domingo, 28 de novembro de 2021

Brasil no osso

 


Um homicida no Planalto

“Este relator está sobejamente convencido de que há um homicida homiziado no Palácio do Planalto”, disse o senador Renan Calheiros em seu último discurso na CPI da Pandemia. São palavras fortes e Renan, um orador à moda antiga, também recorre a termos pouco usuais, como “sobejamente” e “homiziado”. Mas o ex-presidente do Senado falou por todos nós. E também acertou em cheio ao comparar Jair Bolsonaro ao pastor Jim Jones, responsável pela morte de mais de 1.000 pessoas na Guiana em 1978. Segundo ele, Bolsonaro agiu como “um missionário enlouquecido para matar o próprio povo”.

Nove crimes foram imputados ao “enlouquecido”, que é responsabilizado pelo alto número de mortes na pandemia. Bolsonaro é acusado desde charlatanismo até prevaricação e crimes contra a humanidade. Tudo isso fartamente documentado nas 1.287 páginas do relatório, que expressa os seis meses de trabalho da CPI. Em circunstâncias normais, tais crimes levariam ao impeachment de um presidente da República. Mas nesta quadra terrível da vida nacional, tudo indica que Bolsonaro contará com o escudo protetor do procurador-geral da República, Augusto Aras, a quem caberia tocar os processos.


É quase certo que Aras vai engavetar os pedidos de investigação ou empurrá-los com a barriga. Mas o que foi apurado pela CPI apurado está. E as acusações contra Bolsonaro também serão levadas à Corte Interamericana de Direitos Humanos na Costa Rica e ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (já há denúncias na Corte Internacional de Haia). Mesmo com a cumplicidade de Aras, Jair Bolsonaro dificilmente vai escapar da Justiça ao fim de seu mandato. Seus desmandos e crimes não ficarão impunes.

Mas todo cuidado é pouco com o “homicida do Planalto”. Se o escudo de Aras não falhar, o Capitão Corona só deixará o cargo em 31 de dezembro de 2022. Até lá, mesmo como um pato manco impopular e desmoralizado, ele continuará com a caneta na mão e poderá trazer prejuízos ainda maiores para o país. Hoje o balanço de seu governo é pra lá de medíocre. O desemprego atinge mais de 13 milhões de trabalhadores. A inflação supera 10% ao ano, na maior taxa desde 1995, e o crescimento da economia deve ficar entre 0,5% e 1% no ano que vem. Mal na economia, o governo Bolsonaro é um desastre em todas as frentes. O ex-capitão é, sem dúvida, o pior presidente de todos os tempos.

Seu fracasso só é comparável ao do general João Figueiredo, o último presidente da ditadura militar, que chegou ao Palácio do Planalto com inflação de 40% e o deixou com taxa anual acima de 200%. Dizem em Brasília que, se as pesquisas indicarem que as chances de reeleição são remotas, Bolsonaro sairá candidato ao Senado ou à Câmara. Assim, contará com a imunidade parlamentar para enfrentar os futuros processos. Pode ser. Mas o mais certo é que ele repetirá o exemplo de Figueiredo e deixará o Palácio pelas portas do fundo. Dali, a exemplo do último ditador, Bolsonaro vai para o lixo da história.
Octavio Costa

E o boato se americanizou: 'Fake news'

Ora, um boato é uma espécie de enjeitadinho que aparece à soleira duma porta, num canto de muro ou mesmo no meio duma rua ou duma calçada, ali abandonado não se sabe por quem; em suma, um recém-nascido de genitores ignorados. Um popular acha-o engraçadinho ou monstruoso, toma-o nos braços, nina-o, passa-o depois ao primeiro conhecido que encontra, o qual por sua vez entrega o inocente ao cuidado de outro ou de outros, e assim o bastardinho vai sendo amamentado de seio em seio ou, melhor, de imaginação em imaginação, e em poucos minutos cresce, fica adulto - tão substancial e dramático é o leite da fantasia popular - começa a caminhar pelas próprias pernas, a falar com a própria voz e, perdida a inocência, a pensar com a própria cabeça desvairada, e há um momento em que se transforma num gigante, maior que os mais altos edifícios da cidade, causando temores e às vezes até pânico entre a população, apavorando até mesmo aquele que inadvertidamente o gerou.
Érico Veríssimo

O 'empazuellamento' do Brasil

Eduardo Pazuello, lembra-se? Ex-general do Exército na ativa e ex-ministro porcino da Saúde. Aquele que foi sem nunca ter sido. Já passou à história do Brasil. O futuro falará dele como símbolo da redução do Estado a um rebanho de invertebrados a mando de Jair Bolsonaro. Sua imortal frase "Um manda, outro obedece", dita para 200 milhões de brasileiros, não ficará apenas como expressão de uma pusilanimidade bovina, mas porque pode ter contribuído para a devastação de vidas pela Covid, já que avalizava a quebra de um contrato de compra de vacinas, ordenada por quem o tangia.

Mas é injusto concentrar o empazuellamento em Pazuello. Afinal, ele nunca foi o único pazuello do pedaço, e talvez nem o primeiro. Está em curso um processo de pazuellização em todas as instituições nacionais, com ênfase nas que garantem a imunidade de Bolsonaro e cáfila.


O futuro ministro do Supremo Tribunal Federal André Mendonça, por exemplo, cuja sabatina no Senado está agora por dias, será mais um pazuello no STF. Irá somar-se a Kássio Nunes Marques, que Bolsonaro classificou como "10% dele [Bolsonaro] no Supremo", e a outros que às vezes se juntam a Kássio em pazuellagens pontuais. Uma delas, a que trava o julgamento das rachadinhas de Flávio Bolsonaro e permite ao STJ empazuellar-se de braçada, dando a Flávio sucessivas vitórias. O empazuellamento final será a extinção desse caso.

E a CPI da Covid temia que, depois de meses levantando os crimes contra a vida praticados pelo governo durante a epidemia, tivesse seu relatório posto para dormir pelo procurador-geral da República, Augusto Aras. Pois não há mais o que temer. O relatório já ronca no berço esplêndido da empazuellada PGR.

Mas o grande empazuellamento, não por acaso, é o do Exército. Não importa quão cheios de vento, seus generais foram reduzidos a pazuellos por Bolsonaro, e isso também entrará para a história.

O Brasil perdeu toda a credibilidade

Poucos dias depois do fim da última Conferência do Clima da ONU, a COP26, a Comissão Europeia apresentou um projeto de lei que propõe proibir a importação para a União Europeia (UE) de todos os produtos provenientes de áreas desmatadas. E não importa se as leis locais permitem ou não esse desmatamento. Se, por exemplo, soja ou óleo de palma forem cultivados em áreas que em 31 de dezembro de 2020 ainda eram floresta, sua importação para a UE seria proibida.

Seriam afetadas inicialmente as importações de carne bovina, madeira, soja, óleo de palma, café e cacau, além de uma lista de produtos derivados, como chocolate e couro. A lista poderia ser ampliada futuramente, segundo a UE. Milho e borracha devem ser adicionados. E como fica o minério de ferro, por exemplo, que é extraído em áreas de floresta tropical?


Com a proposta, a UE reage à pressão de consumidores e organizações ambientais que querem reduzir a responsabilidade da Europa na destruição de florestas tropicais mundo afora. O projeto de lei deve agora ser submetido ao Parlamento Europeu e aos Estados-membros da UE. Eles ainda podem fazer mudanças antes que a proposta seja aprovada, e isso pode levar algum tempo.

Mas já está claro que esse projeto de lei é um golpe amargo para agricultores e exportadores brasileiros. Pois futuramente eles devem ter que comprovar que seus produtos não foram cultivados em áreas desmatadas. Isso é caro e complicado. Especialmente porque o Brasil é um produtor para o qual as certificadoras vão olhar particularmente de perto, para ver se não há produtos de áreas desmatadas nas cadeias de fornecimento. Mesmo agricultores que hoje se atêm às leis no Brasil podem vir a enfrentar incertezas quanto à possibilidade de vender seus produtos para a Europa.

Na verdade, a UE não pode simplesmente desconsiderar leis ambientais nacionais e deve cumprir acordos no comércio internacional. Agora, o Brasil teria que tentar formar uma aliança com outros países produtores para negociar exceções ou prazos com o bloco europeu. No Brasil, por exemplo, faz pouco sentido colocar o cacau na lista, pois seu cultivo muitas vezes protege regiões de floresta tropical contra o desmatamento. A situação da borracha é semelhante, e, em parte, também a do café.

O problema, no entanto, é a falta de credibilidade do Brasil. Quem deve confiar em negociadores brasileiros quando eles omitem o mais recente recorde de desmatamento justamente na Conferência do Clima, apesar de os números estarem disponíveis há muito tempo? Como um governo pode ser levado a sério quando continua a enfraquecer os órgãos ambientais em termos de pessoal e financiamento e, em vez disso, envia militares ou policiais despreparados para a Amazônia para protegê-la? Ou como pode ser levado a sério um presidente que acaba de declarar mais uma vez que a floresta tropical não pega fogo porque é muito úmida?

O Brasil raramente se viu tão vulnerável e indefeso diante de medidas unilaterais de seus parceiros comerciais. As associações agrícolas brasileiras podem agradecer em Brasília por isso.

Improviso institucional trava o Brasil

O Brasil está travado institucionalmente por doses cavalares de improviso e casuísmo que foram sendo tolerados nos últimos três anos e culminaram num cenário em que não há previsibilidade alguma nos campos jurídico, político, fiscal e econômico.

O responsável pelo império da incerteza é Jair Bolsonaro, claro, mas os demais Poderes, o Ministério Público, o mercado e o Tribunal de Contas da União (TCU) são alguns dos cúmplices.

Bolsonaro não tinha maioria. Achava que obteria apoio parlamentar colocando sua turba das redes sociais para acossar o Congresso. Obviamente, não funcionou.

Mudou de método e decidiu comprar uma base parlamentar à custa de orçamento secreto. Vinha funcionando, até o Supremo Tribunal Federal (STF) mandar acabar com a brincadeira.

Agora, diante do impasse institucional, os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira, resolvem se unir para salvaguardar o caráter sorrateiro das emendas do relator e preservar seus comandados da luz do dia. Resultado: anunciam que descumprirão decisão judicial! E marcam sessão do Congresso numa sexta-feira para tornar a desobediência oficial!

Quais os caminhos possíveis a partir daí? Pacheco pode usar sua voz aveludada para tentar convencer Rosa Weber de que não está afrontando a decisão tomada pelo plenário da mais alta Corte do país. Mas ela não acreditará. Quanto mais se pode esticar uma corda dessas sem profundas consequências para o ordenamento democrático?


Da mesma forma, com o fim desastroso do Bolsa Família, criou-se um vácuo jurídico e fiscal em que o Auxílio Brasil existe de forma anômala: no papel, mas sem uma receita permanente que o assegure.

A partir daí, vale tentar uma sucessão de cavalos de pau legislativos, fiscais e até na lógica mais primária. Mas é o tal “se colar, colou”. Como o TCU e o STF já deram mostras de que podem aceitar gambiarras, o Congresso e o Executivo vão exagerando na dose das que propõem.

Além da revogação do teto de gastos e do calote nos precatórios, a atual versão da PEC acaba por rasgar também a Lei de Responsabilidade Fiscal.

A dificuldade em passar esse trambolho pelo Senado, apesar de tantos absurdos, acaba sendo mais resultado de questões políticas que de uma genuína preocupação dos senadores com o futuro das contas públicas, o ambiente de investimentos no Brasil transformado em Casa da Mãe Joana ou o que ficará de papagaio para o próximo governo.

O que está pegando, no fundo, são as artimanhas de Davi Alcolumbre para deixar de aprovar André Mendonça para o STF, a disputa interna por uma vaga no TCU, a pretensão eleitoral de Pacheco e outras tantas questões típicas de Câmara de Vereadores, e não do Senado Federal.

De forma silenciosa, e nem sempre linear, acaba acontecendo a bolsonarização de todas as instituições. Com um presidente que avacalha todos os ritos, que gasta os dias em papo furado com apoiadores, solenidades da importância da chegada do Papai Noel e viagens desprovidas de estratégia comercial ou diplomática, tudo vai sendo rebaixado.

As relações entre os Poderes hoje se assemelham a novelas de baixo orçamento de emissoras com traço de audiência. Quando seria tolerável que, depois de anunciar que não cumprirá uma decisão judicial, o presidente do Senado pedisse uma audiência com uma ministra do Supremo para tentar levá-la no papo?

O Brasil está, com tanto improviso coordenado, contratando um ano eleitoral em que não se tem a mínima ideia de qual será a cara do Orçamento. Como e onde se vai gastar?

O que será feito de concreto, e não mero chute grotesco, para conter a inflação galopante, para tentar gerar empregos e para fazer com que o país volte a ser, se não atraente, ao menos minimamente confiável aos olhos de governos parceiros e investidores privados?

A julgar pelos passos claudicantes das nossas instituições, absolutamente nada. Vamos assim, na base de patéticas tentativas e sucessivos erros.

Notícia de jornal

Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de cor branca, 30 anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno centro da cidade, permanecendo deitado na calçada durante 72 horas, para finalmente morrer de fome.

Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos de comerciantes, uma ambulância do pronto-socorro e uma radiopatrulha foram ao local, mas regressaram sem prestar auxíio ao homem, que acabou morrendo de fome.

Um homem que morreu de fome. O comissário de plantão (um homem) afirmou que o caso (morrer de fome) era da alçada da Delegacia de Mendicância, especialista em homens que morrem de fome. E o homem morreu de fome.

O corpo do homem que morreu de fome foi recolhido ao Instituto Anatômico sem ser identificado. Nada se sabe dele, senão que morreu de fome.

Um homem morre de fome em plena rua, entre centenas de passantes. Um homem caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa - não é um homem. E os outros homens cumprem seu destino de passantes, que é o de passar. Durante setenta e duas horas todos passam, ao lado do homem que morre de fome, com um olhar de nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar nenhum. Passam, e o homem continua morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os homens, sem socorro e sem perdão.

Não é da alçada do comissário, nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria de ser da minha alçada? Que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.

E o homem morre de fome. De trinta anos presumíveis. Pobremente vestido. Morreu de fome, diz o jornal. Louve-se a insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome, pedindo providências às autoridades. As autoridades nada mais puderam fazer senão remover o corpo do homem. Deviam deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros homens. Nada mais puderam fazer senão esperar que morresse de fome.

E ontem, depois de setenta e duas horas de inanição, tombado em plena rua, no centro mais movimentado da cidade do Rio de Janeiro, estado da Guanabara, um homem morreu de fome.

Morreu de fome.
Fernando Sabino, "A mulher do vizinho"