sexta-feira, 30 de abril de 2021

Pior do que a marca de 400 mil mortos é a perspectiva de chegar aos 500 mil

O estágio civilizatório de uma sociedade é o resultado da análise de tudo o que sobra para ser desenterrado na posteridade. No futuro, quando a arqueologia fizer suas escavações à procura de sinais que ajudem a entender a decadência do Brasil, encontrará em meio aos ossos dos mortos por Covid-19 evidências de que não foram apenas os erros que produziram uma tragédia sanitária no Brasil, mas o modo como o país agiu depois de cometer esses erros.

A pandemia do coronavírus é uma tragédia planetária. No Brasil, o vírus produziria cadáveres em qualquer circunstância. Mas nenhum país chega à marca de mais de 400 mil mortos por acaso. Há método na insanidade brasileira. O país parece ter feito uma opção preferencial pelo erro. Bolsonaro, porém, declarou na terça-feira, em frente ao Palácio da Alvorada: "Eu não errei em nada." Algo de muito errado acontece quando um administrador público acha que está sempre certo.

Para o presidente, a pandemia era uma "gripezinha" que estava no "finzinho". E a segunda onda não passava de "conversinha". Em função desse negacionismo, o Brasil convive com dois flagelos: a escassez de vacinas e o excesso de cloroquina. Imaginou-se que a livre circulação do vírus conduziria à imunidade coletiva. O que se verificou foi o surgimento de uma nova cepa do vírus, mais letal do que a primeira.

A despeito de tudo, Bolsonaro continua desprezando a máscara e enaltecendo a cloroquina. O presidente rejeita a ideia de se vacinar sob holofotes, para dar o exemplo. Com a sinceridade de quem não sabia que estava sendo gravado, o general Luiz Eduardo Ramos, chefe da Casa Civil, disse ter tomado a vacina escondido, tamanho é o receio de desagradar o capitão.

Num ambiente assim, o pior não são os erros que levaram o Brasil à marca dos 400 mil mortos, mas a perspectiva de chegar aos 500 mil cadáveres sem perceber que há um remédio infalível para cada culpa: reconhecê-la.

Por que os tiranos enchem a boca falando de 'povo'?

Não deve ser uma casualidade que os ditadores e tiranos adorem falar de “povo”. No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro sempre se refere ao povo. Dias atrás, disse a seus seguidores que está “aguardando o povo dar uma sinalização” para tomar decisões.

Quem é esse povo ao qual os ditadores sempre se referem? Em suas bocas, “povo” soa como um rebanho que segue fielmente as ordens do déspota. É a massa que obedece às cegas as ordens do tirano de plantão que a hipnotiza para torná-la objeto passivo de seus caprichos.

Para eles, o povo é formado pelos mais incultos, pelos mais pobres, pelos que ficam sempre à margem das pessoas que detêm o poder e decidem o que é melhor para eles. Eles não precisam pensar. O tirano pensa por eles.

Para os regimes autoritários, da qualquer cor política, basta oferecer miragens ao povo. O povo não tem direitos. Deve apenas seguir as ordens do dono do rebanho.


A diferença entre democracia e ditadura é que para a primeira existe a sociedade —plural, crítica, criativa, pensante— e, para a segunda, existem apenas as massas que esperam ordens do pai patrão que pensa e decide por elas.

A civilização é criada com o diálogo, a crítica e a polêmica.

A sociedade é construída com liberdade para criar e decidir em conjunto. A civilização supõe um confronto de ideias para chegar às melhores soluções na tentativa de oferecer oportunidades para todos. As pessoas têm sua individualidade, cada uma é diferente e tem o direito de discordar e dialogar. Uma civilização respeita e defende as diferenças. As tiranias anestesiam as massas. A civilização se enriquece com a dissensão e o pluralismo de ideias.

Nunca gostei do grito de “o povo unido jamais será vencido”. A verdade é que esse povo do qual os ditadores tanto gostam acaba sempre derrotado, mesmo quando tem a ilusão de ter vencido. Acaba sempre dominado e nos braços de outra ideologia.

O povo do qual os autoritários gostam é aquele ao qual nunca ofereceram igualdade de oportunidades para avançar na vida. Por isso, nos regimes sem democracia, com desigualdades sociais cruéis, seus líderes idolatram o povo, que para eles é mais fácil dominar e enganar.

Não por acaso, os regimes totalitários são os que menos valorizam a educação e a cultura, os pilares que nos permitem ter nossa própria visão do mundo.

É mais fácil escravizar os incultos, os que não são capazes de interpretar o mundo e de fazer escolhas, porque eles já recebem o prato pronto, sem que possam escolher a comida. Não é isso que fazemos com os animais?

O que diferencia as pessoas é se elas nascem em um país no qual todas têm as mesmas oportunidades de avançar na vida ou no qual os dirigentes é que decidem quem terá direito à cultura e ao pensamento e quem deverá se contentar com as sobras dos privilegiados. Nos países onde não se oferece igualdade de oportunidades é que se formam a massa que não precisa pensar, as elites decidem por ela.

A escravidão existe desde o início da humanidade. Sempre foi negado aos escravos o direito ao estudo. Aqui no Brasil, até não muito tempo atrás, era normal que a escola fosse só para os filhos dos ricos. Os pobres, dizia-se, “devem trabalhar, como seus pais sempre fizeram”. Quando a escravidão foi abolida, não foi oferecida aos libertos a possibilidade de se culturalizar. Não por acaso, o que os políticos chamam de povo nada mais são do que os herdeiros da escravidão, aos quais se ensina a virtude da obediência, nunca a liberdade de pensamento e de decisão.

A linguagem nunca é inocente e costuma estar repleta de significados muito diferentes.

Desconfie sempre de quem enche a boca falando de povo, porque já foi impregnado pelas ideologias intolerantes e escravistas. As ovelhas não recebem nome e sobrenome. E é significativo que os pobres e sem cultura não costumem ser chamados por seus nomes próprios por seus “donos”, e sim por apelidos. É que não são vistos como pessoas. São povo, massa, gado. Será que também não têm alma?

As elites costumam dizer: “Chame minha secretária, meu cozinheiro, minha empregada, meu motorista”. O povo não tem nome próprio. Mas até nossos animais de estimação são chamados pelo nome.

As palavras carregam em seu ventre o significado que vamos dando a elas.

Hoje, liberdade, direitos, respeito às diferenças, construção conjunta de uma civilização de diálogo sem donos nem senhores de ninguém, sem ódios nem divergências sangrentas, tudo isso é o que chamamos de democracia. Todo o resto é fascismo.

Escrevo esta coluna neste 25 de abril, aniversário da Revolução dos Cravos de Portugal. Por esse motivo, uma poeta brasileira escreveu no Facebook:
Morte aos déspotas de todos os tempos.
Para os que já morreram,
que morram suas ideias.
Que suas armas
se transformem
em livros e flores.
Que um dia cada vida possa viver
a sua própria arquitetura de sonhos,
talentos.
Que o pão se multiplique,
que o amor seja o pão.

Pensamento do Dia

 


Estão gostando do palhaço?

Paulo Guedes, ministro-bufo de Jair Bolsonaro encarregado dos esquetes sobre economia, disse que "livro é coisa de rico". E, como sempre, desafinou. Bolsonaro, por exemplo, é rico e não gosta de livros. O último que teve em mãos foi no dia de sua posse —um exemplar da Constituição, que ele jurou defender, mas nunca abriu e na qual cospe com regularidade.

Bolsonaro tem razão em não ligar para livros. Não só porque lê com dificuldade, acompanhando as linhas com a cabeça e tropeçando nas palavras quebradas, mas porque construiu seu patrimônio sem precisar deles, valendo-se apenas do salário de deputado e, dizem, do de seus servidores. A estante ao fundo em seus pronunciamentos no Planalto é cenográfica, com livros comprados a metro. Às vezes variam a cor das lombadas para combinar com sua gravata. Um brincalhão poderia rechear as prateleiras com as obras completas de Karl Marx e Bolsonaro não perceberia.


Esse brincalhão poderia ser Paulo Guedes. Numa trupe de momos como Abraham Weintraub, Ernesto Araújo e Eduardo Pazuello, era difícil notá-lo no picadeiro. À medida que eles foram sendo defenestrados, Guedes saltou para o centro da lona e nunca mais perdeu uma oportunidade de ficar calado. Exprobou as domésticas por irem à Disney, tachou os servidores públicos de parasitas, acusou os pobres de destruir o meio ambiente e ainda os condenou por não saberem poupar e só pensarem em consumir.

Como o show não pode parar, Guedes há pouco criticou o brasileiro por "querer viver 100, 120, 130 anos" e sobrecarregar a Previdência. Deu mais uma cotovelada na China, acusando-a de ter inventado o vírus e vender uma vacina de segunda. E avisou o IBGE que não lhe mandaria dinheiro para fazer o Censo porque "quem muito pergunta ouve o que não quer".

Está certo. Imagine se, em meio ao espetáculo, alguém perguntar ao público se estão gostando do palhaço.

Quatrocentos mil cadáveres revelam parte do que somos

Doze meses e 401 mil mortos depois do início da pandemia no Brasil, passou da hora de refletir por que nos comportamos de maneira tão conformada e indiferente diante do maior cataclismo que se abateu sobre o país em pouco mais de um século. Porque é disso que se trata e que, aparentemente, nos recusamos a ver.

Um em cada cinco óbitos notificados desde março de 2020 se deve à doença. Foram 76 dias para ir de 200 mil a 300 mil mortos, e apenas 36 dias para chegar aos 400 mil. O Brasil é o segundo país do mundo com maior número de mortos. Em uma lista de 52, é o 22º em doses de vacinas aplicadas a cada 100 habitantes.


O governo do presidente Jair Bolsonaro, e dos militares paraquedistas que ocupam cargos estratégicos, tem a maior parcela de culpa por tantas mortes, só abaixo da do vírus letal. Deu passe livre à Covid-19 para que ela circulasse sem barreiras, matando os que estivessem marcados para morrer (e daí?).

Bolsonaro estava cansado de saber que não seria uma gripezinha. Sabia, porque lhe disseram, que se nada fosse feito, em dezembro último o número de mortos bateria a casa dos 200 mil (mas ele não é coveiro, não é mesmo?). E que sem isolamento social e vacinas, a mortandade só faria aumentar, e seguirá aumentando.

Não foi por engano, incúria ou ignorância, pois, que ele jogou suas fichas na arriscada aposta de que a pandemia seria contida por ela mesmo quando 70% da população fossem infectadas. Entre salvar os mais vulneráveis ou salvar o seu governo ameaçado pela recessão econômica, preferiu a última e falsa opção.

Pense se Bolsonaro tivesse feito o contrário. Se aos primeiros sinais da tragédia, ocupasse uma cadeia nacional de rádio e de televisão para dizer algo parecido com: a partir deste momento, só vidas importam. Diferenças políticas e ideológicas ficam suspensas. Convoco todos os brasileiros a lutar contra a morte.

E, no comando de um gabinete de crise formado pelos maiores especialistas do país no assunto, se pusesse à frente de todas as ações contra a doença sem poupar recursos, viajando pelo país a conferir o resultado das medidas adotadas, e tendo uma palavra de conforto a oferecer. Quem o venceria no ano que vem?

Mas, convenhamos, Bolsonaro não seria o que de fato é, um homem rude, mau, oportunista, interessado unicamente no próprio destino e no destino de sua prole, se tivesse agido de maneira diferente. Muito menos teria sido eleito se não fosse um espelho da parcela expressiva dos brasileiros que votaram nele.

Bolsonaro passará, e quanto mais rápido melhor para todos. Parte do que somos. Infelizmente não.

A morte é festa no Brasil de Bolsonaro

Quem leu Freud pensando sobre grupos sabe como o líder, quando está no lugar do “ideal do eu”, uma das dimensões do “superego”, tem poder de hipnotismo sobre o grupo massivo que domina. Isso significa apenas que, com pouca mediação, o líder fala o próprio eu do seu fiel fascista. Se o líder no poder diz exterminem os judeus como baratas por não serem humanos, o grupo produzirá com ele câmaras de gás para matar pessoas. Se o líder diz tomem um remédio ineficaz, que pode matá-los, o grupo toma feliz a cloroquina com efeitos adversos, que pode matá-lo. Se o líder diz, não usem máscara que ela significa a sua opressão, o grupo se revolta animado contra a máscara. Se o líder diz, sigam a vida sobre a peste como se nada tivesse acontecendo, o seu grupo vai pra rua, pro boteco e pra balada, dançar e beber até o fim do mundo sobre a peste, como se nada tivesse acontecendo…

Freud é odiado por cientistas políticos convencionais, que desdenham da natureza psíquica do poder, por ter mostrado que o fascismo é uma subjetivação desejante, uma estrutura irracional humana de desejo do poder e de submissão, uma modalidade política gerenciada técnica e historicamente de sadomasoquismo. O fascismo é o ultrapassamento, pelo desejo do poder concentrado em um mais guerra aberta contra outros, de todo compromisso de racionalidade na política. E Freud foi o primeiro a dizer isso, e não o seu discípulo Reich, que deu continuidade à sua análise do princípio do fascismo, muito destacado por Deleuze e por Guattari, que queriam ultrapassar Freud, exatamente como aquele que teria dito que o fascismo foi desejado. Foi Freud quem demonstrou que o fascismo é desejo, que corresponde a formas inconscientes da realidade psíquica. Existem formas psíquicas para o fascismo, disse Freud, que podem ser acionadas historicamente em certas circunstâncias, e isso aumenta imensamente o sentido do trabalho da civilização e da política em se comprometer com o sentido radical do trabalho humano contra a violência, em nossa própria formação como sujeitos.

Bolsonaro, como grande fascista que é, necessita da morte e do extermínio do outro como contraponto e como ponto de fuga de sua política. Se não pode matar ativamente, como um dia disse que faria e como fez o ditador latino americano Pinochet que ele tanto admira, ele o faz por decisão de eximir o governo de responsabilidade, e de governo, diante de uma pandemia global mortal. Não existe fascismo sem um plano necessário de assassinato em massa. O que foi feito no Brasil é que as imensas pulsões destrutivas do bolsonarismo, não podendo destruir inteiramente tudo o que desejam – a esquerda, as representações minoritárias, as universidades, os artistas, os direitos civis… – transbordaram para destruir toda a sociedade.

Bolsonaro ordenou explicitamente às pessoas em 2020 que não usassem máscaras, que tomassem remédios falsos e que se expusessem com satisfação ao vírus. Fez campanha política aberta, pública, contra a vacina, entendida em sua patologia política como “arma do inimigo”. E nós vimos essa política afirmativa da destruição da vida, por perversão e ignorância, que no caso são uma coisa só, acontecer em tempo real no país. Ele condenou à morte dezenas de milhares de brasileiros, que, apaixonados por ele ou inconscientes do seu vínculo amoroso com ele, fizeram a política suicida que ele necessita. A morte de um povo por amor, sem pensamento, ao seu líder fascista.

II

Também há um outro grande hipnotizador de pessoas, de grupos e de massas que se expuseram ao vírus com prazer durante as festas de fim de ano de 2020, e em janeiro e no carnaval de 2021 no Brasil. Se trata do próprio empuxo da vida encantada da mercadoria e do consumo, a inércia do movimento e do apego do desejo a uma forma e a um modo de viver, biopolítica reforçada a cada segundo e a todo instante – uma relação entre os homens, e deles frente o valor das coisas que se produzem entre eles: o fetichismo da mercadoria.

Como sabemos desde Adorno e de Horkheimer, toda a formulação e expressão do mundo industrial da cultura é, em seu fundamento – o seu próprio inconsciente coletivo formado, produtivo e socialmente comprometido com a lógica geral da acumulação –, um imaginário geral de celebração festiva e de aceitação daquilo que existe. Anticrítico por natureza, o mundo criado pela indústria cultural universal tem por princípio essencial a lógica de que “tudo o que existe é bom”. E tudo o que se deseja, ao se viver assim, é celebrar, festejar e gozar o que existe, ter acesso às coisas e à sua felicidade, verdadeira ou falsa, tanto faz. O princípio é o da cultura afirmativa, sempre positiva, a vida alavancada como ela é e a favor de tudo o que é, como dizia Marcuse.

O mundo do consumo como subjetivação é isso. Neste sentido, Bolsonaro não precisou de muito trabalho e de nenhuma energia especial para empurrar pessoas para viverem aquilo que, contra a real realidade da doença e da morte, elas de fato queriam viver. Entre o líder fascista, sua lógica cruel anti-humanista neoliberal, que deseja desresponsabilizar o governo do trabalho coletivo e social, e a ordem comum e repetitiva dos gozos contínuos do mercado e da imagem mercadoria comum no mundo, há também uma continuidade eletiva forte. O mercado que se celebra em cada compra e em cada venda de uma ilusão qualquer é também extamente o mesmo que faz o elogio de um mundo sem governo, sem compromisso social e com o trabalho, ou qualquer coisa que exista para além da mercadoria, do dinheiro e de si próprio.

A homogeneidade cultural de massas, e seu gozo planejado, prepara a homogeneidade política; esta frase de Adorno e Horkheimer dos anos 1940 foi a primeira percepção forte dos elementos fascistas presentes no interior do próprio mundo do mercado dito liberal, seu sistema geral de excitações e circulações de imagens e seu reality show. Ela apontava para a emergência totalitária da vida de todos como agentes culturais exclusivos de mercado, o neoliberalismo por vir, da escola de Chicago, de Guedes e de Bolsonaro, como algo que sempre esteve presente no mercado de massas. De fato, no grande isolamento de 2020 muitos adoeceram pela perda de suas práticas de vida, o ambiente geral da vida na cidade da mercadoria. Ficou famosa na internet a imagem impressionante de milhares de pessoas, de todas as idades, famílias inteiras, fazendo fila para entrarem no shopping center reaberto, após um período de isolamento social para a proteção da vida. Elas cumpriam um ritual, de culto ao seu único e verdadeiro deus, indizível, a coisa na loja e a cidade para as coisas, o shopping center.

As pessoas não querem de volta uma vida qualquer, tanto quanto são totalmente incapazes de refletir no tempo de silêncio e do esvaziamento de sua atuação geral no mundo do espetáculo como vida. Elas querem de volta o shopping apinhado com as coisas e sua vulgaridade cultural gritante, de choque, os entrepostos globalizados que dão destino ao circuito mundial da produção, em escala planetária. Elas querem de volta a mesma ordem de produção, recusa de sentidos e da alteridade de mundos e razões ambientais, que gerou mesmo o vírus pandêmico, o primeiro sintoma universal da crise impensável do mundo da mercadoria, o Capitalismo, de nosso tempo.

Antes da crise econômica global de 2008, gerada, com se sabe, pelos terroristas milionários do mercado financeiro de Wall Street, que desorganizou grande parte dos circuitos mundiais de apostas e de produção de valor, existiu uma grande festa jovem, excitada e excessiva, que não podia parar. Era a “república mundial” da noite eletrônica, com meca em Berlin, que convocava a juventude hedonista do tempo e a antiga contracultura jovem para um mesmo espaço maníaco de agitação e gozação permanentes. Aquela ação e sujeitos que existiam para a diversão conspícua não podia parar nem de noite nem de dia. Dançando e gozando sem parar, ela criava zonas de esperas existenciais como consumo de prazer industrializado liberado, o novo estatuto da música e das drogas no mundo, que mantinha jovens ao mesmo tempo celebrando a festa do tempo presente e encenando esteticamente a sua ruína, também onipresente, como verdadeiros punks de butique globais. Entre a ausência de emprego, a oferta mundial de imagens, informação e gozos das infinitas coisas geradas pelo tempo do mundo, e a vida toda deslocada para as micro-telas da internet pessoal global, a solução de compromisso social passou a ser celebrar permanentemente, se agitar sem parar, ser feliz por compulsão, vencendo a sociedade do cansaço pelo prazer do excesso, noite e dia, dia e noite. Forçava-se o gozo, com a pulsação da música eletrônica como dispositivo de um corpo em êxtase e suas drogas sintéticas, tomadas em escala industrial, para nos convencer, agora colonizando o afeto e deformando o sonho, que o mundo é bom. O êxtase mundial da subjetivação da balada eletrônica encontrava sua sociologia na ideia de produzir sem parar, sem silêncio, intimidade ou pensamento, sobre a ruína universal do mundo do trabalho e das guerras do poder de produção dos refugiados mundiais, que aqueles jovens conheciam bem.

Como eu disse em outro momento – em um livro que aprofunda o estudo da estética maníaca da afirmação do prazer como indústria, e da recusa performática do terror como estratégia de sobrevivência, A música do tempo infinito, (Cosac e Naify, 2014) –, esta tendência de ocupar o desejo com os objetos técnicos pulsantes do tempo, música eletrônica, massa imaginária pulsante na internet e drogas sintéticas e recreativas, tendia a dissolver os limites entre dia e noite – sono, sonho, despertar e pensamento – em um novo estatuto de subjetivação, de transe técnico, festa contínua a favor de tudo o que existe. Bem como, com outra perspectiva da mesma coisa, o professor de arte e teoria em Columbia, Jonathan Crary, nos deu a ver, no mesmo momento, em seu 24/7 Capitalismo tardio e os fins do sono. Como se sabe, um dos efeitos do isolamento social e da recolha histórica das pessoas em casa do ano de 2020, foi o imenso e generalizado sono. Ao avesso do mundo explosivo e massivo de uma agitação permanente, cujos circuitos mundiais das baladas eletrônicas sem fim foram um dos campos de imanência e apresentação, as pessoas reestabeleceram durante o isolamento o tempo regressivo do corpo, pessoal e inconsciente, do sono e do sonho. O que pressupõe o privilégio de classe de se ter casa, cama, um cuidado básico e um tempo livre, sem a invasão da produção, para se poder dormir, e dormindo, sonhar. Da agitação maníaca de um mundo em crise, que dança sobre o abismo da sua própria destruição, os homens – a quem foi permitido por acaso de classe – recuaram ao tempo indefinido e silencioso do sono, do inconsciente esparramado sobre o ser e sobre o mundo e da agitação secreta da metafísica do sonhar– a realização poética, narrativa, cinematográfica, imanente ao sonho. Dormiram e sonharam, para poder despertar de um pesadelo social muito mais profundo. O sonho, que pressentia mesmo o contato com a peste, dizia Artaud. A peste, que é o mundo.

Quem se atirou às festas, e hoje morre sozinho de modo cruel às portas de uma UTI em caos, não suportou retornar à política do sono e do sonho, da sustentação de condições para o sono e da necessária intimidade do sonho, e seu necessário segredo, ou mistério. Como a mercadoria global em febre e festa permanente, estas pessoas também precisaram gozar na exposição dos corpos como objetos para a visão do outro, e na fantasia, própria ao capital, de que tudo o que existe nesse mundo, que se produz assim, necessita ser celebrado, até o fim.

III

Assim Bolsonaro e seu senso comum grosseiro sobre a vida conservadora sobre o capitalismo tardio, essa tentativa de reafirmação de ilusões perdidas de poder imaginário de classe e do poder comum do mercado como tudo o que importa no mundo, está simplesmente a favor do que muitos internalizaram como sendo a verdade natural da máquina do mundo, seu desejo de mundo. O hipnotismo do líder ganha poder ao confirmar o desejo de todos de que o mundo não pare e não tenha parado, e que podemos prosseguir nosso compromisso com a sua reprodução infinita, gozando ilimitadamente o regime geral da mercadoria, o que de fato se adora. No entanto, entre o amor ao líder e o gozo da celebração do mercado espetacular como a própria natureza humana, há um elemento especial que Bolsonaro põe em cena, para a tragédia do genocídio à brasileira, que nos é praticamente único. Um campo de sentidos reacionários fortes e muito violentos, de longa duração e tradição, que diferencia o espaço social constituído desde a história do Brasil de toda ordem de leitura moderna, científica ou crítica, de uma grande comoção e risco social como vivemos.

Só há algo semelhante ao que o Brasil realiza como maquinaria biopolítica exclusiva nos Estados Unidos de supremacistas brancos de Donald Trump. Um país que também, como aqui, condenou centenas de milhares de americanos à morte, pelo sadismo objetivo de uma cultura em que o direito à saúde não é universal, pela arrogância negacionista narcísica de seu líder, apoiado em seus grupos de extrema direita, cujo poder pressuposto e caprichoso era mais importante do que a vida de seus concidadãos.

O ponto de força histórica para a política da morte é o seguinte: não por acaso EUA e Brasil foram os dois grandes países americanos de colonização europeia – um branco, modernizado e protestante, outro branco, de tipo ancien régime e católico – que se formaram com e através da escravidão colonial ativa, como própria forma de produzir riqueza e sociedade, em seus próprios territórios nacionais. No entanto, lá, hoje, não exatamente como aqui, forças sociais de responsabilidade, de técnica, de ciência e de compromisso coletivo se organizaram para combater e vencer o seu sintoma neofascista, neo-escravocrata eu diria, constelado no líder mentiroso e descomprometido com tudo que não seja ele próprio. Aqui temos muitas dúvidas sobre nossas pulsões de vida políticas, aquelas que unem, que agregam, que reconhecem as partes e ampliam a capacidade de pensar o que é comum.

De todo modo, apenas em um país de origem escravista – desde a ordem colonial secular mundial, europeia – um governo e parte importante da sociedade pode dispor de uma outra parte do país para o seu desprezo radical de qualquer natureza de direito comum, até o direito à vida. Só em um país de longa formação escravista uma pequena parte da sociedade, ligada a classes médias que gozam com a própria servidão, senhores do dinheiro que não reconhecem nenhum país e uma cultura radical do autoritarismo, de religiosos e de militares, um grupo cindido da trama de direitos comuns e universais e da mediação científica para o problema global, pode decretar, como política de Estado, que a população se contamine, adoeça e morra, de modo aleatório mas certo.

O neofascismo brasileiro é alimentado inconscientemente pela profunda tradição reacionária, colonial escravocrata, luso monarquista, que cindiu nação de sociedade, riqueza e trabalho escravizado, nas raízes do país. Bolsonaro, capitão do mato do Brasil escravocrata estendido ao agora, tratou os brasileiros exatamente como os senhores e seus agregados do século XIX imperial tratavam o trabalho no país: “vocês só tem valor instrumental para a riqueza que geram, para os outros, e nem um direito a mais”. Se morrerem, é mesmo esse o seu destino. Escravo foi feito para trabalhar, gerar riqueza para o senhor, e depois morrer. Ou seja, não existir nem custar nada à sua “sociedade”, que não lhe pertence de nenhum modo, cindida de todo reconhecimento dos seus direitos e da sua vida. “E daí?”, exclama Bolsonaro rindo excitado frente a sua claque do curralzinho, em uma cena retirada de O bandido da luz vermelha de Rogério Sganzerla (1968), sobre a morte planejada e desejada de centenas de milhares de brasileiros.

Tales Ab’Sáber, professor de filosofia da psicanálise na Unifesp 

Todos os credos contra a fome na pandemia

Quando o relógio está prestes a apontar meio dia, um pequeno grupo de pessoas começa a se organizar em uma fila em frente ao portão de ferro de uma casa de candomblé no bairro Brasilândia, periferia da zona norte de São Paulo. Não estão ali para participar de qualquer ritual religioso. Trazem nas mãos potes de plástico para levar para casa uma refeição que, às vezes, é a única do dia. Ronaldo de Freitas ―ou Pai Ronaldo, como é conhecido― mantinha o espaço marcado pelos cultos aos orixás e ricas cerimônias espirituais, mas cedeu parte do terreiro para abrigar a Cozinha Solidária do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e ajudar a enfrentar um horror que sempre assombrou a comunidade e se agravou durante a pandemia: a fome. O pai de santo virou chef. “Eu já trabalhava com o público, mas o candomblé é luxuoso. Agora estou tendo contato direto com o pessoal mais carente. Choro todos os dias por ver crescer a fila de gente que vem sempre aqui porque não tem comida em casa”, diz.

Todos os dias por volta de oito horas da manhã, Pai Ronaldo sai pelos fundos de sua casa e atravessa um salão repleto de símbolos religiosos nas paredes que não vê cerimônias desde o ano passado, quando eclodiu a pandemia. Em seguida, sobe uma escada de cimento com degraus muito estreitos até um amplo terreiro ―com uma saída independente para a rua de trás― onde foi instalada uma pequena cozinha. É ali que prepara diariamente o almoço para uma média de 100 famílias e recebe a vizinhança que busca um prato de comida. “Um pastor de uma igreja aqui do bairro um dia experimentou a comida e veio me parabenizar. Ele está fazendo campanhas de arrecadação de alimento na igreja para ajudar a gente”, conta. “É muito bonito ver isso porque o candomblé sempre sofreu muito preconceito, as pessoas tinham medo de vir aqui. Não é uma cozinha do candomblé, mas está em uma casa de candomblé. E é um sucesso, até o pessoal da igreja está ajudando.” A Cozinha Solidária da Brasilândia é mantida principalmente com doações de uma vaquinha virtual e com o trabalho diário de 30 voluntários, que batem às portas de mercados e feirantes para conseguir parte dos insumos. Eles tentam tornar o projeto autossustentável para que sobreviva mesmo após a pandemia.


“Eu nunca cheguei aqui de mãos vazias”, orgulha-se Selma Maria da Silva Lima, de 54 anos. Ela é espírita kardecista e conta que já leva mais de duas décadas fazendo trabalhos voluntários. “Ajudar o outro está na minha alma.” São meio dia de terça-feira, 6 de abril. Depois de deixar na cozinha um carrinho de feira com as doações que conseguiu na semana passada, ela vai ao portão distribuir senhas e borrifar álcool nas mãos de dezenas de pessoas que foram até ali apesar da chuva intensa daquela manhã em busca de um prato de comida. “Vai começar já já”, avisa. Só podem entrar duas pessoas por vez, todas de máscara, e ela as orienta a manter o distanciamento social com base nas faixas brancas pintadas a mão no chão de cimento. Pelo menos uma vez por semana, Selma deixa a casa que aluga por 900 reais no bairro Pirituba e pega a condução para trabalhar na Cozinha Solidária. Aposentada por invalidez por um problema na coluna, vai pedindo ajuda a motoristas do ônibus e passageiros nos 10 quilômetros de trajeto para conseguir carregar as doações. “Venho com Deus, pedindo ajuda até chegar aqui. Ajudo os outros e sou ajudada também porque levo esta comida para casa”, diz ela, que mora com a filha e viu a renda familiar decair com a redução de salário dela durante a pandemia.

Selma Maria pede licença às duas primeiras pessoas que aguardavam na fila para dar prioridade a Vitória Pereira, que nina em seus braços o filho Arthur, de 9 meses, na calçada. Desde o dia 16 de março, quando a Cozinha Solidária começou a doar almoços, ela caminha até lá em busca de uma refeição também para a mãe, o padrasto e a filha de quatro anos. Eles moram todos na mesma casa, mas no momento só a mãe dela tem conseguido trabalhar fazendo serviços gerais. “Eu venho direto, quase todo dia, porque a gente não tem muita comida em casa”, diz. Nas segundas-feiras, o único dia em que não há distribuição de marmita na Cozinha Solidária, também não há garantias de que a família dela terá alimento à mesa. “Não dá pra fazer todas as refeições. Na segunda, a gente faz o que tem em casa, que é no máximo arroz e feijão”, conta, enquanto Pai Ronaldo preenche as duas vasilhas que ela levou com arroz, feijão, chuchu e salsicha. “Perdi as contas de quantas vezes não tinha nada pra comer e precisei bater na porta dos vizinhos. Ter um lugar que a gente possa vir pegar deixa a gente muito agradecida.”

O drama de Vitória é o mesmo de grande parcela de brasileiros. A pandemia acelerou o avanço da fome no país. E uma pesquisa da Rede Penssan aponta que 116,8 milhões de brasileiros não se alimentam como deveria ―19 milhões deles não tem o que comer. A fome, mostra o estudo, atinge principalmente um perfil mais vulnerável: a mulher negra que vive na periferia e tem baixa escolaridade. Com um auxílio emergencial mais restrito e de menor valor pago pelo Governo Federal além da dificuldade de conseguir trabalho na crise sanitária, a saída de muitas famílias contra a fome tem sido basicamente viver de doações. Segundo uma pesquisa do Instituto Locomotiva, 74% dos brasileiros que receberam doação afirmam que não teriam condições de comprar comida sem elas.

No vácuo das ações do Estado, são muitas as iniciativas por entidades da sociedade civil em todo o país que apostam na solidariedade das pessoas para levar o mínimo a quem precisa: o direito ao alimento. A pesquisa também mostra que 72% dos brasileiros tiveram alguma atitude de solidariedade durante a crise. “Muita gente nos procura para saber se a gente tem uma cartilha porque quer fazer ações como esta nos seus bairros”, afirma Ana Paula Perles, coordenadora nacional do MTST, entidade que está implantando 16 cozinhas solidárias em 11 Estados brasileiros ― todas deverão estar funcionando até o fim do mês de abril. “Depois da pandemia, a gente espera que este espaço seja de construção, que as pessoas possam comer aqui e discutir questões sociais”, emenda a coordenadora do projeto na Brasilândia, Débora Lima.

Há meses, Rosimeire Pires Mota, de 48 anos, praticamente só come graças a estas doações. Sem emprego e lutando contra a depressão, ela recebia no ano passado cestas básicas de uma ONG do bairro e uma doação de legumes toda sexta-feira. “Este ano está pior que no ano passado, tem menos doações. A cesta básica não chega todo mês e eu não consigo mais nem fazer bico de costureira”, lamenta ela, que espera ver as coisas melhorarem em breve quando receber o auxílio emergencial de 130 reais no fim do mês de abril e com a esperança de que os filhos que moram com ela consigam um emprego. “Os dois foram chamados para um teste esses dias. Espero que dê certo porque assim eles me ajudam”, clama. Antes da distribuição de almoço na casa de Pai Ronaldo, ela passou vários dias comendo só arroz que conseguiu numa doação. “Eu me sinto muito mal, choro direto. Tento sorrir, mas acho que meus olhos mostram o que eu tô sentindo”, diz, enquanto segura uma tupperware.

Já está perto de uma hora da tarde, quando se encerrará a distribuição das marmitas. Ao todo, 64 fichas já foram distribuídas, cerca de 60% delas para pessoas que procuram a Cozinha Solidária quase todos os dias, mas alguns chegam ali pela primeira vez. “Até tinha que fazer um serviço, mas os vizinhos contaram que estavam distribuindo almoço aqui e eu decidi vir logo para garantir que vou conseguir levar comida para as crianças em casa”, conta Mateus Batista, de 29 anos. Ele, a esposa e os três filhos dependem do dinheiro que ele consegue fazendo bicos de serviço de limpeza e ajudante de pedreiro. “Está cada vez mais difícil de aparecer”, lamenta. Quando consegue trabalho, o que ganha só dá para comprar o básico do básico. “Tem dia que só dá pro arroz e feijão. No dia que não tem nada, como hoje, 

Naquela terça-feira, era também o aniversário de Pai Ronaldo. “É uma alegria e uma tristeza muito grande o que eu sinto hoje”, ele diz, mergulhado em uma ação solidária tão grande e, ao mesmo tempo, que não dá conta do tamanho da fome dos vizinhos. É também a realização de um sonho cozinhar para os outros depois de ter precisado largar a faculdade particular de gastronomia para conseguir pagar todo o curso universitário de uma de suas duas filhas. “Eu faço com amor esta comida, coloco muito tempero”, diz, orgulhoso. Quem chega ali faz questão de cumprimentá-lo. “Oi, Pai Ronaldo. Hoje eu trouxe uma vizinha”, diz um homem que aparenta ter 40 anos. “Muito bem. Trouxe a vizinha para experimentar minha comida. Seja bem vinda”, responde, acenando para uma moça com uma criança no colo.

É nestes momentos que o chef se emociona e se envolve com as histórias que escuta da comunidade. Ele lembra o dia em que uma criança lhe contou, ao pegar uma marmita, que guardaria parte do almoço para ter o que jantar e de um idoso que estava há dias comendo angu de fubá. “Agora eles sabem que vão ter almoço todo dia. Quando estou colocando a comida, tento colocar que dê para almoço e janta”, conta. Naquela terça-feira chuvosa, 77 pessoas buscaram a comida dele. Pouco depois das 13h, o portão é fechado para só reabrir novamente no dia seguinte. “Minha reação é de sonho realizado por ver tudo isso, por ver que estamos fazendo a diferença.”

Nos céus do Brasil

 


Bolsonaro oferece 400 mil mortos ao lúmpen-milicianato

A instalação da CPI da Covid mexe com os bofes de Jair Bolsonaro. Agride o seu senso de onipotência —injustificado segundo um crivo objetivo, mas compreensível se visto por lentes clínicas. O golpista de primeira hora, que nunca precisou de comissão de inquérito ou de oposição organizada para pregar o rompimento da ordem —como provam os atos antidemocráticos que patrocinou já em 2019—, não aceita que sua obra seja questionada. Os, até agora, mais de 400 mil mortos são o seu grande legado ao lúmpen-milicianato que o aplaude.

A política sempre deve ter precedência na análise da vida pública, embora os dados de personalidade não possam jamais ser ignorados. Uma leitura mais aberta de Maquiavel sugere que a “fortuna” e a “virtù” —a história herdada que condiciona alternativas e as escolhas ditadas pela personalidade— também podem ter um enlace negativo. Em vez de surgir o Príncipe, eis que aparece o ogro, que a democracia tem de esconjurar. Ou morreremos todos.


Assim, é claro que, ao não arredar um milímetro das posições as mais estúpidas e reacionárias, que muitos enxergam danosas e contraproducentes para seu próprio futuro político, Bolsonaro age com cálculo. Ele deu voz a esse público que existia nas sombras; que se esgueirava nos escuros da história; que se acoitava nos desvãos nunca visitados —não de modo suficiente ao menos— pela teoria política.

Há nesses cafofos mentais um potencial de ressentimento odiento; de rancor acumulado contra virtudes vistas como inalcançáveis —pouco importando se as limitações são objetivas ou subjetivas—; de repulsa a tudo o que escapa de suas escolhas, tidas como valores universais. Encontram no presidente a sua voz.

Essa esfera de sentimentos e sensações é infensa a dados da realidade fática. A evidência do erro só reforça a convicção. Daí a fúria patológica contra a imprensa, por exemplo.

Querem uma prova? A crítica ao distanciamento social, sob a alegação de prejuízos à economia, expressa uma racionalidade torta. É um erro, sim, mas faz sentido. O que explica, no entanto, a repulsa de muitos à máscara senão a reação dos que se sentem tolhidos na sua vontade e reprimidos por um mundo que não compreendem, por valores que lhes são distantes, por um discurso que entendem ser só afetação e hipocrisia?

Na arte e na vida, esse caldo alimentou os fascismos. Leiam “M, o Filho do Século”, de Antonio Scurati, sobre os primeiros anos da trajetória de Mussolini, o trânsfuga. Vejam ou revejam o filme “Lacombe Lucien”, de Louis Male, e percebam como o oprimido pode encontrar no peito do opressor o regaço para a sua ascese, ainda que destrutiva.

Bolsonaro pode não saber exatamente o nome do que pratica —embora viva cercado de alguns que o sabem—, mas já percebeu ter um público cativo —em mais de um sentido. O que um olhar objetivo e crítico apontaria como um tiro no pé é precisamente a seiva, vertida como fel, que plasma em eleitorado os ódios que ele açula e alimenta. E, por essa razão, o presidente não desiste nem recua nunca. Aí está a sua fortuna —este texto está pleno de palavras polissêmicas.

Não é fácil a um outro qualquer liderar esse lúmpen-milicianato —presente em todos os setores e classes, já que não é o interesse econômico que une os fanáticos, mas uma espécie de identidade espiritual. Embora esteja consciente do jogo, Bolsonaro é um homem, a seu modo, sincero. Está plenamente convencido das coisas estúpidas que diz e faz. É o que a sua inteligência alcança. Creiam: nem os filhos são seus herdeiros naturais. Já pensam demais, ainda que a seu modo.

Nesse particular sentido, raramente houve no Brasil um representante que expressasse com tanta fidelidade o universo mental dos seus representados e que estivesse tão à altura do momento. Ele soube pôr as suas características pessoais a serviço da terra que a Lava Jato arrasou. É emblemático que, neste momento, o senador Renan Calheiros —uma das caças de predileção de procuradores— seja o homem mais temido pelo presidente e pelos fascistoides que ele mobiliza.

A CPI do óbvio

O histórico das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) mostra que o sucesso das investigações costuma depender do surgimento de alguma testemunha bombástica. No caso da recém-instalada CPI da Pandemia isso não será necessário: os fatos essenciais são abundantes e estão claros para todos, restando à comissão o duro trabalho de organizá-los, para que o País entenda quais foram os terríveis erros que resultaram em tantas mortes evitáveis e quem deve responder por isso.

Do ponto de vista estritamente institucional, a CPI terá cumprido seu papel se dela resultarem medidas legislativas destinadas a impedir que esses erros se repitam e, também, se encaminhar às autoridades competentes os elementos necessários para a responsabilização civil e criminal dos infratores.

Mas a CPI é também um foro político, em que a oposição exerce seu direito constitucional de fiscalizar o governo. Por isso, é inevitável que, ao longo dos trabalhos da comissão, os depoimentos e provas trazidos ao escrutínio público sirvam para constranger o presidente Jair Bolsonaro – cuja patente irresponsabilidade inspirou, quando não determinou, o comportamento omisso e inconsequente das autoridades sanitárias federais no combate à pandemia.

Ciente dos estragos que a CPI causará a seu projeto de reeleição, Bolsonaro tratou de mobilizar boa parte de seus ministros para organizar sua defesa. Se o presidente tivesse usado no combate à pandemia a mesma energia que está gastando para se safar da CPI, o País não teria quase 400 mil mortos e um sistema de saúde em frangalhos.


Mas a incompetência, produto da mediocridade que é a segunda pele do governo Bolsonaro, mais uma vez se impôs. A título de se antecipar aos questionamentos da CPI, os ministros produziram uma lista de acusações mais completa e detalhada do que a formulada por integrantes da comissão.

Além disso, no afã de tentar impedir que o senador Renan Calheiros, desafeto de Bolsonaro, fosse nomeado relator da CPI, bolsonaristas recorreram à Justiça e obtiveram uma liminar absurda que interferia em decisão exclusiva do Congresso. Enquanto a liminar vigorou, os governistas a usaram para tumultuar a CPI.

Mas a desarticulação da base governista, já célebre, mais uma vez cobrou a conta. O senador independente Omar Aziz (PSD-AM), apoiado pela oposição, elegeu-se presidente da CPI inclusive com o voto de um governista, o senador Ciro Nogueira (Progressistas-PI). Ato contínuo, o senador Aziz escolheu Renan Calheiros como relator.

Profundo conhecedor dos desvãos do Congresso e expert em chicanas para esquivar-se da Justiça, Renan é o nome ideal para a relatoria. Sua notória competência servirá para inibir manobras governistas destinadas a tirar o foco da CPI, isto é, a administração delinquente do Ministério da Saúde sob as ordens de Bolsonaro.

O fato é que a perspectiva de uma CPI dominada pela oposição e com relatoria de Renan Calheiros preocupa muito o governo. E isso fica claro diante do nervosismo de Bolsonaro, que voltou a fazer ameaças citando as Forças Armadas e a ofender governadores. Essas declarações reafirmam o autoritarismo de Bolsonaro, mas, sobretudo, expõem a tática manjada de desviar a atenção do que realmente importa: a desídia e a inépcia do governo diante do vírus.

“Por que tanto medo?”, perguntou o senador Renan Calheiros nas redes sociais ante a inquietação bolsonarista. A pergunta, claro, é retórica. Quando os muitos ministros da Saúde de Bolsonaro forem questionados na CPI, o País afinal saberá como foram tomadas as decisões cruciais que resultaram no atraso da vacinação, na falta de campanha nacional para a adoção de medidas preventivas, na sabotagem do distanciamento social e no desabastecimento de equipamentos e drogas para o atendimento de doentes.

A rigor, nem seria necessária uma CPI. Quando Bolsonaro escarnece da inteligência alheia, dizendo que o intendente Eduardo Pazuello “fez o dever de casa” ao não comprar vacinas em 2020, ou quando o próprio ex-ministro da Saúde faz chacota dos brasileiros ao aparecer sem máscara e todo pimpão, num shopping de Manaus, a responsabilidade pela tragédia nacional fica óbvia.

É crime!


Por ação ou omissão, a necropolítica de Bolsonaro constitui um crime contra a Humanidade que deve ser investigado
Miguel Urbán, eurodeputado espanhol

O que fazer para parar de contar cadáveres

Há 13 meses, nós, brasileiros, contamos cadáveres. Fazemos isso com as estatísticas dos mortos por Covid-19 e no seio de nossas famílias e círculos de amizade. Não precisava ser desta maneira. Muitos dos 400 mil “CPFs cancelados” na pandemia, no linguajar chulo e desrespeitoso chancelado pelo presidente da República, poderiam estar ativos se tivéssemos um governo decente. Não digo nem competente ou eficiente. É um mínimo de decência que falta a Jair Bolsonaro e a seu escrete mortífero.

O que fazer para atenuar essa rotina de empilhar corpos, retroceder em todas as áreas da vida nacional, adiar o futuro e colecionar traumas? É preciso agir imediatamente, em todas as frentes possíveis. É preciso responsabilizar Bolsonaro, Eduardo Pazuello e a cadeia de comando de ambos em todas as pastas que tenham contribuído, por ação e omissão, para atrasar nossa resposta ao vírus e desmontar nossa estratégia de enfrentamento.



O Sistema Único de Saúde, a despeito de seus problemas crônicos de financiamento e atendimento, tem capilaridade única no mundo, experiência em lidar com epidemias e profissionais de saúde pública treinados, que estão mostrando, mesmo diante de toda a adversidade, abnegação, garra, fibra e compromisso com a vida.

O Plano Nacional de Imunização é um edifício de glórias para o Brasil, que nos fez erradicar doenças ao longo de décadas e mostra incrível capacidade de realizar campanhas de imunização em massa.

Obrigar os responsáveis pelo mau uso do SUS e o desmonte do PNI a responder na Justiça é algo para já. Pode ser feito pelo inquérito conduzido no Supremo Tribunal Federal e pela CPI da Covid. Ambos têm instrumentos para solicitar documentos, perícias, levantar gastos, ouvir a cadeia de servidores do Ministério da Saúde, estados e municípios e apontar quem são os CPFs que têm de virar réus. Isso é tarefa de agora, não de depois, senhores Arthur Lira e Rodrigo Pacheco. Se Vossas Excelências acharam que poderiam postergar uma resposta ao morticínio de brasileiros aos milhares, enquanto negociam suas emendas e projetos de interesse de pequenos grupos, só por terem ascendido ao comando do Congresso com o apoio do Planalto, a resposta é não.

Além de responsabilização, é preciso exigir de Bolsonaro, enquanto ele continua ocupando a Presidência como o pior ser humano, eleito ou biônico, que já passou por lá, que pare de cometer desatinos retóricos e administrativos diários e cumpra seu dever constitucional de proteger a vida de seus concidadãos.

Isso significa destinar todos os recursos — orçamentários, diplomáticos, de logística, administrativos e políticos — para a compra imediata de vacinas em quantidade suficiente para imunizar ao menos 70% da população apta a recebê-las. Para isso, o Ministério da Saúde tem de ser instado (pelo Congresso, pelo Supremo) a fornecer um calendário realista de chegada de vacinas, distribuição e aplicação. Isso não pode ficar para 2022. Para isso existe a Justiça, para isso existe um Congresso que tem de estar disposto a votar recursos emergenciais para a compra de imunizantes.

A terceira frente de ação cabe à sociedade. Não é compreensível a letargia com que, a cada número redondo de pessoas que se foram, colocamos tarjas pretas em nossos perfis nas redes sociais e seguimos, entre negacionistas, meio comprometidos com as medidas sanitárias ou discípulos do Átila, mas sem exercer nosso dever cívico de dar um basta a essa gestão desastrosa, única no mundo em sua conjugação de pestilência verbal, inação administrativa e incompreensão histórica do que se passa no planeta. Até quando assistiremos a esse horror e admitiremos que o presidente siga em marcha batida ao precipício, levando cada um de nós de carona?

O Brasil é um país genocida

Há muito tempo, uma grande amiga, também historiadora, me disse: "Você precisa ler este livro."

O tema é devastador. O genocídio no maior hospício do Brasil. Eu, que já trabalho com um dos temas mais violentos da história brasileira, retardei minha leitura por anos. E quando a fiz, foi de supetão, numa espécie de atropelo guiado pela fina escrita da autora Daniela Arbex e por toda a violência e tristeza que o livro carrega. Como um remédio amargo, que tomamos num gole só. Foram 60 mil mortos dentro de uma instituição, administrada pelo Estado, que tinha a função de oferecer tratamento e condições de vida adequadas àqueles considerados doentes mentais.

O Hospício de Barbacena, fundado em 1903, abrigou milhares de vidas. E, infelizmente, destituiu de humanidade praticamente todas elas, naquilo que a autora bem chamou de "Holocausto brasileiro", expressão que dá título ao livro. Uma sucessão de tragédias pessoais, incompreensões da natureza humana, racismo, machismo e decisões políticas criminosas que resultaram num campo de concentração em pleno sudeste de Minas Gerais. Um retrato do que temos de pior.


A leitura de "Holocausto brasileiro: Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil" em plena pandemia, quando o Brasil vive a pior crise sanitária de todos os tempos, foi uma atitude quase masoquista da minha parte. Todavia, essa experiência foi fundamental para solidificar a certeza de que somos um país genocida. Não apenas hoje, quando temos quase 400 mil mortos pela pandemia. Mas desde sempre. E se engana quem considera que essa constatação retira a responsabilidade de governantes e instituições públicas pelo que está acontecendo. Na realidade, tal constatação nos devolve à História, essa senhora do tempo, que nos ensina a diferenciar tragédias de projetos políticos. Porque, quando a tragédia tem destino certo, ela perde a sua imponderabilidade e, por isso, precisa ganhar outro nome. E, em certa medida, é isso que nos falta por aqui: rememorar e nomear as nossas carnificinas.

O número de homens e mulheres indígenas mortos desde 1500 é praticamente incalculável. As estimativas apontam que 70% do total da população nativa foi dizimada, o que, numa perspectiva bem conservadora, indica que praticamente 2,5 milhões de indígenas sucumbiram ao projeto que estava sendo gestado no período colonial. O Brasil também foi o território da América que mais recebeu africanos escravizados. Ao menos 4,5 milhões de homens e mulheres foram retirados à força do continente africano e subjugados à instituição escravista em terras brasileiras. Isso sem contar a violência inerente e cotidiana da vida em cativeiro, fosse para os africanos, fosse para aquelas e aqueles nascidos no Brasil.

Mesmo horrorizados, muitos dirão que apesar de profundamente violentas, as trucidações pelas quais indígenas e negros passaram ao longo de quatro séculos da história do Brasil não podem ser lidas de forma anacrônica. O que é verdade. A escravização e a catequese forçada, por exemplo, foram duas instituições que tiveram respaldo legal e moral por séculos. E, mais do que isso, foram práticas disseminadas que formataram a sociedade brasileira. Entretanto, isso não significa dizer que elas foram os únicos projetos vigentes à época. Basta um olhar mais atento para a história do Brasil, para observamos que ela está cravejada de lutas e formas de resistência implementadas por homens e mulheres que não aceitaram viver apenas sob o signo da violência, e que forjaram outros mundos, outras possibilidades de ser, pagando preços altos por tais ousadias.

Ou seja, não houve um único período da história do Brasil no qual a escravidão e as explorações coloniais não estivessem sendo questionadas e combatidas. O que nos leva a pensar sobre a legalidade e a moralidade como atributos historicamente construídos, que serviram a interesses e grupos sociais específicos. E ao optarem repetidamente por uma legalidade e moralidade de extermínio, esses interesses criaram uma cultura na qual é muito nítido o escalonamento da humanidade: há vidas que valem mais do que outras. E o que determina o valor dessas vidas é a combinação entre cor da pele, gênero e condição socioeconômica.

Mesmo com transformações políticas e econômicas significativas do período republicano e o avanço na luta dos direitos humanos, a cultura do extermínio e da sua naturalização nos acompanham. Há pessoas que são, supostamente, menos humanas que outras e, por isso, suas vidas e mortes parecem pouco importar. O que dizer dos 25 mil assassinados em Canudos? Dos milhares de mortos desaparecidos e torturados em nossas experiências ditatoriais? Dos 111 detentos mortos no Carandiru? Do massacre da Haximu? Das chacinas da Candelária e do Vigário Geral? Do massacre de Eldorado dos Carajás? Das vidas ceifadas por balas perdidas? Da imensa maioria dos 400 mil mortos pela covid?

Como definir esses episódios da nossa história?

Extermínio, genocídio, massacre, matança, aniquilação, mortandade, trucidações. Sinta-se à vontade para escolher.
Ynaê Lopes dos Santos, professora de História das Américas na UFF