sexta-feira, 27 de setembro de 2024
Israel pode evitar as mesmas armadilhas das ofensivas terrestres anteriores no Líbano?
Não há duas guerras iguais, mesmo aquelas travadas entre os mesmos dois combatentes no mesmo terreno. Mas muitos dos desafios permanecem os mesmos.
O comandante militar mais antigo de Israel disse às tropas que os ataques aéreos continuarão dentro do Líbano enquanto o exército israelense se prepara para uma possível operação terrestre . Se suas forças cruzarem a fronteira norte, provavelmente enfrentarão obstáculos que já viram antes.
Quando os tanques israelenses avançaram para o sul do Líbano em 2006 (não pela primeira vez), eles encontraram um oponente que havia mudado drasticamente desde a retirada de Israel do Líbano, seis anos antes .
Mesmo naquele curto período, o Hezbollah havia se organizado e desenvolvido suas capacidades. Na zona de fronteira com arbustos, com vista para cumes rochosos íngremes, túneis de combate haviam sido preparados. Novas táticas e armas haviam sido adaptadas para atormentar as forças israelenses quando elas entrassem.
Os tanques, em particular, eram vulneráveis a mísseis antitanque, enquanto combatentes do Hezbollah e seu grupo aliado, o Movimento Amal, disparavam morteiros contra as unidades de infantaria israelense que avançavam enquanto elas abriam caminho por entre pomares e plantações de tabaco.
Naquela guerra – como nesta – jatos e drones israelenses controlavam o ar, atacando infraestrutura e posições do Hezbollah sem oposição. Canhoneiras israelenses, muitas vezes posicionadas sobre o horizonte, bombardearam a costa, ameaçando a principal rodovia costeira diariamente. Mas, ao se aproximar da fronteira, era um quadro muito diferente.
Então, como agora, o Hezbollah tinha posições bem-preparadas. Foguetes irromperam de uma posição escondida em encostas próximas, atraindo contra-ataques israelenses, tanto de jatos quanto de artilharia na fronteira, aos quais parecia impossível sobreviver. Mas frequentemente, após uma pausa de algumas horas, os foguetes dispararam novamente do mesmo lugar, iniciando uma repetição do ciclo.
A realidade é que qualquer campanha terrestre agora será uma tarefa muito mais complexa do que os ataques liderados por inteligência que Israel vem realizando com sua estratégia de pagers explosivos e os ataques aéreos subsequentes.
Os fracassos da guerra de 2006 tiveram seus próprios pais. Como escreveu o correspondente militar do Haaretz, Amos Harel, uma década depois: “As divisões das IDF foram movimentadas sem rumo, com o governo e o exército incapazes de definir uma manobra que lhes permitisse obter vantagem”.
E enquanto as Forças de Defesa de Israel melhoraram sua blindagem para melhor se defender contra armas antitanque móveis e se preparar para lutar no Líbano, ainda não está claro se uma incursão terrestre de Israel pode evitar as mesmas armadilhas. Ou se, de fato, seus objetivos são mais realistas.
O Hezbollah está muito mais bem armado do que em 2006, seus militantes têm mais experiência de combate após anos lutando na Síria, mas Israel parece estar caindo na mesma armadilha conceitual de não entender a natureza do grupo islâmico.
Peter Beaumont
O comandante militar mais antigo de Israel disse às tropas que os ataques aéreos continuarão dentro do Líbano enquanto o exército israelense se prepara para uma possível operação terrestre . Se suas forças cruzarem a fronteira norte, provavelmente enfrentarão obstáculos que já viram antes.
Quando os tanques israelenses avançaram para o sul do Líbano em 2006 (não pela primeira vez), eles encontraram um oponente que havia mudado drasticamente desde a retirada de Israel do Líbano, seis anos antes .
Mesmo naquele curto período, o Hezbollah havia se organizado e desenvolvido suas capacidades. Na zona de fronteira com arbustos, com vista para cumes rochosos íngremes, túneis de combate haviam sido preparados. Novas táticas e armas haviam sido adaptadas para atormentar as forças israelenses quando elas entrassem.
Os tanques, em particular, eram vulneráveis a mísseis antitanque, enquanto combatentes do Hezbollah e seu grupo aliado, o Movimento Amal, disparavam morteiros contra as unidades de infantaria israelense que avançavam enquanto elas abriam caminho por entre pomares e plantações de tabaco.
Naquela guerra – como nesta – jatos e drones israelenses controlavam o ar, atacando infraestrutura e posições do Hezbollah sem oposição. Canhoneiras israelenses, muitas vezes posicionadas sobre o horizonte, bombardearam a costa, ameaçando a principal rodovia costeira diariamente. Mas, ao se aproximar da fronteira, era um quadro muito diferente.
Então, como agora, o Hezbollah tinha posições bem-preparadas. Foguetes irromperam de uma posição escondida em encostas próximas, atraindo contra-ataques israelenses, tanto de jatos quanto de artilharia na fronteira, aos quais parecia impossível sobreviver. Mas frequentemente, após uma pausa de algumas horas, os foguetes dispararam novamente do mesmo lugar, iniciando uma repetição do ciclo.
A realidade é que qualquer campanha terrestre agora será uma tarefa muito mais complexa do que os ataques liderados por inteligência que Israel vem realizando com sua estratégia de pagers explosivos e os ataques aéreos subsequentes.
Os fracassos da guerra de 2006 tiveram seus próprios pais. Como escreveu o correspondente militar do Haaretz, Amos Harel, uma década depois: “As divisões das IDF foram movimentadas sem rumo, com o governo e o exército incapazes de definir uma manobra que lhes permitisse obter vantagem”.
E enquanto as Forças de Defesa de Israel melhoraram sua blindagem para melhor se defender contra armas antitanque móveis e se preparar para lutar no Líbano, ainda não está claro se uma incursão terrestre de Israel pode evitar as mesmas armadilhas. Ou se, de fato, seus objetivos são mais realistas.
O Hezbollah está muito mais bem armado do que em 2006, seus militantes têm mais experiência de combate após anos lutando na Síria, mas Israel parece estar caindo na mesma armadilha conceitual de não entender a natureza do grupo islâmico.
Peter Beaumont
Brasil arde em banditismo e baixaria
O cenário é desolador. O fogaréu que se alastrou pelo país já seria suficiente para causar desespero e apreensões, do despreparo do governo para enfrentar a catástrofe à intenção dolosa que se verificou na origem dos incêndios, passando pelos imensos danos ambientais e prejuízos à saúde pública em tempos de crise climática.
Temos mais, porém. Para onde se olhe nas mídias e redes sociais, a cena brasileira das últimas semanas tem sido sufocante.
Um cortejo de gente esquisita desfila pelo noticiário com sua ostentação boçal, carrões, iates e aviões. Famosos "somos ricos" em férias gregas, influenciadores vigaristas e subcelebridades variadas, com roupas caras e harmonizações faciais de dar susto em criancinha, são alguns espécimes dessa fauna. Imersos em atmosfera de banditismo "posso tudo", exemplares dessa turma se envolvem com falcatruas, não raro no terreno da jogatina que corre solta no Brasil.
As famigeradas bets estão dominando o jogo. Rapidamente se tornaram responsáveis por gastos de bilhões de reais das famílias brasileiras, muitas remediadas ou pobres.
No período de janeiro a agosto, como já mostrou esta Folha, o Banco Central identificou que se gastou mensalmente em apostas via Pix uma volumosa quantia entre R$ 18 bilhões e R$ 21 bilhões. Mantido esse padrão até o fim do ano, as empresas de apostas terão recebido dos brasileiros o valor bruto de R$ 216 bilhões –lembrando que o Bolsa Família custa ao país cerca de R$ 168 bilhões anuais.
Filiados ao programa, aliás, gastaram R$ 3 bilhões em apostas no mês de agosto, cerca de 20% do valor que o governo destinou no mesmo mês para os benefícios. Onde estamos? Onde isso vai parar? Como regulamentar essa sandice –ou será que cassino também é liberdade de expressão e não deve ser regulamentado?
Não bastasse tanta bizarrice, eis que em ano eleitoral volta-se a falar de tema antigo, mas algumas vezes empurrado para debaixo do tapete, que é a presença crescente do crime organizado nas instituições, nos Poderes e na política.
Investigações sobre o envolvimento do PCC com empresas de transporte em São Paulo ou com o PRTB, partido do desvairado candidato a prefeito Pablo Marçal, estão aí nas reportagens, campanhas e debates.
Nada de novo para quem vive no país do assassinato de Marielle Franco e tem acompanhado nas últimas décadas a escalada das facções, que se estende de Sul a Norte, ocupa a Amazônia e atravessa fronteiras.
Estamos assistindo à consolidação de nossa máfia tropical como player político incrustado nos negócios e no Estado.
Entrelaçadas com essas realidades sombrias, assistimos às novas manifestações da extrema direita. É o caso espalhafatoso e notório do já citado Marçal, com seu individualismo ultraliberal, seu evangelismo pela prosperidade, suas ambições desmedidas e sua vocação para instaurar o caos.
As baixarias políticas na campanha paulistana podem ter seus antecedentes históricos, mas não há dúvida de que alguma coisa diferente, se é que essa é a melhor palavra, está emergindo do pântano da direita extremista e pretende disputar espaço com o bolsonarismo.
Sim, o quadro não é dos mais animadores. Esperemos que possa em breve desanuviar. Este mês de setembro, convenhamos, não vai deixar saudade.
Temos mais, porém. Para onde se olhe nas mídias e redes sociais, a cena brasileira das últimas semanas tem sido sufocante.
Um cortejo de gente esquisita desfila pelo noticiário com sua ostentação boçal, carrões, iates e aviões. Famosos "somos ricos" em férias gregas, influenciadores vigaristas e subcelebridades variadas, com roupas caras e harmonizações faciais de dar susto em criancinha, são alguns espécimes dessa fauna. Imersos em atmosfera de banditismo "posso tudo", exemplares dessa turma se envolvem com falcatruas, não raro no terreno da jogatina que corre solta no Brasil.
As famigeradas bets estão dominando o jogo. Rapidamente se tornaram responsáveis por gastos de bilhões de reais das famílias brasileiras, muitas remediadas ou pobres.
No período de janeiro a agosto, como já mostrou esta Folha, o Banco Central identificou que se gastou mensalmente em apostas via Pix uma volumosa quantia entre R$ 18 bilhões e R$ 21 bilhões. Mantido esse padrão até o fim do ano, as empresas de apostas terão recebido dos brasileiros o valor bruto de R$ 216 bilhões –lembrando que o Bolsa Família custa ao país cerca de R$ 168 bilhões anuais.
Filiados ao programa, aliás, gastaram R$ 3 bilhões em apostas no mês de agosto, cerca de 20% do valor que o governo destinou no mesmo mês para os benefícios. Onde estamos? Onde isso vai parar? Como regulamentar essa sandice –ou será que cassino também é liberdade de expressão e não deve ser regulamentado?
Não bastasse tanta bizarrice, eis que em ano eleitoral volta-se a falar de tema antigo, mas algumas vezes empurrado para debaixo do tapete, que é a presença crescente do crime organizado nas instituições, nos Poderes e na política.
Investigações sobre o envolvimento do PCC com empresas de transporte em São Paulo ou com o PRTB, partido do desvairado candidato a prefeito Pablo Marçal, estão aí nas reportagens, campanhas e debates.
Nada de novo para quem vive no país do assassinato de Marielle Franco e tem acompanhado nas últimas décadas a escalada das facções, que se estende de Sul a Norte, ocupa a Amazônia e atravessa fronteiras.
Estamos assistindo à consolidação de nossa máfia tropical como player político incrustado nos negócios e no Estado.
Entrelaçadas com essas realidades sombrias, assistimos às novas manifestações da extrema direita. É o caso espalhafatoso e notório do já citado Marçal, com seu individualismo ultraliberal, seu evangelismo pela prosperidade, suas ambições desmedidas e sua vocação para instaurar o caos.
As baixarias políticas na campanha paulistana podem ter seus antecedentes históricos, mas não há dúvida de que alguma coisa diferente, se é que essa é a melhor palavra, está emergindo do pântano da direita extremista e pretende disputar espaço com o bolsonarismo.
Sim, o quadro não é dos mais animadores. Esperemos que possa em breve desanuviar. Este mês de setembro, convenhamos, não vai deixar saudade.
Nada, além de pálavras
Sabemos mostrar respeitosa deferência pelas coisas que somos capazes de fazer, nós ou os nossos amigos; porém, quanto aos sentimentos, ignoramo-los em absoluto. Falamos com indignação ou entusiasmo. Discutimos a opressão, a crueldade, o crime, a devoção, o sacrifício, a virtude e nada conhecemos, além destas palavras. Saberá alguém o que significa a dor, o sacrifício? Talvez o saibam as vítimas do misterioso sentido daquelas ilusões.
Joseph Conrad, "Uma Guarda Avançada do Progresso"
Joseph Conrad, "Uma Guarda Avançada do Progresso"
À volta da aparelhagem
Tenho reparado, quando falo com jovens sobre séries, que não estão habituados a discutir.
Dizem se gostam, perguntam se gostei, e fica-se por aí. Não atacam nem se defendem. Não se esforçam por me convencer. E, sobretudo, não suspendem as opiniões, para ver se resistem às críticas, ou à apologia das opiniões contrárias. Dizem que não gostam de discussões, que são inúteis, que não mudam nada. Gostam das diferenças, mas só para aceitá-las ou rejeitá-las. Não gostam de falar delas. Não gostam da concorrência de ideias. Acham que é uma competição e que a competição só convém aos mais fortes, aos vencedores.
Mas o problema não é ideológico: é material.
Quando eu era jovem, os aparelhos que nos davam música e cinema – o estéreo, o televisor – eram forçosamente partilhados. Era preciso aprender a partilhar: a discutir, a propor, a ouvir e a ser capaz de negociar.
E, por ser preciso negociar, era preciso ouvir e ver o que os outros queriam ver e ouvir. Esta experiência prestava-se a desenvolver um espírito crítico – nem que fosse para dizer mal das escolhas dos outros.
Hoje cada um tem tudo no celular. Já não é preciso partilhar. Já não é preciso chegar a compromissos. Já não é preciso gramar as escolhas dos outros. E assim nunca é necessário adquirir o hábito – e até o gosto – de discutir.
Perante este luxo individualista – em que as nossas playlists são confidenciais, protegidas do olhar crítico dos outros – os jovens compensam com experiências coletivas de zero escolhas e comunidade forçada, como concertos e outros espetáculos.
Ou um ou mil: falta-lhes a experiência de dois, ou três, ou quatro, à volta de um único aparelho, querendo decidir como se vai ocupá-lo. Pode haver um princípio de discussão por causa do televisor da sala – mas nunca é grave, porque quem perde retira-se e vê o que quer no telemóvel.
Valerá mais o que se ganhou ou o que se perdeu?
Miguel Esteves Cardoso
Dizem se gostam, perguntam se gostei, e fica-se por aí. Não atacam nem se defendem. Não se esforçam por me convencer. E, sobretudo, não suspendem as opiniões, para ver se resistem às críticas, ou à apologia das opiniões contrárias. Dizem que não gostam de discussões, que são inúteis, que não mudam nada. Gostam das diferenças, mas só para aceitá-las ou rejeitá-las. Não gostam de falar delas. Não gostam da concorrência de ideias. Acham que é uma competição e que a competição só convém aos mais fortes, aos vencedores.
Mas o problema não é ideológico: é material.
Quando eu era jovem, os aparelhos que nos davam música e cinema – o estéreo, o televisor – eram forçosamente partilhados. Era preciso aprender a partilhar: a discutir, a propor, a ouvir e a ser capaz de negociar.
E, por ser preciso negociar, era preciso ouvir e ver o que os outros queriam ver e ouvir. Esta experiência prestava-se a desenvolver um espírito crítico – nem que fosse para dizer mal das escolhas dos outros.
Hoje cada um tem tudo no celular. Já não é preciso partilhar. Já não é preciso chegar a compromissos. Já não é preciso gramar as escolhas dos outros. E assim nunca é necessário adquirir o hábito – e até o gosto – de discutir.
Perante este luxo individualista – em que as nossas playlists são confidenciais, protegidas do olhar crítico dos outros – os jovens compensam com experiências coletivas de zero escolhas e comunidade forçada, como concertos e outros espetáculos.
Ou um ou mil: falta-lhes a experiência de dois, ou três, ou quatro, à volta de um único aparelho, querendo decidir como se vai ocupá-lo. Pode haver um princípio de discussão por causa do televisor da sala – mas nunca é grave, porque quem perde retira-se e vê o que quer no telemóvel.
Valerá mais o que se ganhou ou o que se perdeu?
Miguel Esteves Cardoso
Assinar:
Postagens (Atom)