninas.

Haverá leis suficientes no Brasil para um dia classificar esses homens?

Tordesilhas no Alasca?

É o que temos porque ninguém escapa da condição humana cuja história – como revela a grande anistilândia brasileira, os bíblicos tarifaços americanos e o projeto putinesco de reunir a União Soviética – repetimos vivendo seus episódios como novidades – ou “avanços”.

Na história humana, o denominador comum não é a serenidade, mas o angustiante desconcerto diante da divergência nas concepções de vida e morte, da rotina e do inesperado, do dado e do fabricado – essas dimensões que permeiam todos os sistemas culturais conhecidos.

O denominador comum para lidar com as diferenças sempre foi o confronto, jamais a compreensão que, nos sistemas religiosos, surge com perdão e amor.


Poderio militar faz parte do berço do Ocidente. Escravidão, desobediência, preconceito, agressividade e, simultaneamente, perdão, compaixão, altruísmo e esperança são características fundacionais na nossa história. Um caminho marcado pela expulsão do Eden, esse marco de nossa consciência do bem e do mal; e da carga que veio com a liberdade.

Essa visão distanciada talvez ajude a entender esses arrebatamentos das duas maiores potências mundiais. Sobretudo se pensarmos que o ponto de partida para toda essa tecnologia é ocidental e, no fundo, demonstra a capacidade de ser transplantada e dominada no Oriente, apesar do racismo e dos preconceitos culturais. A base do conflito entre EUA e China é, justamente, a recorrente surpresa de ver os bonecos falando mais e melhor do que o ventríloquo.

O progresso pelo infinito progressismo, que weberianamente desencanta o mundo, consolida o poderio militar que tem sido a escolha preferencial dos EUA e da Rússia.

Dissidências entre estados nacionais, interligados por um mercado autorregulado e por um hipercapitalismo comandado pelo brutal poder de uma plutocracia, conduzem a esse filme no qual dois autocratas decidem decidir não decidindo. Em pleno frio do Alasca os dois potentados congelam esperanças. Um alto e o outro baixo, eles reinstituem os dualismos com os quais vivemos desde a origem do mundo. O alto é narcisista, o baixinho, onipotente – ambos são agentes do caos.

Vejam a recorrência. O encontro Trump& Putin no Alasca espelha o tratado celebrado em Tordesilhas, Espanha, em 7 de junho de 1494, quando o mundo foi dividido entre Portugal e Espanha com o aval indiscutível do papa.

Hoje, desencantados e sem mediadores, assistimos ao que parece ser o aval dado a Putin para continuar seu projeto e a Trump para permanecer na sua incoerente opressão tarifária e permeada de ataques à soberania nacional.

Vejam a ironia: o Alasca é uma variante de Tordesilhas, um tratado que viabilizou o Brasil.

Quando a Casa Branca flerta com o golpismo no Brasil

Sob Donald Trump, o governo dos Estados Unidos retomou a pior tradição da política externa norte-americana para a América Latina. Se sob Barack Obama e Joe Biden predominava o desinteresse, Trump volta a tentar impor a vontade de Washington à região. Insere-se, assim, na linha da política imperialista que, ao longo do século 20, resultou em ditaduras, guerra civis, miséria, deslocamentos forçados e sociedades desestruturadas.

Trump impôs ao Brasil tarifas de 50% para pressionar pela suspensão do processo contra o seu aliado Jair Bolsonaro. A ameaça já nasceu absurda: acreditar que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva teria qualquer instrumento jurídico para interromper o julgamento — o que exigiria violar a Constituição — é pura fantasia.

Torna-se ainda mais escandalosa diante das provas esmagadoras contra Bolsonaro, acusado de planejar um golpe de Estado. Vários militares — entre eles seu próprio ajudante de ordens e os comandantes do Exército e da Aeronáutica — confirmaram os preparativos golpistas. Falar em "caça às bruxas" significa, portanto, apoiar as intenções autoritárias da extrema direita brasileira e desprezar a democracia do país.

Torna-se absolutamente ridículo, porém, quando o governo Trump, por meio de Christopher Landau, o vice-secretário do Departamento de Estado dos EUA, afirma que a separação democrática dos poderes "é a maior garantia de liberdade já concebida pelo espírito humano". Foi assim que Landau publicou na rede X. Ele escreveu: "Nenhum poder — e nenhuma pessoa — pode acumular poder demais, se for controlado pelos outros. Mas uma separação formal de poderes nada significaria se um deles tiver a possibilidade de intimidar os demais."
Receber lições de democracia de Trump é um insulto

É preciso lembrar que Landau é um representante do governo de Donald Trump, o próprio símbolo da intimidação ao Legislativo e ao Judiciário. Trump já convocou seus apoiadores a invadirem o Capitólio; ameaça congressistas de seu próprio partido; pressiona e ataca publicamente juízes cujas decisões o contrariam; afasta procuradores e altos funcionários da Justiça quando investigações se aproximam de seu círculo; demitiu o diretor do FBI e outros chefes de agências federais; aciona a Guarda Nacional contra cidadãos. Nas ruas americanas, sob Trump, pessoas são sequestradas por homens mascarados em veículos sem placas e desaparecem por dias.

Agora, o presidente exige redesenhar distritos eleitorais para garantir vitórias futuras de seus aliados. Além disso, normalizou a mentira como método político — um vício que já contamina o Brasil, onde a falsidade passou a ser tratada como "liberdade de expressão". Mas liberdade exige responsabilidade e acordo social: se todos os motoristas ignorassem as leis de trânsito sob o argumento de que limitam sua liberdade, o tráfego seria impossível. Para Trump e seus seguidores, contudo, liberdade significa apenas o direito do mais forte.

Receber lições de democracia de tal governo é um insulto. É verdade que o Brasil é uma democracia com falhas graves, enraizadas na desigualdade extrema e na corrupção endêmica. Mas também os Estados Unidos são classificados pela Economist Intelligence Unit como uma "democracia com falhas" (flawed democracy), com déficits em liberdade de imprensa, degradação da cultura democrática e um processo legislativo cada vez mais capturado por ricos e grupos de interesse.


Não é o Brasil que precisa aprender com os EUA sobre democracia. Ao contrário: enquanto as eleições americanas são frequentemente marcadas por caos e contestação, o processo eleitoral brasileiro é seguro, rápido e confiável. Mais importante: no Brasil, a maioria escolhe o chefe de Estado.

Nos EUA, um sistema eleitoral arcaico permite que uma minoria conservadora e provinciana eleja o presidente contra a vontade da maioria. Foi assim em 2016, quando Donald Trump chegou à Casa Branca apesar de Hillary Clinton ter obtido quase três milhões de votos a mais. A distorção é ainda maior no Senado: os dois senadores do conservador estado de Wyoming (600 mil habitantes) têm o mesmo peso que os dois da progressista Califórnia (40 milhões!). E são justamente o presidente desse país e seus representantes que pretendem dar lições de democracia aos brasileiros?

A tentativa de atacar o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes segue o manual já aplicado por Trump nos EUA: descredibilizar e ameaçar juízes, questionar cada decisão sob a acusação de motivação política e, assim, corroer a separação de poderes. É isso que destrói o equilíbrio institucional.
Trump aplica antiga receita

As semelhanças são evidentes: a desestabilização já foi, ao longo do século 20, a receita utilizada por Washington na América Latina para derrubar governos que tentavam limitar a exploração da região por empresas norte-americanas. A riqueza da América Latina deveria beneficiar o seu próprio povo. Sob o pretexto de defender "a liberdade e a democracia”, tais governos eram rotulados por Washington de "socialistas" ou "comunistas" e alvos de intervenções. Hoje, o governo Trump evoca o mesmo discurso de "liberdade e democracia", enquanto, na prática, fortalece justamente seus inimigos.

Por isso, os brasileiros deveriam valorizar o papel de Moraes, que atua como muralha contra as tendências autoritárias do bolsonarismo. Suas ações cumprem o mandato constitucional do STF de proteger a democracia — ainda que algumas possam soar duras e excessivas —, mas o fato de o governo Trump dar ouvidos a Eduardo Bolsonaro, herdeiro de um clã sustentado há décadas por dinheiro público e cujo "negócio" é o extremismo e a divisão social, diz muito. Não se trata de defesa da democracia ou da liberdade, mas de promover, a partir de Washington, a agenda da extrema direita brasileira.

Alguns historiadores veem Donald Trump como o símbolo do último espasmo do império americano em declínio. Quando impérios se desfazem, costumam reagir com violência, agir de forma irracional e tentar, a qualquer custo, retornar a uma fase que consideram gloriosa — sem jamais conseguir. "Quando o velho morre e o novo não pode nascer", escreveu Antonio Gramsci, "nesse interregno surgem os monstros." O movimento trumpista MAGA é um desses monstros, e o Brasil, bem como o resto do mundo, faria bem em manter distância de suas garras.

A burrice como trincheira do autoritarismo brasileiro

No mundo moderno em que vivemos tempos de retrocessos, a ignorância, o idiota e o burro, deixou de ser um problema, uma ofensa e se tornou uma virtude. Aquilo que antes causava vergonha e constrangimento, hoje se tornou motivo de orgulho. A burrice performada, revestida de “liberdade de opinião”, conquistou espaço nas redes, na política e na sociedade. O indivíduo que nega a democracia, os direitos fundamentais, a constituição e que repete frases autoritárias ou que não tem o menor nexo com a realidade, se tornou símbolo de “coragem” e “autenticidade”. Mas não nos deixemos enganar acreditando se tratar de uma ignorância espontânea, pois se trata de um projeto de poder político e econômico.

Essa burrice, que opera como estética e método, é funcional ao avanço do autoritarismo. O sujeito que não pensa, que recusa a complexidade, que transforma o ódio e o preconceito em justificativa para agressões, é o cidadão ideal para a lógica reacionária. Como demostra Rubens Casara em seu livro, A construção do idiota: O processo de idiossubjetivação, o colapso da racionalidade crítica, não é um efeito colateral – é uma estratégia montada pelos detentores do poder politco econômico. A mínima racionalidade democrática, que exige abertura para o outro e reconhecimento da dúvida, é substituída por um processo de subjetivação do indivíduo, juntamente com uma racionalidade autoritária.

O indivíduo ideal deste projeto, é o que podemos definir como o “ bom burro reacionário”. Ele não apenas se recusa a ler, a pensar, a estudar, a escutar – ele transforma toda sua ignorância e repulsa ao pensamento crítico, em bandeira, no mais estilo de um discurso político. Os intelectuais se tornam “lacradores”, a filosofia se torna inútil, e celebra “nunca ter lido um Paulo Freire, Karl Marx, entre outros pensadores”. Ademais, o bom burro reacionário, afirma estar vivendo em uma ditadura, enquanto clamam pelo retorno da Ditadura e endeusam os torturadores da ditadura brasileira como Carlos Alberto Brilhante Ustra. 

É nesse cenário que a burrice precisa urgentemente voltar a ser uma ofensa, uma forma de constrangimento. E não se trata aqui de forma alguma de elitismo ou desprezo pelos que tenham visão diferente de política, economia ou demais assuntos. Mas trata-se de apontar, sem meias palavras, que a ignorância deliberada – aquela que se escolhe de maneira deliberada de não pensar, que milita contra a democracia, contra a ciência, que deturpa a história e repulsa a dúvida – é um dos principais combustíveis do autoritarismo e do fascismo moderno.

Frente a este cenário, o combate à burrice e a estupidez humana, não é uma questão moral ou estética, mas uma defesa da própria sociedade e dos valores democráticos. O idealismo e o projeto reacionário não teme a esquerda ou a justiça, mas sim, a potência que o ato de prensar pode despertar nas pessoas. Até porque uma sociedade pensante é uma sociedade viva de dúvidas.

A burrice não é neutra. Quem a instrumenta e a sustenta também não. Ao contrário: ela está na base do desprezo pela igualdade, do fanatismo religioso, do autoritarismo penal e da erosão democrática. Apontar e denunciar seu papel estruturante nas sociedades contemporâneas é condição para que se possa criar um futuro. Um futuro, o qual, o bom burro recionário se sinta contrangido, inútil, simplesmente porque não lhe resta mais seguidores.
Diogo Almeida Camargo