quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Perdemos o trem

O trem que conduz ativistas, chefes de Estado, jornalistas e empresários à idílica cidade de Davos, nos Alpes suíços, funciona como uma metáfora do caminho que o documentário O Fórum, recém-lançado nas plataformas de streaming, mostra, de um mundo em lenta, mas inexorável transformação. E o Brasil que aparece na tela perdeu o trem e ficou perdido na estação.

Não é só a cena da conversa que mais parece uma brincadeira de telefone sem fio entre Jair Bolsonaro e o ex-vice-presidente norte-americano Al Gore, que viralizou nas redes sociais como um teaser do documentário, que mostra o quão deslocado o País está. São todos os aspectos abordados, da quarta revolução industrial às emergências climáticas. Somos párias, motivo de piada e preocupação por parte dos atores mais relevantes.


O filme tem duas partes. Uma mais otimista mostra um fórum concorrido em 2018, com Donald Trump posando de dono do mundo, Theresa May ainda não derrotada e um sorridente e galante Emmanuel Macron exalando charme pelos corredores. A edição de 2019 é mais melancólica e cercada de ceticismo, após o Brexit, com a crise comercial entre Estados Unidos e China já deflagrada e com Macron cercado pelos coletes amarelos. Nesse cenário, a presença de Bolsonaro é um constrangimento para todos.

A equipe do premiado diretor alemão Marcus Vetter teve acesso pleno a reuniões preparatórias de Klaus Schwab, fundador e figura central do Fórum, com sua equipe, empresários, ativistas para as duas edições que o filme retrata. Também acompanhou os bastidores, as conversas informais e as iniciativas que acontecem off-Davos, a partir do que é tratado ali.

 

Schwab tenta fugir de todas as formas do mico de ter de moderar o painel com Bolsonaro. Tenta passar o fardo para o presidente mundial da Nestlé, que declina gentilmente. Sua preocupação com a chegada do presidente brasileiro é mostrada em detalhes. Até que, já nos 15 minutos finais do filme, Bolsonaro entra em cena. Seu bizarro discurso de dois minutos na abertura do evento é mostrado na íntegra, com cenas intercaladas da plateia atônita e o filho 03, Eduardo, filmando tudo com cara de “meu paipai” na primeira fila.

A cena da conversa com Gore dá ainda mais vergonha quando mostrada sem cortes. Bolsonaro está na sala de café absolutamente deslocado, acompanhado apenas de Ernesto Araújo. Na conversa com Gore, além de tratar Alfredo Sirkis como seu “inimigo na luta armada”, uma mentira completa e desnecessária, ainda termina o breve e desastrado encontro dizendo que sabe quem o ex-vice-presidente norte-americano é, e não o tem como inimigo.

Em seguida Bolsonaro é abordado por Jennifer Morgan, diretora-executiva global do Greenpeace, que diz que ficou satisfeita em ouvir seu compromisso com a preservação da Amazônia. Bolsonaro não a olha nos olhos, não responde e diz só um “thank you” enfezado ao final. Em seguida, ela tira sarro com uma colega ativista por ter conversado com o presidente brasileiro, e a interlocutora ri de sua “coragem”.

É esta a imagem do Brasil que emerge de um filme que mostra ainda outros líderes mundiais em ação para mitigar os efeitos crise ambiental no mundo. “Pronta?”, pergunta Schwab a Angela Merkel. “Estou sempre pronta”, responde ela, sem a enorme entourage do presidente brasileiro (outro motivo de chacota dos organizadores).

O documentário deixa claro que as discussões sobre mudança de mentalidade de nações e empresas em relação ao meio ambiente não são acessórias, mas essenciais. Isso era verdade no pré-pandemia e será no pós. O Brasil não está no mesmo vagão de todos os demais tomadores de decisões, inclusive os investidores. Passamos vergonha e ficamos perdidos na estação junto com Bolsonaro.

Bolsonaro infecta pelo ouvido

Jair Bolsonaro não se contenta em ser visto como desumano, mentiroso, sem compostura, incapaz de governar, conivente com a corrupção, destruidor do meio ambiente, defensor da tortura, amigo de milicianos, subornador de militares, golpista, genocida e cínico. Também é uma ameaça pessoal à saúde pública. Por seu passado de atleta —como ele define sua carreira de terrorista no Exército—, gaba-se de ser inexpugnável à Covid, chamando de bundões os 115 mil brasileiros que já morreram e quem não tem um serviço médico como o dele, pago com o nosso dinheiro.

Suspeita-se de que, ao circular infectado e sem máscara pelo país, Bolsonaro contaminou uma multidão. A prova é a de que as pessoas ao seu redor, constrangidas a não usar máscara, vivem pegando a doença —só os funcionários do Planalto a contraem à média de três por dia. O mais novo infectado é o seu filho Flávio “Queiroz” Bolsonaro. Mas isso não é causa de preocupação porque, por ser filho de quem é, ele está proibido de reagir como um bundão.


Para mim, quem mais corre perigo com Bolsonaro é aquele pobre intérprete de libras que se vê ao seu lado —também sem máscara— nas declarações oficiais. Não sei o nome, idade ou histórico de atleta do tal senhor, mas espero que ele sobreviva aos perdigotos de Bolsonaro, ao tentar converter em sinais os coices do chefe contra as instituições e a verdade.

Por seu visual sóbrio, parece um homem de família, de sólida formação moral, talvez evangélico. Como será, para ele, dizer “bundão” em libras? E como será quando tiver de traduzir expressões como “porra”, “bosta”, “merda”, “putaria”, “filho da puta” e “puta que pariu”, como as que Bolsonaro ejaculou 28 vezes na reunião ministerial de 22 de abril? E o recente “encher tua boca com porrada”?

É o que me faz temer pela saúde do intérprete de libras. Afinal, certas infecções penetram também pelo ouvido.
Ruy Castro

Brasil, o retorno

 


Última trincheira da escravidão

A escravidão era aceita tão naturalmente, que nem os escravos lutavam pela Abolição; alguns reagiam, mas sem imaginar um mundo em que brancos e negros tivessem os mesmos direitos, fugiam do inferno em que viviam, mas sem imaginar o paraíso da liberdade. Por isso, alguns historiadores dizem que havia escravos até nos quilombos. Intelectuais, políticos, padres, empresários, trabalhadores, viam a escravidão dos negros com a mesma naturalidade como hoje vemos a desigualdade na qualidade da educação, conforme a renda e o endereço da criança.

Demorou para surgirem reações contra maus tratos que sofriam os escravos, tais como a proibição do tráfico, o ventre livre, a liberdade dos sexagenários, mas sem tocar na estrutura escravocrata. Da mesma maneira, nas últimas décadas implantamos medidas favoráveis à educação pública, mas sem a meta de assegurar que o filho do pobre tenha acesso à mesma escola do filho do rico.

A defesa da Abolição só surgiu depois de três séculos de escravidão inspirada desde o exterior, e sob a desconfiança geral da sociedade: por ser vista como uma utopia impossível, desnecessária, contra a natureza das coisas e ameaçadora do estabelecimento social. Os humanistas que eram contra os maus tratos não conseguiam ver a possibilidade, nem a razão, para o fim do sistema arraigado sob visão hegemônica de que a desigualdade entre raças era natural, como hoje é aceita a desigualdade educacional por renda.

Até o final da luta, a bandeira da Abolição foi carregada por poucos. A trincheira contra ela tentou adiar a data e indenizar os donos, mas perdeu. Mesmo assim, quando ela chegou, os não-escravos não aceitaram dar os mesmos direitos aos ex-escravos e seus filhos, negando-lhes terra e escola. Continua resistindo na última trincheira da escravidão: a escola como privilégio para poucos, ricos, na maior parte brancos. A luta atual pela igualdade na qualidade da educação tem este mesmo lento ritmo. As pessoas começam a ter sentimentos de vergonha pelo atraso educacional no país, a perceber que a evolução tecnológica está exigindo conhecimento, mas sem aceitar a ideia de que a escola deve ser a mesma para ricos ou pobres.




Quase 100 anos depois da Abolição, criamos um sistema de escolas públicas municipais, programas para merenda e livro didático, Emenda Calmon; determinamos obrigatoriedade de matrícula dos 6 aos 14 anos, depois, desde os 4 aos 17 anos; implantamos Fundef, Fundeb, PNE-I, PNE-II, Piso Nacional Salarial, mas não nos atrevemos a uma estratégia educacionista. Nenhum partido, nenhum governo, de direita ou de esquerda, defendem e se comprometem com uma estratégia com duas metas: o Brasil ter educação com a qualidade das melhores do mundo, e toda criança ter acesso igual a essa educação, independentemente da renda ou do endereço de sua família. Eleitores e eleitos, não acreditam ou não querem, tanto quanto na escravidão muitos não queriam a Abolição e outros não acreditavam que ela fosse possível.

A igualdade escolar é o gesto que ficou faltando na Abolição. A desigualdade na qualidade da escola é um resquício da escravidão, a última trincheira. Mas a ideia educacionista não seduz a opinião pública. Nem mesmo o movimento negro tem essa bandeira para completar a Abolição, porque se concentra na luta correta, mas insuficiente, para beneficiar os afrodescendentes que terminaram o ensino médio e querem entrar na universidade, mas sem lutar pela alfabetização dos pobres na idade certa, pela erradicação do analfabetismo que ainda tortura 12 milhões de adultos, e garantir a cota de 100% dos jovens brasileiros concluírem o ensino médio com qualidade e qualidade igual. Comportamento parecido com o dos humanistas contra maus tratos, mas sem aceitar a Abolição.

A última trincheira da elite social e econômica é manter para seus filhos o privilégio de uma escola com mais qualidade do que a escola dos filhos dos pobres. Por isso, é difícil um pacto social para uma estratégia que objetive colocar a educação brasileira entre as melhores do mundo, e que todas as escolas sejam concessão pública, abertas para todos os alunos. Mesmo assim, seguindo o exemplo dos abolicionistas, não podemos deixar de lutar por essa bandeira, ainda sabendo que até mesmo aqueles que se incomodam com o vergonhoso quadro de nossa educação vão continuar defendendo os paliativos que caracterizavam os humanistas-contra-os-maus-tratos. E não podemos ficar contra eles, mesmo sabendo a insuficiência.

Chibata nas crianças!

E bons tempos, né?, onde menor podia trabalhar. Hoje, ele pode fazer tudo, menos trabalhar, inclusive cheirar um paralelepípedo de crack, sem problema nenhum 
Jair Bolsonaro em congresso nacional da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel). Durante a campanha eleitoral de 2018, o então candidato ja havia declardo que "o ECA tem que ser rasgado e jogado na latrina" por ser "um estímulo à vagabundagem e à malandragem infantil"

 

Não quero ouvir que o vírus vai nos ensinar uma lição

Um. Um bom amigo morreu no começo da epidemia. Era um narrador maravilhoso e o dono do café de Jerusalém Tmol Shilshom. Nesse café ocorreu o segundo encontro com a que hoje é minha esposa. Fomos ouvir David Grossman e depois, enquanto caminhávamos pela rua, ela me disse que seu sonho era se casar com um escritor (não tive outra escolha, portanto). Também ocorreu no mesmo café, meu primeiro encontro com o público como escritor. Cinco pessoas apareceram, mas graças à atenção e às perguntas formuladas pelo dono lembro como uma boa experiência. Com o passar dos anos, eu e o proprietário nos tornamos amigos. E tive o privilégio de aproveitar sua especial habilidade para entabular conversas íntimas. Conversas espirituais e honestas após as quais você se sente melhor. Morreu enquanto dormia. Ao que parece, de um ataque do coração. Ainda que, de fato, ele é uma das vítimas do coronavírus. De noite sentiu dores no peito, mas não quis ir ao hospital por medo do contágio. Era relativamente jovem. Tenho certeza de que, se não fosse pelo vírus, ainda estaria com vida. E eu ainda teria meu amigo. Quando soube de sua morte, tive um grande desejo de estar em companhia das pessoas que o amavam. Perguntei onde seria o funeral. Pela situação, me responderam, a cerimônia ocorreria na mais estrita intimidade familiar. Perguntei pela shivá. E me disseram que seria no domingo à noite pelo Zoom. Uma shivápor Zoom?, disse a minha mulher, chorando. Que terrível. Vírus odioso, acrescentei. Eu o odeio. Não estou disposto a escutar mais ninguém dizendo que o vírus “vai nos ensinar uma lição”, e que “vai nos fazer retornar a uma vida mais simples”. O vírus é um filho da puta.


Dois. Outro amigo meu é ator. Quando éramos adolescentes fomos a aulas de teatro juvenil e após duas lições ficou claro quem tinha talento e quem faria melhor procurando outro caminho para expressar suas angústias. Agora, meu amigo ator está sem trabalho. Pelo vírus já faz meio ano que os teatros estão fechados. Na semana passada, a caixa do supermercado não aceitou seu cartão de crédito. Ele me ligou para me contar que acaba de sair de uma entrevista na escola de sua filha para ocupar uma vaga de professor substituto. O que acontece é que a escola é das “democráticas”, de modo que na comissão de admissão de professores substitutos também há alunos. E na entrevista encontrou com duas amigas de suas filhas, garotas de 10 anos que frequentemente vão a sua casa para comer bolinhos e que lhe fizeram perguntas como: Por que você quer ser professor substituto?, e Quais são seus pontos fracos? E que ouviam suas respostas com rostos sérios. Rimos dessa história, em vez de começar a chorar.

Três. Saí com meu amigo músico para caminhar à uma da madrugada. Caminhamos pelos campos nos arredores da cidade e uivamos à Lua. Observei que quando ela não aparece, ele vai mais devagar. Eu sugiro que, enquanto a epidemia durar, ele faça shows ao vivo no Facebook. E me responde que não pode cantar sem ter o público diante dele. Simplesmente, não consegue. Eu lhe sugiro que aproveite o tempo livre para trabalhar em algo novo. Diz que tenta, mas tudo o que escreve lhe parece irrelevante, pertencente a um mundo que já não existe. Durante o passeio, sem perceber tiramos a máscara e, quando nos aproximamos da cidade, um carro de polícia para ao nosso lado e nos repreende pelo megafone: por que estão sem máscaras? Estamos praticando esporte. Isso é esporte?, caçoa o policial. Vão em passo de tartaruga. E qual é o problema? Responde, irritado, meu amigo. Quando era adolescente já tinha a tendência a se meter em confusões. O policial sai do carro, furioso. Digo sussurrando que cale a boca, mas ele grita para o policial: veja, veja, senhor policial, vamos colocar as máscaras. O policial se aproxima, cassetete nas mãos. Seu olhar diz que passaremos a noite no xadrez. Mas, então, algo muda em seu rosto. Para. Observa detalhadamente meu amigo e diz: um momento, você não é...? Meu amigo admite e o policial diz: adoro suas músicas. Vai lançar coisas novas? Está preparando algo? Meu amigo baixa a cabeça timidamente: sim, estou trabalhando em um novo disco. O policial diz, sensacional, sensacional, nesse momento precisamos de uma boa sacudida. Depois, volta a si, entra em seu papel, ergue um dedo de reprovação a ambos e lança um: cuidado ao não usar máscaras, hein? Há uma segunda onda!

Quatro. Meu amigo ginecologista está contente. Pela segunda onda do vírus menos mulheres vão ao hospital. Por medo do contágio, poucas mulheres se submetem a tratamentos de fertilidade. De repente, sua agenda está vazia e tem muito mais tempo para se dedicar a sua mulher e seus dois filhos. Descobre que, de fato, isso é o que mais gosta de fazer. Em uma das videoconferências me pede: me recomende um livro, por fim tenho tempo para ler. Eu sugiro "O Sol Desvelado", de Isaac Asimov, cuja ação ocorre em um planeta em que as pessoas se relacionam entre si somente através de telas por medo de se infectar com um vírus. Como aperitivo, li para ele uma frase do livro: “Na ausência de contato entre os seres humanos perdemos o interesse central pela vida, desaparecem muitos interesses intelectuais, em grande medida nos abandona a razão de viver. Ver não pode substituir o olhar”.

115 mil ‘bundões’?

Tardou, mas não falhou. O Jairzinho Paz e Amor jogou a toalha e, no domingo, emblematicamente à entrada da Catedral de Brasília, foi o que ele nunca deixou e nunca deixará de ser: Jair Messias Bolsonaro, sempre no ataque, beligerante, grosseiro, despejando sua ira nos repórteres que deixam famílias e amores em casa e enfrentam a covid-19 para cobrir as atividades do presidente-candidato até aos domingos. E ele não deixou barato. Ontem, voltou à carga.

Um repórter fez uma pergunta não só válida, mas obrigatória, e Bolsonaro reagiu à la Bolsonaro: “Vontade de encher a tua boca de porrada”. Pior para ele. A pergunta viralizou, replicada em mais de um milhão de posts em português e outras línguas – “Presidente, por que sua esposa Michelle recebeu R$ 89 mil do Fabrício Queiroz?”. De boca calada, Bolsonaro some das manchetes e sua popularidade sobe. Quando fala, volta às manchetes, choca o País e passa vergonha no mundo.



Apoiadores registraram o golpe e, na tentativa de se contrapor ao tsunami da internet, editaram o vídeo, sem a pergunta do repórter e deturpando a fala de um feirante. Ele convidava Bolsonaro para visitar “a feirinha na catedral”, mas a legenda diz que é para visitar “a filha na cadeia”. Daí a reação do presidente. Feirante, filha, feira, cadeia... Uma lambança. Mas há quem acredite!

Bolsonaro continuou sem explicar os depósitos e não cogitou pedir desculpas ao jornalista, mas poderia ao menos ficar calado. Até ficaria, não fosse Bolsonaro. E, assim, um evento ontem no Planalto virou um festival de vexames. Começa pelo nome: “Vencendo a covid-19”. Vencendo o quê? Com mais de 115 mil mortos e 3,5 milhões contaminados, o Brasil é o segundo País mais atingido pela pandemia no mundo e virou referência de erros, descaso e falta de coordenação federal. Até o “amigão” Donald Trump já disse isso mais de uma vez.

Segundo: como fazer um evento sobre a pandemia sem dar uma palavra sobre os muitos milhares de mortos? Sem conforto para as famílias e amigos? Sem solidariedade aos que pegaram o vírus, muitos com sequelas graves? A quem o presidente pensa que está enganando ao esconder a realidade? Aliás, ele continua enganando e se enganando quando diz que “sempre foi um atleta das Forças Armadas”. “Sempre”? Como assim? Ele foi do Exército há bem mais de 30 anos e saiu pela porta dos fundos, depois de alucinações com bombas em quartéis.

Numa cerimônia de derrotados para comemorar uma vitória imaginária, não poderia faltar cloroquina. Catados a dedo, compareceram bolsonaristas dispostos a corroborar o constrangedor “Vencendo a covid-19”, badalar um medicamento que não tem comprovação contra esse vírus em lugar nenhum do mundo e dizer amém a qualquer outra barbaridade do presidente.

No triste espetáculo, Bolsonaro se vangloriou do “histórico de atleta” e de ter tido uma forma amena da covid-19, para provocar os jornalistas:

“Quando pega num bundão de vocês, a chance de sobreviver é bem menor”. Assim, ele atacou não só os jornalistas, a quem quer “encher de porrada”, mas os 115 mil que morreram e os que pegaram a forma mais grave – os fracotes, “bundões”. Como já ensinou Bolsonaro, “tem de enfrentar o vírus como homem, não como moleque”. Ou seja, cara a cara, sem isolamento, aglomerado, sem máscara, sem álcool em gel. Tudo frescura.

A ameaça de “dar porrada” foi diante da Catedral de Brasília e o título do vídeo deturpado, sem a pergunta do repórter sobre o “Queiroz”, é um versículo da Bíblia: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Nada mais apropriado ao momento que vive o Brasil. A verdade está aí, escancarada, à vista de todos. Pena que milhões se recusam a admiti-la e a se libertar.

Agressividade de Bolsonaro aos jornalistas que o interrogam é grosseria ou delito?

Que Bolsonaro passou de todos os limites em seus já habituais insultos a jornalistas fica claro pela reação imediata da sociedade, que em poucas horas repetiu no Twitter mais de um milhão de vezes a mesma pergunta que lhe fizera o jornalista. Sinal de que desta vez até a voz das ruas condenou, e de forma criativa, a permanente atitude de agressão aos jornalistas e à imprensa livre por parte do Estado. Condenaram-na a rua e todas as associações democráticas do país.

Seria o caso de se perguntar por que a pergunta do jornalista ao presidente desta vez o irritou tão especialmente, levando-o a passar de seus habituais insultos à ameaça de agressão física. É que o caso Queiroz continua sendo uma espada de Dâmocles sobre Bolsonaro e sua família, que fazem o possível e o impossível por esconder o suposto escândalo de corrupção e que deixa o presidente novamente à beira de um possível impeachment.



É sabido que todos os ditadores ou aspirantes a tal sempre se incomodam com os meios de comunicação e a imprensa livre. E quando chegam a tomar o poder totalmente, a primeira coisa que fazem é fechar esses meios. Talvez por saberem que o dever elementar do jornalismo como se ensina nas faculdades de todo o mundo é informar sobre o que o poder tenta esconder. Costuma-se dizer, por isso, que no jornalismo não existem perguntas impertinentes às instituições do poder, e sim respostas inúteis ou vergonhosas.

A repercussão negativa e de condenação que a grande maioria da sociedade brasileira está manifestando nas redes sociais e a solidariedade demonstrada com as ameaças de agressão ao jornalista que lhe fez uma pergunta incômoda revelam melhor que muitas pesquisas de opinião que essa sociedade ainda não se contaminou totalmente com a nova onda dos chamados “gabinetes do ódio” implantados pelas hostes do Governo Bolsonaro. As agressões contínuas às instituições democráticas provêm de uma minoria que não representa a sociedade que começa a se cansar do clima de agressividade implantado pelo presidente de extrema direita.

A reação maciça de condenação da sociedade contra a incapacidade do Governo de aceitar a crítica e concretamente as ameaças cada vez mais duras e escandalosas do presidente aos jornalistas e às instituições democráticas começam a revelar que talvez não se trate apenas de grosserias ou falta de educação de quem deveria dar exemplo, mas sim de algo mais grave.

A ameaça de “encher de porrada” a boca do jornalista é também um lapso lacaniano do presidente que revela sua impotência e medo frente à verdade e à liberdade.

Existem muitos parâmetros para medir o grau de democracia e de liberdade de uma sociedade, mas sem dúvida um dos indiscutíveis é a capacidade de respeitar os controles que a Constituição, através da informação livre, impõe aos poderes da República. Tudo indica que o presidente do Brasil está ultrapassando todos os limites que o colocam à beira da incompatibilidade com o cargo que lhe foi dado pelas urnas e que ele parece pretender transformar em um poder absoluto e punitivo. Até quando?