quinta-feira, 2 de outubro de 2025

O homem mais perigoso do mundo quer ganhar o Nobel da Paz…

No final de 2019, numa sala lotada do Comité Olímpico de Portugal, assisti àquela que foi uma das últimas intervenções públicas de Adriano Moreira. A abrir um dia de debates, organizado pelo saudoso José Manuel Constantino, sobre Migrações, Desporto e Religiões – um tema agora ainda mais atual –, o velho professor de Ciência Política e Relações Internacionais, então já com 97 anos, aproveitou todo o seu conhecimento e a sua intuição para traçar um retrato dos problemas e riscos que pairavam sobre o mundo. Fê-lo numa época em que ainda ninguém imaginava que, poucas semanas depois, um coronavírus desconhecido iria paralisar meio planeta, e que, após nos livrarmos da pandemia, entraríamos numa espécie de regresso a um passado que já pensávamos ultrapassado, com múltiplas guerras, intensa polarização política, declínio democrático, limitação das liberdades e um ambiente geral que parece só estar à espera de um fósforo incauto para fazer tudo explodir. Mas antes de isto começar a ser visível, já Adriano Moreira tinha então identificado o risco principal que se encontrava à espreita. E sintetizou-o numa frase: “A maior ameaça atual ao mundo é a incultura e a leviandade do Presidente dos EUA, Donald Trump.”


Cinco anos depois, de regresso à Casa Branca, Donald Trump tem feito tudo para demonstrar o acerto da convicção de Adriano Moreira. E, em simultâneo, lembrar a justeza de um ensinamento do antigo chanceler alemão Otto von Bismarck, a quem é atribuída a frase “uma simples leviandade pode desencadear um desastre”.

Desde janeiro, Donald Trump tem utilizado essa ameaça de “leviandade” como a sua principal arma política.


Sem outra racionalidade que não seja a de provocar a incerteza e fomentar o caos, o Presidente dos EUA usa todos os momentos para lembrar à maioria do resto do mundo (não todo…) que qualquer pormenor numa negociação de tarifas ou uma discordância de pontos de vista sobre um assunto, até porventura menor, pode ser o suficiente para fazer escalar a sua posição e endurecer o tom das suas ameaças. Ou seja: provocar o tal desastre. E fá-lo sempre escudado no imenso poder militar da maior e mais experimentada máquina de guerra do mundo. Como que a avisar que, em última opção, não hesitará um segundo em esmagar quem lhe mostrar a mais pequena oposição.

Donald Trump quer ganhar o Prémio Nobel da Paz, mas é atualmente o homem mais perigoso para a paz. Quando se vangloria, num discurso provocador na Assembleia Geral das Nações Unidas, de já ter acabado com sete conflitos nos primeiros oito meses deste seu segundo mandato, ele não está só a efabular e a deixar-se levar pelo seu exagero habitual. O que ele está a dizer, sem o nomear, é algo muito aterrador. É isto: “Não me contrariem, se não…”

A verdade é que são cada vez menos os que o contrariam. Prova disso é o facto de aqueles que, ainda há poucos anos, se riram ruidosamente com as diatribes de Trump nas Nações Unidas terem agora optado pelo silêncio, perante um ataque verbal quase sem precedentes às instituições globais, à ciência e a um conceito de Humanidade que tenha os direitos humanos no seu centro, e não o poder da força.

Donald Trump quer acabar com as Nações Unidas por uma única e exclusiva razão: porque quer ocupar esse espaço no centro do mundo, poder impor a sua decisão e não precisar de dialogar com mais ninguém. É essa a cartilha que está a exportar para os outros países.

Neste contexto, o mais grave nem sequer é o facto de os populistas de todo o mundo terem passado a copiar o estilo e os argumentos de Trump. Nada de diferente seria de esperar, a esse respeito. O pior de tudo é o grau de silêncio e de tolerância, nalguns momentos a roçar a submissão, com que tantos líderes de países democráticos passaram a encarar as ameaças e as diatribes emanadas de Washington, nomeadamente na Europa, que deveria ser o farol dos valores de democracia, da liberdade e da justiça social.

Por mais que deseje o Nobel da Paz, o que Donald Trump está a fazer é a tornar o mundo mais perigoso. Um mundo em que cresce a intolerância, se reprimem as liberdades e se controlam os negócios sempre para a defesa exclusiva dos interesses de quem detém o poder e a força. O que ele quer é exportar o caos e promover a ascensão de ditadores em cada país, com quem pode dialogar no mesmo comprimento de onda.

Assim, ao continuarem a mostrar-se submissos e resignados perante essa forma de estar de Trump, com medo de o enfurecer, os líderes europeus não só se tornam cada vez mais irrelevantes no plano internacional, como acabam por ser cúmplices da Administração dos EUA com os contínuos ataques à democracia e aos direitos humanos. E, com isto, ficam à mercê das consequências de uma qualquer leviandade.

Tempos sombrios e esperança

Observando o que acontece no mundo, afirmo que vivemos tempos sombrios. A escuridão, que cobre cada vez mais o mundo, tem diversos componentes, muitos deles desconexos, que, combinados, formam um véu cinzento que torna o futuro incerto.

As guerras mais destacadas pelos meios de comunicação ocorrem no Médio Oriente e na Europa. No entanto, o número de mortes por guerras e outros conflitos armados em África, bem como as mortes violentas decorrentes do crime organizado, muitas vezes superam as relatadas pelos meios de comunicação. As chamadas mortes indiretas, decorrentes desses conflitos, mas não causadas por ferimentos de guerra ou outros tipos de violência, agravam este panorama. As alterações climáticas, atribuídas por consenso científico à ação humana, estão a produzir consequências trágicas em todo o mundo. As nações mais ricas e poluidoras fingem não ter nada a ver com elas. A isso se soma a situação política de alguns países, que está a levar as democracias ao suicídio e ao surgimento de movimentos políticos extremistas.

Precisamos compreender a escuridão do mundo para agir, se quisermos que a humanidade tenha um futuro.

Hannah Arendt, em alguns dos seus livros, como Homens em tempos sombrios ou Origens do totalitarismo, analisa a escuridão dos tempos. Não vou aqui me alongar sobre a brilhante e profunda análise de Hannah, simplesmente copio duas frases que, segundo ela, caracterizam a escuridão do mundo:

• Dissolução da verdade factual: em ensaios como Verdade e política e Sobre a mentira na política, ela mostra como a manipulação sistemática dos fatos cria um clima de irrealidade. Quando tudo se torna opinião, extingue-se a luz que guia o julgamento comum.

• Massificação e solidão: em Origens do totalitarismo, a base do totalitarismo é a atomização: indivíduos isolados e desconectados tornam-se presas fáceis de ideologias que prometem um significado total. A solidão política abre caminho para o terror.

A obscuridade deste mundo não tem o mesmo tom em todos os lugares. Algumas características são semelhantes e estão a ser distribuídas, quase universalmente, pelas tecnologias de comunicação instantânea. Alguns tons sombrios – paradoxalmente – são evidentes. Sempre que fatos e dados se confundem com opiniões e ideologias, as relações humanas se obscurecem, a ciência se retrai e a política torna-se cinzenta. O isolamento e a atomização dos indivíduos impedem olhar para o outro e vê-lo como um ser humano, igual a quem o está a olhar. Os movimentos identitários, que muitas vezes defendem causas justas, contribuem, às vezes sem querer, para o isolamento, pois as relações só se dão dentro do mesmo círculo.

A realidade é obscurecida por ecossistemas de desinformação, hoje auxiliados pela inteligência artificial. A polarização e a política transformada em espetáculo substituem a deliberação civilizada. Muitas vezes, a indignação é recompensada, prevalecendo sobre a compreensão. E se somarmos o stress climático e a precariedade econômica para a grande maioria, produz-se um retrocesso político e a democracia sofre.

Hannah e eu somos otimistas/realistas diante da crescente escuridão do mundo. Vivendo em tempos “sombrios”, não estamos resignados a permanecer neste estado. A escuridão aumenta a necessidade e a oportunidade de acender luzes individuais e coletivas que possam colaborar para diminuir a penumbra, ou pelo menos iluminar um caminho. A responsabilidade de acendê-las não é transferível, é individual, e é dever de cada um que, insatisfeito, percebe a penumbra.

A título de exemplo, podemos mencionar algumas ações que iluminam:

• Cooperação científica e tecnológica.

• Jornalismo independente que apresenta fatos e dados que alimentam a luta contra opiniões.

• Criação de associações (e instituições) nas quais a palavra e a ação importam.

• Organização e participação em eventos em que o pensamento crítico seja fomentado.

• Ensino do método científico na infância para formar cidadãos que não aceitem argumentos de poder.

• Proteção do pluralismo.

Esses exemplos limitados podem estimular a imaginação coletiva, produzindo uma imensa quantidade de canais que iluminem a escuridão que nos rodeia.

Um pobre-diabo

Estendeu a mão ao deputado governista e balbuciou algumas palavras confusas, de que ele mesmo ignorava a significação. O gesto era contrafeito: enquanto o braço avançava timidamente, o resto do corpo se retraía, parecia querer recuar para além da parede. Correu a vista pelos quadros ali pendurados, deteve-se numa paisagem verde e azul, bastante desenxabida. Teve a impressão de que, se continuasse a encolher-se, iria achatar-se como a paisagem — coqueiros verdes e céu azul. A voz era uma espécie de ronco inexpressivo.

— Homem das cavernas, monologou. Criatura paleolítica. Homem das cavernas, sem dúvida.

Mas, em vez de dizer qualquer coisa que melhorasse a sua triste situação, pensou nos trogloditas e, como se achava perturbado, confundiu-os com a multidão que fervilhava lá embaixo, na rua. Avizinhou-se da janela. As pessoas que rolavam nos automóveis apareceram-lhe armadas e ferozes, cobertas de peles cabeludas. Olhou com desgosto a mão que tinha apertado a mão do político influente. Comprida, fina, inútil.

A chaminé da fábrica elevava-se a distância. Anúncios verdes, vermelhos, acendiam-se e apagavam-se. O letreiro de um jornal reluzia em frente, num quinto andar. Àquela hora o elevador enchia-se, tipos suados, de roupas frouxas, entravam e saíam. Os ônibus e os bondes moviam-se devagar, como formigas, e a carga deles aumentava ou diminuía nos postes, uma parte esgueirava-se na sombra — linhas insignificantes dentro da noite.

— Criatura paleolítica. Mãos compridas, finas, inúteis.

Esta incoerência irritou-o. Desejou afastar-se, atravessar a porta, entrar no corredor, virar à esquerda, tocar um botão, descer, ziguezaguear à toa pela cidade, traço insignificante.

Chegou-se à mesa. Ouvia desatento a voz sonora do político, sentia nela estranho poder, achava natural que na câmara as galerias se excitassem e batessem palmas escutando-a. Notava apenas que ela o jogava para direções contrárias: a porta meio cerrada e a parede onde se penduravam os coqueiros verdes e o céu azul.

Pensou no jogo de bilhar. Massé? Era, devia ser massé. A bola avançava, mas recuava antes de alcançar a tabela ou outra bola. Jogo difícil. Massé? Tinha ouvido a palavra. Ouvido ou lido, não sabia direito. Bola de bilhar. Isto. Bola de bilhar não tem memória.

Em todo o caso o deputado governista era um bom jogador. Via-lhe a mão curta e gorda, bem tratada, muito branca, e lembrava-se dos artigos e dos livros que ela havia redigido. Imaginou-a mexendo-se no papel com segurança, compondo uma prosa gorda, curta e branca, prosa que lhe dava sempre a ideia de toicinho cru. Detestava aquilo, desprezava o autor, um pedante, homem de frases arrumadas com aparato. Lendo-o, sentia-se duplamente roubado. Em primeiro lugar perdia tempo. E como levava uma vida ruim, gastando solas sem proveito em viagens às repartições, achava injustiça a ascensão do outro. Injustiça, evidentemente. Um roubo.

A amargura e o veneno desapareciam. Apertava as mãos úmidas, tentava dominar a carne bamba, que pesava demais, queria despregar-se dos ossos. Se ao menos tivesse uma cadeira para se sentar, a atrapalhação ficaria reduzida. Recostar-se-ia, cruzaria as pernas, balançaria a cabeça aprovando, naturalmente. Pareceria um sujeito educado. Mas assim de pé não se aguentava: ora caía para um lado, ora caía para outro, escorava-se à mesa, não podia resistir ao desejo de subir nela. As nádegas encostavam-se à tábua, pouco a pouco iam ganhando terreno, firmavam-se, uma perna se levantava, balançava.

O político influente passeava sem se fatigar. Dava três passos, parava, voltava-se, dava três passos novamente, tornava a parar, e assim por diante. Máquina bem construída, nenhuma peça prejudicava a função das outras. E falava. Quando se detinha, a mão curta e gorda movia-se traçando vagamente no ar a figura de um vaso, um vaso bojudo que encerrava o discurso.

Que dizia o deputado? Não podia compreender, mas deviam ser coisas graves e corretas, diferentes daquela prosa escrita, gorda e mole. Encolheu-se cheio de respeito, vencido pelo som e pelo gesto conveniente.

Em casa, de pijama e chinelos, em frente do livro ou do jornal, ser-lhe-ia fácil discutir e indignar-se, catar minudências, concluir que estava sendo roubado. Soltaria o papel, acenderia o cigarro, deitar-se-ia na cama. Depois retomaria com rancor o livro ou o jornal, torceria o nariz a um defeito qualquer, e o defeito se alastraria na página inteira como nódoa. Diria injúrias mentalmente ao deputado, comparar-se-ia a ele, queixar-se-ia da sorte.

Agora estava distraído e incapaz de julgar. As palavras do orador perdiam-se, confusas. O que havia era o gesto, o gesto que desenhava no ar figuras bojudas. Teve a impressão extravagante de que a sala se enchia de panelas. Isto lhe causava sério transtorno, porque, andando com firmeza no soalho bem envernizado, o político havia crescido muito. Sumira-se o escritor medíocre. Um sujeito respeitável movia-se com aprumo e dignidade. Os olhos duros e cinzentos contrastavam com a voz suave; a queixada larga avançava, agressiva, armada de fortes dentes amarelos; os cantos da boca pregueavam-se ligeiramente; o rosto vermelho tomava a aparência de uma cara de gato.

Sentiu medo. Quis afastar-se — e percebeu que estava sentado na mesa, diante do orador governista, que se conservava de pé. Escorregou para o chão, envergonhado.

Recordou-se da situação difícil em que se tinha achado muitos anos antes, ao descer de um bonde. Correra perigo imenso, e ainda se arrepiava ao passar por aquela amaldiçoada esquina. Desenroscara-se do banco, pisara no estribo, saltara no asfalto, dera dois passos para a calçada de uma drogaria, onde caixões e um poste pintado de branco fechavam o caminho. Um buzinar de automóvel, à direita, esfriara-lhe o sangue. À esquerda uma carroça de leiteiro ia passar em frente ao bonde parado. Os três veículos combinavam-se perfeitamente: o bonde continuaria a viagem depois da passagem da carroça; o automóvel, sem diminuir a marcha, formaria com a parte traseira dela um ângulo reto. Fora meter-se ali, no espaço minguado. Mexia-se desordenadamente e não conseguia orientar-se. Num segundo revolvera na cabeça muitas coisas desencontradas: cenas da infância, a escola, o professor ranzinza, empregos ordinários, dias de fome, o pigarro antipático da mulher da pensão. A morte buzinava, empurrava-o para todos os lados, fazia-o dançar no asfalto como uma barata doida. Se retrocedesse, não alcançaria o estribo do carro. Com um salto poderia chegar à calçada, mas os caixões cresciam, oscilavam, ameaçavam cair, esmagá-lo antes que o automóvel o tocasse. O poste oscilava, as casas em redor oscilavam, os andares altos da drogaria queriam desabar e obstruir a rua. Apenas o bonde se imobilizara. A carroça de leiteiro movia-se no mesmo lugar, o automóvel rodava uma eternidade sem adiantar-se. Fugira-lhe a consciência. Ia tropeçar, tombar, esquecer as casas, os veículos e as pessoas. Acordara abraçado ao poste, achatando-se como uma lagartixa, forcejando por livrar-se de um objeto áspero que lhe roçava as costas. Pisara a calçada, apoiara-se a um caixão, desmaiado e quase idiota.

A angústia que experimentara naquele dia voltava-lhe agora, ao descer desajeitadamente da mesa. Avançou atordoado no soalho, ouviu passos à direita, temeu recuar, pareceu-lhe que o político ia transformá-lo numa pasta vermelha. Não ousou virar-se para a esquerda, onde qualquer coisa devia fechar-lhe o caminho. Ficou ali de pé, sentindo vagamente que, se conseguisse andar dois metros, evitaria um desastre.

Deu algumas pernadas e encostou-se à parede, respirando a custo. Bem. Estava em segurança. Afirmou que estava em segurança, e a ideia do perigo sumiu-se completamente. A presença do orador governista já não lhe inspirava temor: o que lhe causava era admiração, respeito supersticioso. O olho duro e cinzento continuava a fixar-se nele como um olho de cobra.

— Em segurança.

Apesar de se ter dissipado o pavor que o agarrara ao afastar-se da mesa, não se resolveria a abandonar o refúgio conquistado junto à parede, ao pé da janela.

Quis ver a rua novamente. Se voltasse o rosto, avistaria a chaminé da fábrica, o arranha-céu que tinha uma redação no quinto andar. O elevador subia e descia, repórteres apressados entravam e saíam.

Não se voltou: uma grande preguiça amarrava-o, dava-lhe jeito de estátua.

— Estátua muito mal-arranjada, pensou.

E sorriu, descobrindo que não perdera o discernimento. Tentou aparentar desembaraço, falar. A voz rouca, metálica, fanhosa, escapou-lhe como um grunhido.

Aquela voz horrível sempre lhe causara prejuízos. Conhecendo as desvantagens que ela produzia, calava-se diante de pessoas estranhas, manifestava-se por meio de caretas.

Não sabia precisamente o que dizia naquele instante. Repetiu as últimas palavras do deputado e logo se conteve. O som desagradável trouxe-lhe a ideia de serras chiando em madeira dura. Talvez a repetição fosse inconveniente ou viesse retardada, fora de propósito. Fazia com efeito um minuto que o orador andava em silencio, certamente esperando que ele se despedisse. A mão deixara de agitar-se acariciando a frase redonda, as figuras bojudas como panelas tinham desaparecido.

Bem. Achou que a personagem diminuíra um pouco, tomara proporções quase vulgares. A pupila dura espetava-o, mas o discurso findara — e evidentemente existia redução.

Precisava sair dali, percorrer as avenidas, entrar nos cafés, abalroar os transeuntes, escutar pedaços de conversas, desviar- se dos carros, ver miudinhos os tipos imponentes e dominadores. Aquela entrevista, que lhe havia colado no espírito algumas esperanças, acabava mal. Nem o pedido, laboriosamente preparado, conseguira formular. As esperanças pouco a pouco se desgrudavam — e ele esmorecia, como uma grande ave depenada.

Um arrepio atravessou-lhe a coxa, subiu o tronco e foi morrer nos músculos do pescoço, entortando-lhe o rosto e livrando-o dos olhos maus do orador governista. Examinou com atenção distante a moldura dourada que cercava os coqueiros verdes e o céu azul. Novo arrepio. Uma grande ave depenada e friorenta.

Lembrou-se de outra moldura que lhe havia caído, anos atrás, em cima da cabeça. Escrevia com dificuldade, folheando o dicionário; o quadro pesado se despregara e lhe partira o couro cabeludo.

Desviou-se precipitadamente, levantou o braço para se defender. O político influente interpretou mal o gesto e estendeu-lhe a mão:

— Adeus.

— Muito obrigado, doutor, respondeu sem refletir.

O resto se perdeu num murmúrio. Deu uns passos vacilantes na madeira envernizada e escorregadia, retirou-se tonto, sentindo na cabeça a pancada que lhe tinha rachado o couro cabeludo, anos atrás.

Ao cerrar a porta, respirou com alívio. Meteu-se num corredor escuro, dobrou esquinas, parou, apertou um botão, acendeu um cigarro, pensou nos telegramas estrangeiros lidos pela manhã. Penetrando no elevador, mastigava o cigarro, nervoso. À medida que descia tranquilizava-se. E ao pisar na calçada, criticava livros, mentalmente. A literatura do político era com efeito ridícula.

Remoeu as coisas desparafusadas que ele escrevera. Malucas, absolutamente malucas. Roeu as unhas com fúria e multiplicou o deputado:

— Cretinos.

Graciliano Ramos

Trump não é o Kissinger do Médio Oriente

Dois anos após o bárbaro ataque de 7 de outubro de 2023, a guerra em Gaza deixou de ser apenas um conflito armado. Tornou-se o espelho de uma crise moral e diplomática que expõe Israel a uma solidão cada vez mais visível. Os números falam por si: mais de 65 mil palestinos mortos, dezenas de reféns ainda em cativeiro, uma devastação que já não se mede apenas em vidas perdidas, mas também numa legitimidade em erosão contínua.

Benjamin Netanyahu, que outrora se apresentava como guardião de Israel, é hoje o rosto de uma barbárie marcada por crimes de guerra. Enquanto países como o Reino Unido, França, Canadá e Austrália – insuspeitos de qualquer simpatia pelo Hamas – reconheceram formalmente o Estado palestino, na ONU o primeiro-ministro discursava para uma sala que se esvaziava em protesto. A fotografia é inequívoca: Israel já não fala aos seus aliados, mas às paredes de auditórios desertos, reflexo de um isolamento que se adensa a cada semana.


O regresso de Donald Trump à Casa Branca acrescenta uma ironia cruel a esta paisagem. O Presidente dos Estados Unidos, reciclado como mediador improvável, recebe Netanyahu em Washington com um plano de vinte pontos que mistura pragmatismo e espetáculo. O objetivo declarado é transformar a devastação em Gaza numa oportunidade de paz, abrindo a porta à normalização das relações de Israel com a Arábia Saudita, o Líbano, a Síria e até, possivelmente, o Iraque. A arquitetura desta visão não nasceu em Washington, mas no círculo de Jared Kushner, Steve Wittkoff e Tony Blair, que procuram redesenhar o “Grande Médio Oriente” e transformá-lo num mercado financeiro ou imobiliário.

Trump redesenha assim, na prática, os Acordos de Abraão, constrói uma coligação com vários países árabes e muçulmanos – incluindo a Turquia, que historicamente sempre insistiu em que o Hamas não é uma organização terrorista – e encurrala o Grupo. Pressiona contra anexações, promete a libertação de reféns e corteja aliados árabes. A sua aposta é clara: apresentar-se como o único capaz de impor um acordo, tratando a Palestina como um negócio a fechar, sem disfarçar a indiferença moral que o caracteriza.

Mas as dificuldades são evidentes: um plano ambicioso, mas proposto no meio de uma violência e de uma desconfiança sem precedentes. Para funcionar, exigirá um cessar-fogo imediato, a retirada faseada das tropas israelitas, a libertação simultânea de reféns e prisioneiros e a reconstrução de Gaza sob supervisão internacional. No papel, a Faixa passaria para uma administração tutelada por uma força estrangeira, com participação árabe e um papel residual da Autoridade Palestina, enquanto um “Conselho da Paz” exerceria de fato a sua administração.

Netanyahu encenou na ONU a sua intransigência, comparando a criação de um Estado palestino a entregar território à Al-Qaeda depois do 11 de setembro. Falou em “acabar o trabalho” em Gaza, no seu habitual tom de confronto. Mas não convenceu ninguém que não estivesse já convencido. As famílias dos reféns protestaram, os delegados abandonaram a sala. A guerra, que começou como resposta a um massacre, transformou-se no álibi de uma fuga para a frente, minando os interesses estratégicos de Israel.

Daí a desconfiança perante a sua súbita vontade de negociar de boa-fé. Os obstáculos são de ordem política e existencial. Netanyahu resiste porque ceder significaria trair a coligação de colonos e ultranacionalistas que sustenta o seu poder. O Hamas resiste porque qualquer concessão seria vista como rendição. E no meio deste cinismo, muitos líderes proferem uma coisa em privado e outra em público. O plano de Washington, ainda que menos fantasioso do que a “Riviera de Gaza”, mantém ambiguidades profundas. Prevê zonas de segurança israelitas “por tempo indeterminado”, eleições palestinianas e uma Autoridade Palestina relegada a nota de rodapé. As condições mínimas para manter a possibilidade de um Estado palestino passam por uma retirada israelita real de Gaza e pela suspensão imediata da construção de colonatos na Cisjordânia. Sem isso, não será possível restaurar a confiança entre ambos.

Do lado árabe, a coligação delineada por Trump não é homogênea. O Qatar, a Turquia, o Egito e a Jordânia pressionam os líderes do Hamas, mas terão exigido limites claros à supervisão internacional e um calendário para a solução dos dois Estados, consagrada na Declaração de Nova Iorque, já recordada pela França e pela UE. Internamente, figuras como Benny Gantz veem uma oportunidade histórica, Yair Lapid oferece a Netanyahu uma rede de segurança, enquanto Bezalel Smotrich exige um futuro sem Autoridade Palestina. Todos sabem, porém, que sem acordo Israel ficará condenado a uma ocupação permanente em Gaza e a uma insurgência sem fim.

É inegável que as vitórias militares israelitas contra o Irã e o Hezbollah abriram um espaço sem precedentes para a integração regional. A queda do regime sírio pró-Irã, o fortalecimento do Líbano e do Iraque e até o debate interno em Teerã sobre os custos de apoiar “proxies” revelam uma transformação em curso. É este o momento que os arquitetos do plano querem converter numa vitória política, transformando os ganhos militares numa vitória diplomática.

Mas o futuro – e o histórico da região – não inspira otimismo. A curto prazo, a presença israelita em Gaza dificilmente terminará tão cedo e os colonos não abandonarão voluntariamente a Cisjordânia. A médio prazo, a provável consolidação do “Conselho da Paz” como instituição permanente, juntamente com o afastamento da Autoridade Palestina, tornará inviável a solução dos dois Estados, desligando os governos de Gaza e da Cisjordânia e enterrando de vez os Acordos de Oslo. A longo prazo, o Médio Oriente já nos ensinou que as profecias geopolíticas são perigosas. Mas apesar dos traços neocolonialistas do plano, ele parece ser neste momento a única via possível para pôr termo à violência.

A conferência de imprensa de Trump e Netanyahu revelou-se mais um monólogo surrealista do que um ato de diplomacia. Ainda assim, um cessar-fogo imediato, a entrada de ajuda humanitária e a promessa de fim do governo do Hamas são avanços necessários e bem-vindos. Porém, o papel da Autoridade Palestiniana – e com ele de um governo representativo dos palestinianos – permanece incerto, subordinado a um “Conselho de Paz” que, conhecendo o Presidente dos Estados Unidos, pode muito bem não passar de uma fachada para extrair benefícios para si e para o seu círculo mais próximo. Alguém acredita realmente que o Presidente dos Estados Unidos – ou o seu sucessor, sendo ele J.D. Vance – abdicaria do seu “mandato” sobre a região?

Gaza ainda corre o risco de se transformar na Riviera privada do Presidente dos Estados Unidos. Portanto, talvez ainda seja cedo para entronizar Trump como o Kissinger do Médio Oriente – ou encomendar o Prêmio Nobel da Paz.