Para quem se prepara para 2022 em meio à pandemia, só o luto dessas utopias pode significar algum amadurecimento
Já estamos na terceira década do século 21. Agora olhamos o século 20 como de fato século passado. Para quem tem 20 anos hoje, o século 20 é como para nós, nascidos nele, o século 19 fora.
Existem muitas formas de tempo. O biológico —o envelhecimento—, o cósmico e o natural —o tempo do Universo e da natureza—, o social —frutos das relações materiais do mundo—, o psicológico —a experiência interna da consciência—, o histórico —fruto das narrativas documentadas do passado— e o político —o tempo das transformações e ações dos agentes e instituições políticas.
Há um caráter atípico dos últimos 300 anos: o processo de modernização. O senso comum, que vive pela suposição de que o mundo seja um mar calmo de evidências, pode se dar ao luxo de crer nas ilusões e expectativas criadas pelas utopias da primeira modernização, aquela do final do século 18, que se espraia ao longo do 19, até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Revolução Russa (1917 e 1923).
Quais eram essas utopias? Progresso técnico e científico que gerariam progresso social, psicológico, político. Fé de que ali onde Deus falhara, nós teríamos sucesso: o mundo avançaria a passos largos, e cada vez mais acelerados, em direção a um futuro cada vez mais glorioso em todos os sentidos. Os jovens que nascessem ao longo desse processo seriam seres humanos cada vez mais evoluídos.
Essa forma de crença permanece ativa até hoje na fala das pessoas. A ideia de que evoluímos, assim como evoluem as gerações de iPhones, permeia as relações diárias, quando a conversa entre pessoas faz um desvio em direção a visões supostamente mais profundas acerca do nosso tempo. Para muitas pessoas que vivem o luxo da ilusão da evolução histórica, essa forma de crença é um dado da realidade como são as pandemias, os trovões e os relâmpagos.
Há que se reconhecer que muito do pensamento profissional é bastante responsável por essa ilusão. Termos como “progressista” e “conservador”, usados no dia a dia para identificar pessoas e formas de análise do mundo —típicos do vocabulário da primeira modernização—, traem esse perfil.
Mas existem outras formas eruditas de apreciação da modernidade e do contemporâneo que oferecem um olhar mais consistente sobre nosso tempo.
“Histórias de Conceitos” do historiador alemão Reinhart Koselleck (1923-2006), recém-publicado pela editora Contraponto, é um exemplo magistral do que é esse olhar. O autor tem outros títulos publicados no Brasil, entre eles, uma pequena coletânea de ensaios cujo título é “Uma Latente Filosofia do Tempo” pela editora da Unesp. Essa edição conta, também, com uma vigorosa introdução escrita pela historiadora e professora da UFMG Thamara de Oliveira Rodrigues.
Recomendo para quem se interessar em ensaiar um distanciamento da ilusão com relação à experiência moderna ao longo do século 21.
Muitos criticam Koselleck como um historiador conservador, qualificação que, no mundo da mídia, normalmente, é um indicativo de quem não é de confiança para as pessoas de bem. Para Koselleck, a modernização implicou um adensamento da aceleração do tempo, ou seja, o processo descrito aqui, como fruto do impacto das transformações em várias esferas da vida —psicológica, social, política.
Mas o século 21 tende a uma espécie de estagnação dessa aceleração ou uma desaceleração do tempo. Como assim? Ainda que inovações técnicas ocorram, as utopias que organizaram o “horizonte de expectativas” —lugar das utopias modernas, entre outras coisas— se desfizeram. A partir da dobradinha das duas grandes guerras, da Revolução Russa e da gripe espanhola, só a ignorância ou a má-fé podem sustentar essas expectativas redentoras.
Para quem se prepara para 2022 em meio à parafernália da pandemia atual, só o luto dessas utopias pode significar algum nível de amadurecimento. A história anda em círculos e não vai para lugar algum. Como diria o historiador Jacob Burckhardt (1818-1897), a história narra “o homem como sempre foi, como é, e será, se esforçando, agindo, sofrendo”.
Terei dois períodos de folga esse ano: cinco dias agora no Natal e cinco dias depois…Não estou reclamando não, a missão eu fui atrás dela porque quis, fui candidato porque quis…Dei azar e ganhei
O filme “Nem Tudo se Desfaz”, do cineasta bolsonarista Josias Teófilo, tem uma tese curiosa sobre o nosso antipresidente: ele provoca o escândalo e a perturbação que, em outras épocas, coube aos artistas despertar no homem médio. Hoje, sustenta o filme, depois de décadas de doutrinação na arte esquerdista, ninguém mais se espanta quando um ator/diretor como José Celso Martinez Corrêa aparece pelado, proferindo alguma blasfêmia. O que choca de verdade os espíritos convencionais é Jair Bolsonaro (foto).
Lembrei dessa apreciação estética do nosso mandatário ao assistir o vídeo que um de seus assessores postou hoje nas redes sociais. Nele, Bolsonaro se diverte na traseira de uma lancha cercada de jet skis, na companhia de uma “galera”, enquanto um funk em sua homenagem toca a todo volume.
Confesso que fiquei boquiaberto. Como os “temperamentos regulares”, como a “geleia pasma” de quem o modernista Mario de Andrade zombava em sua “Ode ao burguês”, eu me dei conta, mais uma vez, que é importante para mim que o homem que ocupa a Presidência da República tenha alguma compostura e não seja tão inapelavelmente grotesco.
Segundo o assessor de Bolsonaro, as imagens demonstram que ele não está nem um pouco preocupado com o jantar que reuniu Lula e Geraldo Alckmin neste domingo – ambos prováveis companheiros numa chapa que deve enfrentá-lo nas eleições do ano que vem.
De fato, Bolsonaro não parece preocupado. Nem com os adversários, nem com qualquer outra coisa. Ele dança, dá risada, faz mímicas. Aponta o próprio sovaco quando a música diz que “mulher de esquerda tem mais pelo que cadela”.
Dirão os bolsonaristas, como aqueles que rebolam no vídeo ao redor do infame: “Quer dizer então que o presidente não pode descansar no fim do ano? Não pode brincar um pouco, para descontrair?”
Francamente. O que um presidente não pode é ser tão debochado. Ele não pode se descolar tão completa e despudoradamente da realidade que o cerca, num país onde milhões de pessoas terão um Natal magro; onde 69% dos eleitores acreditam que a economia está no caminho errado, segundo a pesquisa divulgada hoje pelo Ipespe, e por isso têm medo do futuro.
Tudo no vídeo de Bolsonaro é ofensivo: os gestos, a música, os símbolos estúpidos de ostentação que são a lancha e os jet skis. Josias Teófilo tem razão. José Celso não me espanta. Mesmo depois de quatro anos, mesmo depois de tudo que Jair Bolsonaro já disse e já fez, é a sua incompatibilidade absoluta com a Presidência que ainda agride como um tapa e continua a me escandalizar.
Enquanto políticos, juristas e analistas em geral discutem se o que Bolsonaro comanda é genocídio, extermínio, mortandade ou carnificina, o criminoso ri da discussão semântica, dobra a aposta e ataca outra vez. Agora, nega vacinas para crianças. O massacre de 620 mil brasileiros nos cemitérios não basta. O vírus pede mais sangue, e Bolsonaro se dispõe a despachar a encomenda.
No costumeiro estilo miliciano, ele expande a truculência e parte para cima da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que autorizou a imunização para crianças entre 5 e 11 anos. Até pouco tempo atrás parceiro do delinquente em protesto negacionista e, hoje, ao que parece, distanciado do Planalto, o diretor-presidente da Anvisa, Barra Torres, pediu proteção policial para servidores e diretores da agência, tamanha a gravidade das ameaças.
Não é só a Anvisa que recomenda a imunização para os pequenos. A OMS, países da União Europeia, Estados Unidos e vizinhos aqui na América Latina fazem o mesmo. Mas o Ministério da Saúde é comandado pelo sabujo Marcelo Queiroga, que diz precisar de mais tempo para estudar o assunto e que só irá decidir em janeiro, depois de uma consulta popular. Daqui a pouco vai dizer que a vacinação precisa ser decidida em plebiscito.
Faz sentido. Se não tem impeachment para tirar esses bandidos do poder, eles sentem-se à vontade para lubrificar as engrenagens da máquina mortífera. A Covid mata crianças e também faz delas agentes transmissores do vírus para todos que lhes são próximos. Negar a proteção da vacina é de um grau de perversidade difícil de assimilar, mas o que esperar de alguém que defende a tortura, como Bolsonaro, a não ser podridão humana?
O que ainda impressiona é que nenhuma instituição política e/ou jurídica do país seja capaz de deter esse assassino. Instituições e seus representantes inertes são cúmplices da morte e da naturalização da desgraça que nos assola e nos condena a mais um ano com o genocida no poder.