sexta-feira, 30 de abril de 2021

Todos os credos contra a fome na pandemia

Quando o relógio está prestes a apontar meio dia, um pequeno grupo de pessoas começa a se organizar em uma fila em frente ao portão de ferro de uma casa de candomblé no bairro Brasilândia, periferia da zona norte de São Paulo. Não estão ali para participar de qualquer ritual religioso. Trazem nas mãos potes de plástico para levar para casa uma refeição que, às vezes, é a única do dia. Ronaldo de Freitas ―ou Pai Ronaldo, como é conhecido― mantinha o espaço marcado pelos cultos aos orixás e ricas cerimônias espirituais, mas cedeu parte do terreiro para abrigar a Cozinha Solidária do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e ajudar a enfrentar um horror que sempre assombrou a comunidade e se agravou durante a pandemia: a fome. O pai de santo virou chef. “Eu já trabalhava com o público, mas o candomblé é luxuoso. Agora estou tendo contato direto com o pessoal mais carente. Choro todos os dias por ver crescer a fila de gente que vem sempre aqui porque não tem comida em casa”, diz.

Todos os dias por volta de oito horas da manhã, Pai Ronaldo sai pelos fundos de sua casa e atravessa um salão repleto de símbolos religiosos nas paredes que não vê cerimônias desde o ano passado, quando eclodiu a pandemia. Em seguida, sobe uma escada de cimento com degraus muito estreitos até um amplo terreiro ―com uma saída independente para a rua de trás― onde foi instalada uma pequena cozinha. É ali que prepara diariamente o almoço para uma média de 100 famílias e recebe a vizinhança que busca um prato de comida. “Um pastor de uma igreja aqui do bairro um dia experimentou a comida e veio me parabenizar. Ele está fazendo campanhas de arrecadação de alimento na igreja para ajudar a gente”, conta. “É muito bonito ver isso porque o candomblé sempre sofreu muito preconceito, as pessoas tinham medo de vir aqui. Não é uma cozinha do candomblé, mas está em uma casa de candomblé. E é um sucesso, até o pessoal da igreja está ajudando.” A Cozinha Solidária da Brasilândia é mantida principalmente com doações de uma vaquinha virtual e com o trabalho diário de 30 voluntários, que batem às portas de mercados e feirantes para conseguir parte dos insumos. Eles tentam tornar o projeto autossustentável para que sobreviva mesmo após a pandemia.


“Eu nunca cheguei aqui de mãos vazias”, orgulha-se Selma Maria da Silva Lima, de 54 anos. Ela é espírita kardecista e conta que já leva mais de duas décadas fazendo trabalhos voluntários. “Ajudar o outro está na minha alma.” São meio dia de terça-feira, 6 de abril. Depois de deixar na cozinha um carrinho de feira com as doações que conseguiu na semana passada, ela vai ao portão distribuir senhas e borrifar álcool nas mãos de dezenas de pessoas que foram até ali apesar da chuva intensa daquela manhã em busca de um prato de comida. “Vai começar já já”, avisa. Só podem entrar duas pessoas por vez, todas de máscara, e ela as orienta a manter o distanciamento social com base nas faixas brancas pintadas a mão no chão de cimento. Pelo menos uma vez por semana, Selma deixa a casa que aluga por 900 reais no bairro Pirituba e pega a condução para trabalhar na Cozinha Solidária. Aposentada por invalidez por um problema na coluna, vai pedindo ajuda a motoristas do ônibus e passageiros nos 10 quilômetros de trajeto para conseguir carregar as doações. “Venho com Deus, pedindo ajuda até chegar aqui. Ajudo os outros e sou ajudada também porque levo esta comida para casa”, diz ela, que mora com a filha e viu a renda familiar decair com a redução de salário dela durante a pandemia.

Selma Maria pede licença às duas primeiras pessoas que aguardavam na fila para dar prioridade a Vitória Pereira, que nina em seus braços o filho Arthur, de 9 meses, na calçada. Desde o dia 16 de março, quando a Cozinha Solidária começou a doar almoços, ela caminha até lá em busca de uma refeição também para a mãe, o padrasto e a filha de quatro anos. Eles moram todos na mesma casa, mas no momento só a mãe dela tem conseguido trabalhar fazendo serviços gerais. “Eu venho direto, quase todo dia, porque a gente não tem muita comida em casa”, diz. Nas segundas-feiras, o único dia em que não há distribuição de marmita na Cozinha Solidária, também não há garantias de que a família dela terá alimento à mesa. “Não dá pra fazer todas as refeições. Na segunda, a gente faz o que tem em casa, que é no máximo arroz e feijão”, conta, enquanto Pai Ronaldo preenche as duas vasilhas que ela levou com arroz, feijão, chuchu e salsicha. “Perdi as contas de quantas vezes não tinha nada pra comer e precisei bater na porta dos vizinhos. Ter um lugar que a gente possa vir pegar deixa a gente muito agradecida.”

O drama de Vitória é o mesmo de grande parcela de brasileiros. A pandemia acelerou o avanço da fome no país. E uma pesquisa da Rede Penssan aponta que 116,8 milhões de brasileiros não se alimentam como deveria ―19 milhões deles não tem o que comer. A fome, mostra o estudo, atinge principalmente um perfil mais vulnerável: a mulher negra que vive na periferia e tem baixa escolaridade. Com um auxílio emergencial mais restrito e de menor valor pago pelo Governo Federal além da dificuldade de conseguir trabalho na crise sanitária, a saída de muitas famílias contra a fome tem sido basicamente viver de doações. Segundo uma pesquisa do Instituto Locomotiva, 74% dos brasileiros que receberam doação afirmam que não teriam condições de comprar comida sem elas.

No vácuo das ações do Estado, são muitas as iniciativas por entidades da sociedade civil em todo o país que apostam na solidariedade das pessoas para levar o mínimo a quem precisa: o direito ao alimento. A pesquisa também mostra que 72% dos brasileiros tiveram alguma atitude de solidariedade durante a crise. “Muita gente nos procura para saber se a gente tem uma cartilha porque quer fazer ações como esta nos seus bairros”, afirma Ana Paula Perles, coordenadora nacional do MTST, entidade que está implantando 16 cozinhas solidárias em 11 Estados brasileiros ― todas deverão estar funcionando até o fim do mês de abril. “Depois da pandemia, a gente espera que este espaço seja de construção, que as pessoas possam comer aqui e discutir questões sociais”, emenda a coordenadora do projeto na Brasilândia, Débora Lima.

Há meses, Rosimeire Pires Mota, de 48 anos, praticamente só come graças a estas doações. Sem emprego e lutando contra a depressão, ela recebia no ano passado cestas básicas de uma ONG do bairro e uma doação de legumes toda sexta-feira. “Este ano está pior que no ano passado, tem menos doações. A cesta básica não chega todo mês e eu não consigo mais nem fazer bico de costureira”, lamenta ela, que espera ver as coisas melhorarem em breve quando receber o auxílio emergencial de 130 reais no fim do mês de abril e com a esperança de que os filhos que moram com ela consigam um emprego. “Os dois foram chamados para um teste esses dias. Espero que dê certo porque assim eles me ajudam”, clama. Antes da distribuição de almoço na casa de Pai Ronaldo, ela passou vários dias comendo só arroz que conseguiu numa doação. “Eu me sinto muito mal, choro direto. Tento sorrir, mas acho que meus olhos mostram o que eu tô sentindo”, diz, enquanto segura uma tupperware.

Já está perto de uma hora da tarde, quando se encerrará a distribuição das marmitas. Ao todo, 64 fichas já foram distribuídas, cerca de 60% delas para pessoas que procuram a Cozinha Solidária quase todos os dias, mas alguns chegam ali pela primeira vez. “Até tinha que fazer um serviço, mas os vizinhos contaram que estavam distribuindo almoço aqui e eu decidi vir logo para garantir que vou conseguir levar comida para as crianças em casa”, conta Mateus Batista, de 29 anos. Ele, a esposa e os três filhos dependem do dinheiro que ele consegue fazendo bicos de serviço de limpeza e ajudante de pedreiro. “Está cada vez mais difícil de aparecer”, lamenta. Quando consegue trabalho, o que ganha só dá para comprar o básico do básico. “Tem dia que só dá pro arroz e feijão. No dia que não tem nada, como hoje, 

Naquela terça-feira, era também o aniversário de Pai Ronaldo. “É uma alegria e uma tristeza muito grande o que eu sinto hoje”, ele diz, mergulhado em uma ação solidária tão grande e, ao mesmo tempo, que não dá conta do tamanho da fome dos vizinhos. É também a realização de um sonho cozinhar para os outros depois de ter precisado largar a faculdade particular de gastronomia para conseguir pagar todo o curso universitário de uma de suas duas filhas. “Eu faço com amor esta comida, coloco muito tempero”, diz, orgulhoso. Quem chega ali faz questão de cumprimentá-lo. “Oi, Pai Ronaldo. Hoje eu trouxe uma vizinha”, diz um homem que aparenta ter 40 anos. “Muito bem. Trouxe a vizinha para experimentar minha comida. Seja bem vinda”, responde, acenando para uma moça com uma criança no colo.

É nestes momentos que o chef se emociona e se envolve com as histórias que escuta da comunidade. Ele lembra o dia em que uma criança lhe contou, ao pegar uma marmita, que guardaria parte do almoço para ter o que jantar e de um idoso que estava há dias comendo angu de fubá. “Agora eles sabem que vão ter almoço todo dia. Quando estou colocando a comida, tento colocar que dê para almoço e janta”, conta. Naquela terça-feira chuvosa, 77 pessoas buscaram a comida dele. Pouco depois das 13h, o portão é fechado para só reabrir novamente no dia seguinte. “Minha reação é de sonho realizado por ver tudo isso, por ver que estamos fazendo a diferença.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário