segunda-feira, 8 de setembro de 2025
Mídia miúda
Mão anônima escreveu num muro do bairro de San Telmo, em Buenos Aires, neste tempo de crise atroz:; "Nos mijam e os jornais dizem chove"
Eduardo Galeano, "O teatro do bem e do mal"
Eduardo Galeano, "O teatro do bem e do mal"
Por que essa estratégia não dá certo?
A 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (ou a COP30) toma todas as atenções no Brasil em 2025. A ser sediada em Belém – PA, em novembro deste ano, é esperado que o evento receba entre 50 e 60 mil pessoas, entre delegações oficiais, observadores e participantes da sociedade civil. Esse expressivo número de atores envolvidos não é à toa: falar em justiça climática e no papel dos países em desenvolvimento exige lidar com interesses diversos e enormes contradições.
A escolha de Belém como cidade-sede dá ainda mais peso a esse discurso: realizar a conferência no coração da Amazônia é estratégico, pois coloca o maior bioma tropical do planeta no foco das discussões sobre futuro climático e sustentabilidade global. Mas não é só estratégia, é também um gesto simbólico. A floresta carrega significados diversos: abriga povos que a percebem e vivem de formas distintas, tecendo relações que vão muito além da ideia de recurso natural. Para o evento, esse simbolismo se traduz na grandiosidade do bioma em si –afinal, trata-se da região que concentra mais da metade das florestas tropicais remanescentes do planeta e uma das maiores reservas de biodiversidade conhecidas.
Mais do que isso, a Amazônia funciona como um verdadeiro regulador climático: ajuda a estabilizar temperaturas globais, influencia o regime de chuvas na América do Sul e até em outras partes do mundo, e armazena toneladas de carbono que, se liberadas, acelerariam ainda mais o aquecimento global. Não à toa, é chamada de “pulmão do planeta” – embora, na prática, cumpra um papel muito mais complexo do que essa metáfora simplifica. O próprio governo brasileiro1 diz tratar-se de uma oportunidade histórica para reafirmar o protagonismo do país nas negociações climáticas, destacando esforços em energias renováveis, biocombustíveis e agricultura de baixo carbono – lembrando, claro, o currículo diplomático que vai da Eco-92 à Rio+20.
A conferência deverá colocar em pauta desde a redução das emissões de gases de efeito estufa e a adaptação aos impactos já visíveis das mudanças climáticas, até debates sobre financiamento climático e os caminhos para uma transição energética baseada em fontes renováveis. Também ganha centralidade a preservação das florestas, não apenas como reservas de biodiversidade e estoques de carbono, mas como elementos vitais para a regulação climática em escala planetária. Nesse contexto, a participação de povos indígenas e comunidades tradicionais deveria se tornar imprescindível: são eles que historicamente conservam os territórios, detêm saberes ancestrais fundamentais para o que os cientistas denominam de “sustentabilidade” e que, ao mesmo tempo, sofrem de forma mais direta os efeitos da destruição ambiental e estão mais vulneráveis aos riscos decorrentes da mudança climática.
Porém, por trás do entusiasmo oficial, a COP30 também expõe contradições incômodas: afinal, são mesmo essas pautas ambientais e sociais que movem o Brasil para a frente? Ou estaremos diante de mais uma encenação verde, enquanto, nos bastidores, o “progresso” continua a ser sinônimo de devastação, lucro rápido e exploração das riquezas da floresta? Essa é a encruzilhada que a conferência nos obriga a encarar: que tipo de futuro estamos construindo quando o desenvolvimento ainda significa sacrificar a natureza e silenciar os povos que a defendem?
Essa contradição não é nova. O Brasil há décadas se equilibra entre o discurso de liderança ambiental e a prática de um modelo econômico que insiste em chamar de “desenvolvimento” aquilo que, na realidade, tantas vezes se traduz em destruição. Não por acaso, os grandes projetos sempre aparecem revestidos de promessas sedutoras: emprego, renda, infraestrutura e cidadania pelo consumo. É nesse ponto que entramos no cerne da questão – o que significa, afinal, desenvolver? “Emprego, renda e desenvolvimento” são os pilares que ancoram as promessas dos grandes projetos desenvolvimentistas. Tal qual ocorreu com Brumadinho, Mariana ou Belo Monte. Quem, em sã consciência, poderia negar essas coisas tão desejáveis? Essa é, afinal, a parte bela do capitalismo – a promessa de progresso material, de ser cidadão por meio da capacidade de consumir.
O Produto Interno Bruto (PIB) de um país mede os bens e serviços finais produzidos no território. É o maior indicador de desempenho econômico das nações. Seu cálculo engloba desde a produção de automóveis até um corte de cabelo. Falar do PIB reforça a importância do dinheiro enquanto moeda, do comércio, da circulação de produtos. O PIB per capita, por sua vez, traduz esse índice em relação à quantidade de habitantes de determinado território.
Estes, junto com a expectativa de vida e os anos de escolaridade, compõem o IDH, o Índice de Desenvolvimento Humano. O PIB é utilizado para definir se um país é rico ou pobre; o IDH identifica se o mesmo é desenvolvido ou não. Contudo, algumas questões não são traduzidas no IDH nem no PIB: quando você colhe uma fruta da árvore e come, essa ação não entra no PIB. Agora, se você vai ao mercado e compra uma fruta – mesmo que não a coma, mesmo que ela apodreça em sua fruteira, movimentou o PIB e gerou, em uma escala muito pequena, aumento da renda e do desenvolvimento do seu país.
Sob essa ótica, é inevitável questionar até que ponto o IDH consegue refletir o desenvolvimento de territórios sustentados pelo autoconsumo, pela economia circular e por uma menor dependência da moeda. Nada disso aparece nos tradicionais indicadores de emprego, renda e crescimento econômico. Quando essas métricas se tornam a régua principal, tudo o que foge delas acaba invisibilizado – tratado como menor, periférico, relegado às margens. Essa limitação fica ainda mais evidente na Amazônia, onde projetos como Belo Monte escancaram o abismo entre estatísticas oficiais e modos de vida tradicionais.
São modos de vida que não têm no dinheiro sua base de existência. Comunidades agroextrativistas, quilombolas e indígenas constroem o “existir” e o bem-viver sem depender necessariamente do comércio ou da lógica da compra e venda. Belo Monte é um retrato dessa ruptura: pescadores foram removidos de suas margens e levados a cerca de 7 km do rio. Como garantir a continuidade desse modo de vida quando a distância do território e a escassez de peixes inviabilizam a fartura que antes assegurava alimento e dignidade?
“Como é que você vai levar um pescador, que mora na beira do rio, que só sabe pescar, ou um peconheiro que apanha açaí, que vive daquilo, tu vais levar o açaí junto com ele pro asfalto? Vai levar o rio onde o pescador pesca para lá também? ”. O questionamento de Daniela Silva Araújo, moradora de Pirocaba, uma comunidade agroextrativista em Abaetetuba, Pará, traduz a indignação perante o desenvolvimento irracional que ‘os de fora’ insistem em impor.
No Brasil de 2025, a questão de Daniela é ainda mais complexa. As questões ambientais continuam sendo coadjuvantes ‘do real problema’. Inclusive, estas têm se mostrado, historicamente, como obstáculos ao enfrentamento do desemprego e da superação da pobreza. Aqui, não se sabe como dar legitimidade às questões ambientais, o caminho parece mais árduo. Mas, desde o milagre econômico, a resposta e solução para o desemprego e pobreza tem sido o “desenvolvimento”, este que atropela o meio ambiente e os corpos que dele dependem.
A pergunta de Daniela não se dá num vácuo: a Cargill tinha planos de construir um porto em Abaetetuba, a cerca de 120 quilômetros de Belém. A empresa comprou um terreno em área sobreposta a um assentamento da reforma agrária, o Assentamento Santo Antônio. Essa operação, é importante ressaltar, está sendo investigada por suspeita de grilagem pelo Ministério Público Federal (MPF).
A região em que o porto da Cargill pretendia se instalar apresenta um modo de vida muito específico e diverso: ali, vivem mais de 7 mil famílias ribeirinhas, com forte vínculo com a natureza local e dependem dos recursos hídricos para manutenção da família e sobrevivência. Em uma reunião com os representantes da empresa, a Daniela questionou: “o que farão com as pessoas afetadas?” Elas seriam remanejadas, foi a resposta que recebeu do representante da empresa. O espaço físico para assentamento das famílias já estava sendo construído, longe do rio, ignorando a dinâmica dos ribeirinhos – tal qual aconteceu com os ribeirinhos afetados pela hidrelétrica.
Belo Monte era a proposta de um mundo novo e desenvolvido para diversas famílias, mas, na verdade, foi o fim, assim como a Transamazônica na década de 1970 e pode ser atualmente com a Ferrogrão e o Porto da Cargill. Todas essas são propostas de promoção do desenvolvimento do país, seja para escoar grãos, tornar o agronegócio mais lucrativo, levar os benefícios do desenvolvimento em áreas não agraciadas por ele. Esse desenvolvimento, pelo menos no Brasil e em outros países do sul global, tem criado um ganho satisfatório para alguns, contudo, não vem sem custo: o ônus recai principalmente para aqueles que seriam “salvos”. O revés recai, sempre, sobre os moradores tradicionais do território. Pessoas essas que sequer são consultadas no processo que envolve a mudança dos seus próprios territórios.
Belo Monte foi vendida como a promessa de fornecer energia sustentável ao Brasil, mas desde o início já se sabia que sua produtividade seria baixa diante da sazonalidade do rio Xingu. Apesar da capacidade instalada de 11.233 MW, a geração média efetiva não passa de 4.500 MW – cerca de 40% do projetado. Em 2024, por exemplo, a usina entregou apenas 2.581 MW, míseros 23% de sua capacidade3.Uma escolha que, além de ineficiente do ponto de vista energético, mostrou-se um erro estratégico: para viabilizar a hidrelétrica, o curso do rio foi alterado, agravando a instabilidade natural de cheias e secas e comprometendo ainda mais o equilíbrio do próprio Xingu. Ou seja, Belo Monte não apenas falhou em cumprir sua promessa de geração de energia, como deixou o rio e as comunidades que dele dependem em situação ainda mais frágil.
Marcelo Camargo, geógrafo, corrobora essa afirmação. Ele afirma: “o Xingu passa seis meses em estiagem total, inviabilizando o funcionamento de uma estrutura como Belo Monte”. Além disso, a obra custou praticamente o dobro do previsto inicialmente. Ela foi orçada em R$16 bilhões, mas o custo final chegou a R$30 bilhões. Sobre essa questão, Camargo adiciona: “com as previsões de redução da capacidade de produção e os custos de operação, é impossível que Belo Monte, ao longo desses 30 anos, supere o valor do seu próprio custo”.
Em concordância com Daniela Araújo, Maria Cristina Alves da Costa, que vivia em uma comunidade que não existe mais para que Belo Monte pudesse ser construída, afirma: “O que eu sei fazer é pescar. Como vou pegar peixe no asfalto?”. Ela comprou uma casa em Altamira, com uma carta de crédito oferecida pela usina, buscando melhores condições de vida para si e para os filhos. Depois de nove meses sem qualquer tipo de renda ou alternativas, Maria optou por voltar para as margens do rio Xingu.
Vale ressaltar, ainda, que tanto a Ferrogrão quanto o Porto da Cargill são propostas para melhorar o escoamento de grãos oriundos do agronegócio, do Centro-Oeste brasileiro. Este, tal qual os grandes projetos de desenvolvimento que o cercam, anunciam-se como solução dos problemas vinculados à fome no mundo. Agora, quando a gente olha como ele de fato se estabelece no território, é possível perceber que o sistema alimentar explicita grande parte das contradições que ele se propõe a combater: ele está associado à concentração de terras e renda, exploração da mão de obra – principalmente a feminina, que recebe salários menores e está mais suscetível ao trabalho sazonal e ao assédio sexual. O agronegócio está vinculado, também, ao aumento da insegurança alimentar nos territórios em que ele é desenvolvido. Tal qual, novamente, os grandes projetos de desenvolvimento.
Esses grandes projetos são a promessa de emprego, renda e desenvolvimento. Eles representam uma maior integração ao capitalismo, mas de forma marginal: levam o pescador para morar longe do rio, o agroextrativista para morar longe da floresta. A ideia de um grande projeto de desenvolvimento funciona de forma circular: com a justificativa de regiões apresentarem PIB e IDH baixos – ou abaixo da média – eles são instalados. Geram uma integração periférica ao capitalismo e, ao não atingirem seus objetivos de trazer ‘desenvolvimento, emprego e renda’ justificam a implementação de um novo grande projeto.
Foi assim pelas chapadas do Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais, quando o desenvolvimento alcançou a região por meio da implementação massiva da monocultura do eucalipto na década de 1970, posteriormente com a Usina Hidrelétrica de Irapé em 2006 e agora com as mineradoras de lítio. Três projetos em décadas diferentes com a mesma pretensão, gerar emprego e renda.
Já na Amazônia, sede da COP 30 e objeto do olhar da conferência, vemos uma região marcada pelas veias abertas, pelos projetos alheios, pelas definições de quem acha que sabe o que é desenvolvimento (sobre os outros). Essa é a Amazônia que traz, historicamente, desenvolvimento, emprego e renda. Se tem dado certo ou não cabe a cada um e a nós, enquanto sociedade, buscarmos entender. O progresso esperado é esse em que a Amazônia vira a periferia de um país periférico, que se orgulha em ser “celeiro do mundo”? Ou é a Floresta Tropical que nos ensina como habitar esse planeta de modo a não saturar os recursos naturais? É a Amazônia, escolhida como sede do maior evento sobre sustentabilidade no mundo que vai nos ensinar? Então cabe a nós aprendermos com ela, entender que o centro do mundo é a Amazônia, e não impor a nossa visão capitalista de desenvolvimento sobre a floresta e seus habitantes.
Enquanto a Amazônia é anunciada como o centro do mundo no discurso oficial da COP30, no cotidiano político do Brasil seguem avançando projetos que caminham na direção oposta. A prova disso veio na calada da noite de 16 de julho, quando o chamado “PL da Devastação” foi aprovado. A contradição salta aos olhos: de um lado, a promessa de aprender com a floresta; de outro, a abertura de novas frentes para o agronegócio e a mineração, setores historicamente responsáveis por feridas profundas no território amazônico e no país.
O presidente Lula sancionou a lei com vetos parciais, mas o texto segue em tramitação no Congresso. Na prática, abre-se ainda mais espaço para que o agronegócio e a mineração avancem sobre territórios sensíveis, aumentando o risco de repetirmos tragédias como as de Brumadinho e Mariana. O paradoxo é evidente: em nome de um suposto “desenvolvimento sustentável”, multiplicam-se projetos de extração de lítio, cobalto, níquel e terras raras – minerais essenciais para carros elétricos e torres eólicas – enquanto a floresta e os povos que nela habitam pagam a conta dessa corrida verde.
A transição energética corre o risco de se tornar um novo colonialismo. O Brasil poderia assumir a dianteira em uma guinada realmente sustentável, mas os discursos oficiais insistem em reforçar velhas lógicas de espoliação ambiental. Sobre a exploração de petróleo na foz do Amazonas, o presidente Lula afirma: “A Petrobras é uma empresa responsável. Tem a maior experiência de exploração de petróleo em águas profundas. Vamos cumprir todos os ritos necessários para que a gente não cause estrago na natureza. Até porque é dessa riqueza que a gente vai ter dinheiro para construir a sonhada transição energética4”.
A contradição é gritante: como apostar em combustíveis fósseis – que são uma das raízes da crise climática – para financiar a transição que supostamente deveria superá-los? Essa justificativa ecoa a velha narrativa do “sacrifício necessário” em nome do progresso, mas ignora que as populações locais e os ecossistemas são os primeiros a pagar o preço. Se não questionarmos esse modelo, corremos o risco de trocar uma dependência por outra, mantendo a lógica de exploração predatória sob o verniz de “energia limpa”.
Os “ritos necessários” também foram seguidos em Mariana e em Brumadinho. A barragem da Samarco, em Mariana, era classificada como de médio impacto ambiental – tecnicamente enquadrada dentro da normalidade e autorizada pelos órgãos competentes. Ainda assim, foi justamente essa estrutura que deu origem, em 2015, ao que o Ministério Público Federal descreve como “o maior desastre ambiental do Brasil – e um dos maiores do mundo”.
Se tais desastres puderam ocorrer sob o manto da legalidade e do “cumprimento de requisitos”, o que nos garante que novos projetos, agora ainda mais ambiciosos e arriscados, não reproduzirão as mesmas tragédias? A questão central não é apenas cumprir protocolos, mas reconhecer que esses protocolos já se mostraram insuficientes diante de um modelo econômico que normaliza o risco e transfere seus custos humanos e ambientais para comunidades inteiras. Ainda mais quando iniciativas como o PL da Devastação avançam no Congresso, enfraquecendo salvaguardas socioambientais e tornando a aprovação de empreendimentos de alto impacto ainda mais simplificadas. Nesse cenário, a legalidade deixa de ser uma barreira de proteção para se tornar um atalho que facilita a reprodução da destruição.
Diante de tudo isso, fica evidente que a retórica oficial da sustentabilidade muitas vezes camufla uma continuidade do modelo predatório: protocolos e leis funcionam mais como aparências de proteção do que como barreiras reais contra a destruição. Se desastres como Mariana e Brumadinho ocorreram sob o ar da legalidade, e se agora se flexibilizam regras para o agronegócio e a mineração, a urgência deixa de ser apenas ambiental ou econômica, torna-se cultural e ética. O verdadeiro desafio não está em celebrar discursos verdes, mas em repensar nossas práticas, modos de produção e a forma como nos relacionamos com a natureza.
Talvez ainda não seja tarde para aprender com as populações que há séculos convivem de maneira equilibrada com o meio ambiente, e talvez isso custe bem menos do que insistir em modelos de desenvolvimento predatórios. Percebemos que a mudança cultural e de sistema econômico seja a única salvação para o Antropoceno. É tempo de retomada: nossas bases, sejam elas produtivas ou culturais precisam ser repensadas, e devemos observar com atenção e integrar aos debates os povos originários e as comunidades tradicionais, que praticam a sustentabilidade muito antes de o conceito sequer existir. No contexto do Brasil, país-sede da COP30, a reflexão se torna ainda mais urgente, pois a sustentabilidade, na prática, parece seguir em segundo plano diante das pressões do agronegócio, da mineração e de interesses econômicos de curto prazo.
Talvez, pensar que o desenvolvimento não seja o caminho. Como diz Nego Bispo: “vamos pegar as palavras do inimigo que estão potentes e vamos enfraquecê-las. E vamos pegar as nossas palavras que estão enfraquecidas e vamos potencializá-las. Por exemplo, se o inimigo adora dizer desenvolvimento, nós vamos dizer que o desenvolvimento desconecta, que o desenvolvimento é uma variante da cosmofobia. Vamos dizer que a cosmofobia é um vírus e botar para ferrar com a palavra desenvolvimento. Porque a palavra boa é envolvimento”.
O discurso da COP30 sobre desenvolvimento muitas vezes se ancora na promessa de conciliar crescimento econômico com sustentabilidade, mas a realidade mostra que essas estratégias pouco se traduzem em mudanças efetivas. Ao colocar o Brasil como protagonista das negociações climáticas, enfatizando energias renováveis, agricultura de baixo carbono e biocombustíveis, o evento corre o risco de transformar o país em uma vitrine de boas intenções, sem lidar com as contradições estruturais do modelo econômico que historicamente explora os biomas e águas de forma verdadeiramente insustentável.
O problema central está na própria concepção de “desenvolvimento” que orienta essas políticas: métricas como emprego, renda e crescimento econômico são usadas como indicadores absolutos, invisibilizando modos de vida sustentáveis baseados no autoconsumo, na economia circular e na convivência harmoniosa com a natureza. Projetos de mineração, grandes hidrelétricas e expansão do agronegócio seguem avançando sob a justificativa de gerar emprego, renda e progresso, enquanto comunidades locais e ecossistemas pagam o preço mais alto. Assim, as populações indígenas, quilombolas e agroextrativistas permanecem à margem, enquanto o que realmente determina decisões políticas e econômicas é o lucro imediato sobre os recursos naturais.
A transformação climática e social que o planeta precisa exigir mais do que metas de emissão e painéis de energia renovável: exige repensar os conceitos de progresso e riqueza, valorizar modos de vida sustentáveis, reconhecer os saberes ancestrais de comunidades tradicionais e integrar essas perspectivas nas decisões políticas e econômicas. Sem essa mudança de paradigma, a conferência pode, mais uma vez, acabar reforçando o mesmo sistema que provoca desastres ambientais, desigualdade e crises socioambientais, transformando o que deveria ser um ponto de virada em mais um episódio de “greenwashing” global. Até essa virada de chave, todo o brilho da COP30 corre o risco de servir apenas como fachada, enquanto a floresta, seus povos e o futuro do planeta pagam o preço da continuidade de velhos padrões de exploração.
A escolha de Belém como cidade-sede dá ainda mais peso a esse discurso: realizar a conferência no coração da Amazônia é estratégico, pois coloca o maior bioma tropical do planeta no foco das discussões sobre futuro climático e sustentabilidade global. Mas não é só estratégia, é também um gesto simbólico. A floresta carrega significados diversos: abriga povos que a percebem e vivem de formas distintas, tecendo relações que vão muito além da ideia de recurso natural. Para o evento, esse simbolismo se traduz na grandiosidade do bioma em si –afinal, trata-se da região que concentra mais da metade das florestas tropicais remanescentes do planeta e uma das maiores reservas de biodiversidade conhecidas.
Mais do que isso, a Amazônia funciona como um verdadeiro regulador climático: ajuda a estabilizar temperaturas globais, influencia o regime de chuvas na América do Sul e até em outras partes do mundo, e armazena toneladas de carbono que, se liberadas, acelerariam ainda mais o aquecimento global. Não à toa, é chamada de “pulmão do planeta” – embora, na prática, cumpra um papel muito mais complexo do que essa metáfora simplifica. O próprio governo brasileiro1 diz tratar-se de uma oportunidade histórica para reafirmar o protagonismo do país nas negociações climáticas, destacando esforços em energias renováveis, biocombustíveis e agricultura de baixo carbono – lembrando, claro, o currículo diplomático que vai da Eco-92 à Rio+20.
A conferência deverá colocar em pauta desde a redução das emissões de gases de efeito estufa e a adaptação aos impactos já visíveis das mudanças climáticas, até debates sobre financiamento climático e os caminhos para uma transição energética baseada em fontes renováveis. Também ganha centralidade a preservação das florestas, não apenas como reservas de biodiversidade e estoques de carbono, mas como elementos vitais para a regulação climática em escala planetária. Nesse contexto, a participação de povos indígenas e comunidades tradicionais deveria se tornar imprescindível: são eles que historicamente conservam os territórios, detêm saberes ancestrais fundamentais para o que os cientistas denominam de “sustentabilidade” e que, ao mesmo tempo, sofrem de forma mais direta os efeitos da destruição ambiental e estão mais vulneráveis aos riscos decorrentes da mudança climática.
Porém, por trás do entusiasmo oficial, a COP30 também expõe contradições incômodas: afinal, são mesmo essas pautas ambientais e sociais que movem o Brasil para a frente? Ou estaremos diante de mais uma encenação verde, enquanto, nos bastidores, o “progresso” continua a ser sinônimo de devastação, lucro rápido e exploração das riquezas da floresta? Essa é a encruzilhada que a conferência nos obriga a encarar: que tipo de futuro estamos construindo quando o desenvolvimento ainda significa sacrificar a natureza e silenciar os povos que a defendem?
Essa contradição não é nova. O Brasil há décadas se equilibra entre o discurso de liderança ambiental e a prática de um modelo econômico que insiste em chamar de “desenvolvimento” aquilo que, na realidade, tantas vezes se traduz em destruição. Não por acaso, os grandes projetos sempre aparecem revestidos de promessas sedutoras: emprego, renda, infraestrutura e cidadania pelo consumo. É nesse ponto que entramos no cerne da questão – o que significa, afinal, desenvolver? “Emprego, renda e desenvolvimento” são os pilares que ancoram as promessas dos grandes projetos desenvolvimentistas. Tal qual ocorreu com Brumadinho, Mariana ou Belo Monte. Quem, em sã consciência, poderia negar essas coisas tão desejáveis? Essa é, afinal, a parte bela do capitalismo – a promessa de progresso material, de ser cidadão por meio da capacidade de consumir.
O Produto Interno Bruto (PIB) de um país mede os bens e serviços finais produzidos no território. É o maior indicador de desempenho econômico das nações. Seu cálculo engloba desde a produção de automóveis até um corte de cabelo. Falar do PIB reforça a importância do dinheiro enquanto moeda, do comércio, da circulação de produtos. O PIB per capita, por sua vez, traduz esse índice em relação à quantidade de habitantes de determinado território.
Estes, junto com a expectativa de vida e os anos de escolaridade, compõem o IDH, o Índice de Desenvolvimento Humano. O PIB é utilizado para definir se um país é rico ou pobre; o IDH identifica se o mesmo é desenvolvido ou não. Contudo, algumas questões não são traduzidas no IDH nem no PIB: quando você colhe uma fruta da árvore e come, essa ação não entra no PIB. Agora, se você vai ao mercado e compra uma fruta – mesmo que não a coma, mesmo que ela apodreça em sua fruteira, movimentou o PIB e gerou, em uma escala muito pequena, aumento da renda e do desenvolvimento do seu país.
Sob essa ótica, é inevitável questionar até que ponto o IDH consegue refletir o desenvolvimento de territórios sustentados pelo autoconsumo, pela economia circular e por uma menor dependência da moeda. Nada disso aparece nos tradicionais indicadores de emprego, renda e crescimento econômico. Quando essas métricas se tornam a régua principal, tudo o que foge delas acaba invisibilizado – tratado como menor, periférico, relegado às margens. Essa limitação fica ainda mais evidente na Amazônia, onde projetos como Belo Monte escancaram o abismo entre estatísticas oficiais e modos de vida tradicionais.
São modos de vida que não têm no dinheiro sua base de existência. Comunidades agroextrativistas, quilombolas e indígenas constroem o “existir” e o bem-viver sem depender necessariamente do comércio ou da lógica da compra e venda. Belo Monte é um retrato dessa ruptura: pescadores foram removidos de suas margens e levados a cerca de 7 km do rio. Como garantir a continuidade desse modo de vida quando a distância do território e a escassez de peixes inviabilizam a fartura que antes assegurava alimento e dignidade?
“Como é que você vai levar um pescador, que mora na beira do rio, que só sabe pescar, ou um peconheiro que apanha açaí, que vive daquilo, tu vais levar o açaí junto com ele pro asfalto? Vai levar o rio onde o pescador pesca para lá também? ”. O questionamento de Daniela Silva Araújo, moradora de Pirocaba, uma comunidade agroextrativista em Abaetetuba, Pará, traduz a indignação perante o desenvolvimento irracional que ‘os de fora’ insistem em impor.
No Brasil de 2025, a questão de Daniela é ainda mais complexa. As questões ambientais continuam sendo coadjuvantes ‘do real problema’. Inclusive, estas têm se mostrado, historicamente, como obstáculos ao enfrentamento do desemprego e da superação da pobreza. Aqui, não se sabe como dar legitimidade às questões ambientais, o caminho parece mais árduo. Mas, desde o milagre econômico, a resposta e solução para o desemprego e pobreza tem sido o “desenvolvimento”, este que atropela o meio ambiente e os corpos que dele dependem.
A pergunta de Daniela não se dá num vácuo: a Cargill tinha planos de construir um porto em Abaetetuba, a cerca de 120 quilômetros de Belém. A empresa comprou um terreno em área sobreposta a um assentamento da reforma agrária, o Assentamento Santo Antônio. Essa operação, é importante ressaltar, está sendo investigada por suspeita de grilagem pelo Ministério Público Federal (MPF).
A região em que o porto da Cargill pretendia se instalar apresenta um modo de vida muito específico e diverso: ali, vivem mais de 7 mil famílias ribeirinhas, com forte vínculo com a natureza local e dependem dos recursos hídricos para manutenção da família e sobrevivência. Em uma reunião com os representantes da empresa, a Daniela questionou: “o que farão com as pessoas afetadas?” Elas seriam remanejadas, foi a resposta que recebeu do representante da empresa. O espaço físico para assentamento das famílias já estava sendo construído, longe do rio, ignorando a dinâmica dos ribeirinhos – tal qual aconteceu com os ribeirinhos afetados pela hidrelétrica.
Belo Monte era a proposta de um mundo novo e desenvolvido para diversas famílias, mas, na verdade, foi o fim, assim como a Transamazônica na década de 1970 e pode ser atualmente com a Ferrogrão e o Porto da Cargill. Todas essas são propostas de promoção do desenvolvimento do país, seja para escoar grãos, tornar o agronegócio mais lucrativo, levar os benefícios do desenvolvimento em áreas não agraciadas por ele. Esse desenvolvimento, pelo menos no Brasil e em outros países do sul global, tem criado um ganho satisfatório para alguns, contudo, não vem sem custo: o ônus recai principalmente para aqueles que seriam “salvos”. O revés recai, sempre, sobre os moradores tradicionais do território. Pessoas essas que sequer são consultadas no processo que envolve a mudança dos seus próprios territórios.
Belo Monte foi vendida como a promessa de fornecer energia sustentável ao Brasil, mas desde o início já se sabia que sua produtividade seria baixa diante da sazonalidade do rio Xingu. Apesar da capacidade instalada de 11.233 MW, a geração média efetiva não passa de 4.500 MW – cerca de 40% do projetado. Em 2024, por exemplo, a usina entregou apenas 2.581 MW, míseros 23% de sua capacidade3.Uma escolha que, além de ineficiente do ponto de vista energético, mostrou-se um erro estratégico: para viabilizar a hidrelétrica, o curso do rio foi alterado, agravando a instabilidade natural de cheias e secas e comprometendo ainda mais o equilíbrio do próprio Xingu. Ou seja, Belo Monte não apenas falhou em cumprir sua promessa de geração de energia, como deixou o rio e as comunidades que dele dependem em situação ainda mais frágil.
Marcelo Camargo, geógrafo, corrobora essa afirmação. Ele afirma: “o Xingu passa seis meses em estiagem total, inviabilizando o funcionamento de uma estrutura como Belo Monte”. Além disso, a obra custou praticamente o dobro do previsto inicialmente. Ela foi orçada em R$16 bilhões, mas o custo final chegou a R$30 bilhões. Sobre essa questão, Camargo adiciona: “com as previsões de redução da capacidade de produção e os custos de operação, é impossível que Belo Monte, ao longo desses 30 anos, supere o valor do seu próprio custo”.
Em concordância com Daniela Araújo, Maria Cristina Alves da Costa, que vivia em uma comunidade que não existe mais para que Belo Monte pudesse ser construída, afirma: “O que eu sei fazer é pescar. Como vou pegar peixe no asfalto?”. Ela comprou uma casa em Altamira, com uma carta de crédito oferecida pela usina, buscando melhores condições de vida para si e para os filhos. Depois de nove meses sem qualquer tipo de renda ou alternativas, Maria optou por voltar para as margens do rio Xingu.
Vale ressaltar, ainda, que tanto a Ferrogrão quanto o Porto da Cargill são propostas para melhorar o escoamento de grãos oriundos do agronegócio, do Centro-Oeste brasileiro. Este, tal qual os grandes projetos de desenvolvimento que o cercam, anunciam-se como solução dos problemas vinculados à fome no mundo. Agora, quando a gente olha como ele de fato se estabelece no território, é possível perceber que o sistema alimentar explicita grande parte das contradições que ele se propõe a combater: ele está associado à concentração de terras e renda, exploração da mão de obra – principalmente a feminina, que recebe salários menores e está mais suscetível ao trabalho sazonal e ao assédio sexual. O agronegócio está vinculado, também, ao aumento da insegurança alimentar nos territórios em que ele é desenvolvido. Tal qual, novamente, os grandes projetos de desenvolvimento.
Esses grandes projetos são a promessa de emprego, renda e desenvolvimento. Eles representam uma maior integração ao capitalismo, mas de forma marginal: levam o pescador para morar longe do rio, o agroextrativista para morar longe da floresta. A ideia de um grande projeto de desenvolvimento funciona de forma circular: com a justificativa de regiões apresentarem PIB e IDH baixos – ou abaixo da média – eles são instalados. Geram uma integração periférica ao capitalismo e, ao não atingirem seus objetivos de trazer ‘desenvolvimento, emprego e renda’ justificam a implementação de um novo grande projeto.
Foi assim pelas chapadas do Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais, quando o desenvolvimento alcançou a região por meio da implementação massiva da monocultura do eucalipto na década de 1970, posteriormente com a Usina Hidrelétrica de Irapé em 2006 e agora com as mineradoras de lítio. Três projetos em décadas diferentes com a mesma pretensão, gerar emprego e renda.
Já na Amazônia, sede da COP 30 e objeto do olhar da conferência, vemos uma região marcada pelas veias abertas, pelos projetos alheios, pelas definições de quem acha que sabe o que é desenvolvimento (sobre os outros). Essa é a Amazônia que traz, historicamente, desenvolvimento, emprego e renda. Se tem dado certo ou não cabe a cada um e a nós, enquanto sociedade, buscarmos entender. O progresso esperado é esse em que a Amazônia vira a periferia de um país periférico, que se orgulha em ser “celeiro do mundo”? Ou é a Floresta Tropical que nos ensina como habitar esse planeta de modo a não saturar os recursos naturais? É a Amazônia, escolhida como sede do maior evento sobre sustentabilidade no mundo que vai nos ensinar? Então cabe a nós aprendermos com ela, entender que o centro do mundo é a Amazônia, e não impor a nossa visão capitalista de desenvolvimento sobre a floresta e seus habitantes.
Enquanto a Amazônia é anunciada como o centro do mundo no discurso oficial da COP30, no cotidiano político do Brasil seguem avançando projetos que caminham na direção oposta. A prova disso veio na calada da noite de 16 de julho, quando o chamado “PL da Devastação” foi aprovado. A contradição salta aos olhos: de um lado, a promessa de aprender com a floresta; de outro, a abertura de novas frentes para o agronegócio e a mineração, setores historicamente responsáveis por feridas profundas no território amazônico e no país.
O presidente Lula sancionou a lei com vetos parciais, mas o texto segue em tramitação no Congresso. Na prática, abre-se ainda mais espaço para que o agronegócio e a mineração avancem sobre territórios sensíveis, aumentando o risco de repetirmos tragédias como as de Brumadinho e Mariana. O paradoxo é evidente: em nome de um suposto “desenvolvimento sustentável”, multiplicam-se projetos de extração de lítio, cobalto, níquel e terras raras – minerais essenciais para carros elétricos e torres eólicas – enquanto a floresta e os povos que nela habitam pagam a conta dessa corrida verde.
A transição energética corre o risco de se tornar um novo colonialismo. O Brasil poderia assumir a dianteira em uma guinada realmente sustentável, mas os discursos oficiais insistem em reforçar velhas lógicas de espoliação ambiental. Sobre a exploração de petróleo na foz do Amazonas, o presidente Lula afirma: “A Petrobras é uma empresa responsável. Tem a maior experiência de exploração de petróleo em águas profundas. Vamos cumprir todos os ritos necessários para que a gente não cause estrago na natureza. Até porque é dessa riqueza que a gente vai ter dinheiro para construir a sonhada transição energética4”.
A contradição é gritante: como apostar em combustíveis fósseis – que são uma das raízes da crise climática – para financiar a transição que supostamente deveria superá-los? Essa justificativa ecoa a velha narrativa do “sacrifício necessário” em nome do progresso, mas ignora que as populações locais e os ecossistemas são os primeiros a pagar o preço. Se não questionarmos esse modelo, corremos o risco de trocar uma dependência por outra, mantendo a lógica de exploração predatória sob o verniz de “energia limpa”.
Os “ritos necessários” também foram seguidos em Mariana e em Brumadinho. A barragem da Samarco, em Mariana, era classificada como de médio impacto ambiental – tecnicamente enquadrada dentro da normalidade e autorizada pelos órgãos competentes. Ainda assim, foi justamente essa estrutura que deu origem, em 2015, ao que o Ministério Público Federal descreve como “o maior desastre ambiental do Brasil – e um dos maiores do mundo”.
Se tais desastres puderam ocorrer sob o manto da legalidade e do “cumprimento de requisitos”, o que nos garante que novos projetos, agora ainda mais ambiciosos e arriscados, não reproduzirão as mesmas tragédias? A questão central não é apenas cumprir protocolos, mas reconhecer que esses protocolos já se mostraram insuficientes diante de um modelo econômico que normaliza o risco e transfere seus custos humanos e ambientais para comunidades inteiras. Ainda mais quando iniciativas como o PL da Devastação avançam no Congresso, enfraquecendo salvaguardas socioambientais e tornando a aprovação de empreendimentos de alto impacto ainda mais simplificadas. Nesse cenário, a legalidade deixa de ser uma barreira de proteção para se tornar um atalho que facilita a reprodução da destruição.
Diante de tudo isso, fica evidente que a retórica oficial da sustentabilidade muitas vezes camufla uma continuidade do modelo predatório: protocolos e leis funcionam mais como aparências de proteção do que como barreiras reais contra a destruição. Se desastres como Mariana e Brumadinho ocorreram sob o ar da legalidade, e se agora se flexibilizam regras para o agronegócio e a mineração, a urgência deixa de ser apenas ambiental ou econômica, torna-se cultural e ética. O verdadeiro desafio não está em celebrar discursos verdes, mas em repensar nossas práticas, modos de produção e a forma como nos relacionamos com a natureza.
Talvez ainda não seja tarde para aprender com as populações que há séculos convivem de maneira equilibrada com o meio ambiente, e talvez isso custe bem menos do que insistir em modelos de desenvolvimento predatórios. Percebemos que a mudança cultural e de sistema econômico seja a única salvação para o Antropoceno. É tempo de retomada: nossas bases, sejam elas produtivas ou culturais precisam ser repensadas, e devemos observar com atenção e integrar aos debates os povos originários e as comunidades tradicionais, que praticam a sustentabilidade muito antes de o conceito sequer existir. No contexto do Brasil, país-sede da COP30, a reflexão se torna ainda mais urgente, pois a sustentabilidade, na prática, parece seguir em segundo plano diante das pressões do agronegócio, da mineração e de interesses econômicos de curto prazo.
Talvez, pensar que o desenvolvimento não seja o caminho. Como diz Nego Bispo: “vamos pegar as palavras do inimigo que estão potentes e vamos enfraquecê-las. E vamos pegar as nossas palavras que estão enfraquecidas e vamos potencializá-las. Por exemplo, se o inimigo adora dizer desenvolvimento, nós vamos dizer que o desenvolvimento desconecta, que o desenvolvimento é uma variante da cosmofobia. Vamos dizer que a cosmofobia é um vírus e botar para ferrar com a palavra desenvolvimento. Porque a palavra boa é envolvimento”.
O discurso da COP30 sobre desenvolvimento muitas vezes se ancora na promessa de conciliar crescimento econômico com sustentabilidade, mas a realidade mostra que essas estratégias pouco se traduzem em mudanças efetivas. Ao colocar o Brasil como protagonista das negociações climáticas, enfatizando energias renováveis, agricultura de baixo carbono e biocombustíveis, o evento corre o risco de transformar o país em uma vitrine de boas intenções, sem lidar com as contradições estruturais do modelo econômico que historicamente explora os biomas e águas de forma verdadeiramente insustentável.
O problema central está na própria concepção de “desenvolvimento” que orienta essas políticas: métricas como emprego, renda e crescimento econômico são usadas como indicadores absolutos, invisibilizando modos de vida sustentáveis baseados no autoconsumo, na economia circular e na convivência harmoniosa com a natureza. Projetos de mineração, grandes hidrelétricas e expansão do agronegócio seguem avançando sob a justificativa de gerar emprego, renda e progresso, enquanto comunidades locais e ecossistemas pagam o preço mais alto. Assim, as populações indígenas, quilombolas e agroextrativistas permanecem à margem, enquanto o que realmente determina decisões políticas e econômicas é o lucro imediato sobre os recursos naturais.
A transformação climática e social que o planeta precisa exigir mais do que metas de emissão e painéis de energia renovável: exige repensar os conceitos de progresso e riqueza, valorizar modos de vida sustentáveis, reconhecer os saberes ancestrais de comunidades tradicionais e integrar essas perspectivas nas decisões políticas e econômicas. Sem essa mudança de paradigma, a conferência pode, mais uma vez, acabar reforçando o mesmo sistema que provoca desastres ambientais, desigualdade e crises socioambientais, transformando o que deveria ser um ponto de virada em mais um episódio de “greenwashing” global. Até essa virada de chave, todo o brilho da COP30 corre o risco de servir apenas como fachada, enquanto a floresta, seus povos e o futuro do planeta pagam o preço da continuidade de velhos padrões de exploração.
Manifestação de guerra nos EUA
Até a semana passada, o Pentágono ainda atendia pela denominação com que fora rebatizado no mundo devastado pela Segunda Guerra Mundial: Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Naquele conflito, o planeta conhecera o poder da bomba atômica, e a corrida nuclear das superpotências recomendava adequar a agência à nova condição não binária de “guerra” ou “paz”. Algo que englobasse um conceito mais amplo de segurança e defesa nacional. Assim, em 1947, o presidente Harry Truman trocou o nome do Departamento de Guerra, que existia desde os idos da Revolução Americana, por Departamento de Defesa. Com aprovação do Congresso, como manda a lei.
— Todo mundo adora lembrar nosso histórico de vitórias incríveis quando o Pentágono tinha esse nome — explicou, com a lógica que lhe é própria. — Defesa soa muito defensivo, precisamos de mais ataque. Departamento de Guerra soa melhor.
O titular da pasta, Pete Hegseth, de apenas 45 anos e melenas televisivas, já se intitula secretário de Guerra nas plataformas sociais.
— Para nós, palavras, nomes e títulos importam. Vamos TORNAR A AMÉRICA LETAL NOVAMENTE — postou, com a originalidade de um trumpista raiz.
Em entrevista à Fox News, emissora em que se tornou personalidade midiática como comentarista, explicou:
— Queremos criar um etos de guerreiros no Pentágono (trocar burocratas de uniforme por combatentes de guerra), gente que sabe como trucidar o inimigo.
Alguém deve ter-lhe soprado o pitaco proferido pelo general George Patton em 1943, citado na revista The Atlantic, segundo o qual nenhum idiota jamais venceu uma guerra indo morrer por seu país — ele a vence fazendo outro pobre idiota morrer pelo país dele.
Por ora, ainda vigora a limitação constitucional à mudança antes de sua aprovação pelo Congresso. Mas Trump pode autorizar o uso paralelo do novo nome, assim como passou a usar a denominação “Golfo da América” (no lugar do tradicional Golfo do México) em todos os documentos de governo. Sem falar no custo de imprimir a marca de sua mais recente obsessão com nomenclaturas. A troca do nome em todas as placas, prédios, documentos, selos, brasões, medalhas, uniformes, etiquetas, publicações e instalações do Pentágono mundo afora ultrapassaria de longe os oito dígitos — em dólar. Na era Joe Biden, antecessor de Trump, a mudança de nome de apenas seis bases militares que homenageavam heróis confederados custou US$ 60 milhões, segundo levantamento do portal Axios. Dinheiro jogado fora com a posse de Pete Hegseth, que reverteu tudo ao estado original. No caso atual, a troca seria pantagruélica. O Departamento de Defesa emprega cerca de 1,3 milhão de militares ativos ou quase 3 milhões de pessoas, somando integrantes da Guarda Nacional, reservistas e civis. Dispõe de pelo menos 750 instalações militares mundo afora (120 só no Japão), e o rebranding de tudo isso retrataria a megalomania do autor da ideia.
Sem falar que Trump é autodeclarado candidato ao Nobel da Paz, honraria que combinaria pouco com a instituição de um presidente de guerra. Tampouco avançou um átimo para um cessar-fogo na Ucrânia, nem levanta um só dedo para cortar a máquina israelense de moer palestinos em Gaza.
À primeira vista, a troca de nome do departamento federal que consome mais de 12% dos gastos do governo não deverá afetar sua autoridade legal nem sua estrutura organizacional. É na retórica da mudança que reside o veneno. A intensificação do uso da Guarda Nacional como força de ordem doméstica, a caça e deportação desenfreadas de imigrantes, estudantes e estrangeiros indesejados em território americano, somadas a ataques frontais contra vozes dissonantes do próprio país, podem sugerir um futuro Departamento de Guerra dedicado, também, a combater inimigos internos. A militarização — ou “miliciarização” — dos agentes do ICE, o temido Departamento de Imigração e Alfândega, que não se identificam, nada explicam, usam máscaras no rosto e operam ao arrepio da lei (mas em nome dela), é um mau presságio.
Na juventude, Trump conseguiu dispensa médica para se evadir do serviço militar que despejou uma geração inteira no front vietnamita. Talvez por isso fantasie o que é estar numa guerra. Líderes tão imaturos são perigosos.
Dos 13 presidentes que sucederam a Truman na Casa Branca, apenas Donald Trump cismou em fazer um rebranding do mamute militar. Pretende ressuscitar a denominação Departamento de Guerra por ato executivo.
— Todo mundo adora lembrar nosso histórico de vitórias incríveis quando o Pentágono tinha esse nome — explicou, com a lógica que lhe é própria. — Defesa soa muito defensivo, precisamos de mais ataque. Departamento de Guerra soa melhor.
O titular da pasta, Pete Hegseth, de apenas 45 anos e melenas televisivas, já se intitula secretário de Guerra nas plataformas sociais.
— Para nós, palavras, nomes e títulos importam. Vamos TORNAR A AMÉRICA LETAL NOVAMENTE — postou, com a originalidade de um trumpista raiz.
Em entrevista à Fox News, emissora em que se tornou personalidade midiática como comentarista, explicou:
— Queremos criar um etos de guerreiros no Pentágono (trocar burocratas de uniforme por combatentes de guerra), gente que sabe como trucidar o inimigo.
Alguém deve ter-lhe soprado o pitaco proferido pelo general George Patton em 1943, citado na revista The Atlantic, segundo o qual nenhum idiota jamais venceu uma guerra indo morrer por seu país — ele a vence fazendo outro pobre idiota morrer pelo país dele.
Por ora, ainda vigora a limitação constitucional à mudança antes de sua aprovação pelo Congresso. Mas Trump pode autorizar o uso paralelo do novo nome, assim como passou a usar a denominação “Golfo da América” (no lugar do tradicional Golfo do México) em todos os documentos de governo. Sem falar no custo de imprimir a marca de sua mais recente obsessão com nomenclaturas. A troca do nome em todas as placas, prédios, documentos, selos, brasões, medalhas, uniformes, etiquetas, publicações e instalações do Pentágono mundo afora ultrapassaria de longe os oito dígitos — em dólar. Na era Joe Biden, antecessor de Trump, a mudança de nome de apenas seis bases militares que homenageavam heróis confederados custou US$ 60 milhões, segundo levantamento do portal Axios. Dinheiro jogado fora com a posse de Pete Hegseth, que reverteu tudo ao estado original. No caso atual, a troca seria pantagruélica. O Departamento de Defesa emprega cerca de 1,3 milhão de militares ativos ou quase 3 milhões de pessoas, somando integrantes da Guarda Nacional, reservistas e civis. Dispõe de pelo menos 750 instalações militares mundo afora (120 só no Japão), e o rebranding de tudo isso retrataria a megalomania do autor da ideia.
Sem falar que Trump é autodeclarado candidato ao Nobel da Paz, honraria que combinaria pouco com a instituição de um presidente de guerra. Tampouco avançou um átimo para um cessar-fogo na Ucrânia, nem levanta um só dedo para cortar a máquina israelense de moer palestinos em Gaza.
À primeira vista, a troca de nome do departamento federal que consome mais de 12% dos gastos do governo não deverá afetar sua autoridade legal nem sua estrutura organizacional. É na retórica da mudança que reside o veneno. A intensificação do uso da Guarda Nacional como força de ordem doméstica, a caça e deportação desenfreadas de imigrantes, estudantes e estrangeiros indesejados em território americano, somadas a ataques frontais contra vozes dissonantes do próprio país, podem sugerir um futuro Departamento de Guerra dedicado, também, a combater inimigos internos. A militarização — ou “miliciarização” — dos agentes do ICE, o temido Departamento de Imigração e Alfândega, que não se identificam, nada explicam, usam máscaras no rosto e operam ao arrepio da lei (mas em nome dela), é um mau presságio.
Na juventude, Trump conseguiu dispensa médica para se evadir do serviço militar que despejou uma geração inteira no front vietnamita. Talvez por isso fantasie o que é estar numa guerra. Líderes tão imaturos são perigosos.
O voto da barata no chinelo
Indaga um leitor: por que, na eleição de Donald Trump, a barata votou no chinelo? A pergunta resume a perplexidade de milhões com o fato de que latinos, negros, mulheres brancas (negras, não) ajudaram a instalar no poder a sua Nêmesis, entidade de vingança e ressentimento, fonte de terror e medo. E votaram cientes do paradoxo temerário, desde sempre transparente nas ameaças do autocrata-laranja.
A questão amplia-se até nós quando pesquisas recentes atestam a existência de um "bolsonarismo-raiz" de 12% no eleitorado (Instituto Ideia). Nenhuma surpresa em 26%, de não-bolsonaristas, que votam na direita. A persistência da "raiz", porém, é tão intrigante quanto os milhões simbolizados pela barata. Após exposição a céu aberto da quinta-coluna antipatriótica, o clã ex-presidencial, o réu Bolsonaro mantém-se cabo eleitoral da direita. De cada ato de traição, vexame nenhum repercute na "raiz" e seus rizomas: doença autoimune, "mente defensiva, como um condomínio fechado" (Luis Fernando Veríssimo).
No conceito de classe social e suas diferenças, nascido da racionalidade da produção, não cabe explicação razoável para a insanidade extremista emergente das máquinas de desamparo e solidão. É mais delírio de pensamento, ao modo da distorção barroca (uma perversão da forma) do que loucura como doença mental. Daí a figura do idiota, não como oligofrênico, mas sujeito de uma razão privada, distorcida.
Por mais inatual que seja a filosofia, dela partem sugestões para a iluminação do fenômeno, a saber, a idiotia como personagem conceitual (Gilles Deleuze e Félix Guattari em "O que é Filosofia?"). O idiota permitiria a inclusão na política dos indivíduos alienados da vida pública pelo elitismo de pensamento. Não exatamente o doido, portanto, mas o produto imbecilizado de uma relação difícil com o plano da existência. Na frase "a internet deu voz aos imbecis" (Umberto Eco) ressoa essa lógica. Imbecilidade, idiotia são estratégias de rejeição ao "penso, logo existo" em favor de verdades prontas e acabadas, os dogmas.
Dessa forma, uma cômoda ignorância torna-se motivo de orgulho pessoal e de ódio às ciências, artes e educação emancipadora.
Não significa que uma cultura elevada ou com grandes ideias sobre as contradições históricas tenham gerado um homem fraterno, aberto à diversidade. O nazismo contou com renomados intelectuais.
Himmler, o mentor dos campos de concentração, vangloriava-se de buscar métodos de matar que não ofendessem a tradição humanista. Sem mediação compreensiva, o sol do Iluminismo pode cegar, como hoje acontece com os sistemas de conhecimento e seus algoritmos impermeáveis às massas. O fechamento em dogmas religiosos e formas de vida regressivas funciona como autodefesa dos alienados. E grito de alerta: cristalizada em doença social, a idiotia faz o trânsito natural para as perversões facinorosas da extrema direita. Tonta de inseticida histriônico, a barata arrisca-se a atravessar o galinheiro ou vota no chinelo.
A questão amplia-se até nós quando pesquisas recentes atestam a existência de um "bolsonarismo-raiz" de 12% no eleitorado (Instituto Ideia). Nenhuma surpresa em 26%, de não-bolsonaristas, que votam na direita. A persistência da "raiz", porém, é tão intrigante quanto os milhões simbolizados pela barata. Após exposição a céu aberto da quinta-coluna antipatriótica, o clã ex-presidencial, o réu Bolsonaro mantém-se cabo eleitoral da direita. De cada ato de traição, vexame nenhum repercute na "raiz" e seus rizomas: doença autoimune, "mente defensiva, como um condomínio fechado" (Luis Fernando Veríssimo).
No conceito de classe social e suas diferenças, nascido da racionalidade da produção, não cabe explicação razoável para a insanidade extremista emergente das máquinas de desamparo e solidão. É mais delírio de pensamento, ao modo da distorção barroca (uma perversão da forma) do que loucura como doença mental. Daí a figura do idiota, não como oligofrênico, mas sujeito de uma razão privada, distorcida.
Por mais inatual que seja a filosofia, dela partem sugestões para a iluminação do fenômeno, a saber, a idiotia como personagem conceitual (Gilles Deleuze e Félix Guattari em "O que é Filosofia?"). O idiota permitiria a inclusão na política dos indivíduos alienados da vida pública pelo elitismo de pensamento. Não exatamente o doido, portanto, mas o produto imbecilizado de uma relação difícil com o plano da existência. Na frase "a internet deu voz aos imbecis" (Umberto Eco) ressoa essa lógica. Imbecilidade, idiotia são estratégias de rejeição ao "penso, logo existo" em favor de verdades prontas e acabadas, os dogmas.
Dessa forma, uma cômoda ignorância torna-se motivo de orgulho pessoal e de ódio às ciências, artes e educação emancipadora.
Não significa que uma cultura elevada ou com grandes ideias sobre as contradições históricas tenham gerado um homem fraterno, aberto à diversidade. O nazismo contou com renomados intelectuais.
Himmler, o mentor dos campos de concentração, vangloriava-se de buscar métodos de matar que não ofendessem a tradição humanista. Sem mediação compreensiva, o sol do Iluminismo pode cegar, como hoje acontece com os sistemas de conhecimento e seus algoritmos impermeáveis às massas. O fechamento em dogmas religiosos e formas de vida regressivas funciona como autodefesa dos alienados. E grito de alerta: cristalizada em doença social, a idiotia faz o trânsito natural para as perversões facinorosas da extrema direita. Tonta de inseticida histriônico, a barata arrisca-se a atravessar o galinheiro ou vota no chinelo.
'Se morrermos, que seja na casa do Senhor'
Ramez Al-Souri mora na Igreja Ortodoxa de São Porfírio, na Cidade de Gaza.
Ele perdeu 12 pessoas na família, incluindo três de seus filhos, no mesmo local, em 19 de outubro de 2023, após um ataque aéreo israelense que teve como alvo a terceira igreja mais antiga ainda em uso — atrás apenas da Igreja da Natividade, em Belém, e a Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém.
Ainda assim, o pai enlutado insiste em permanecer no local e não ser deslocado, apesar das ordens de evacuação emitidas recentemente pelo exército de Israel a todos os moradores da cidade.
"Estamos aqui, entre familiares, amigos, entes queridos. Juntos, enfrentamos todos os atos de violência a que fomos expostos desde o começo da guerra. As igrejas foram atacadas diretamente, o que provocou o martírio de muitos dos meus familiares, inclusive meus filhos", afirmou ao programa de rádio Middle East Diaries (Diários do Oriente Médio), da BBC.
"Falo com vocês apesar da minha doença, da minha dor e da perda dos meus filhos, porque as cenas de destruição sem precedentes nos bairros de Sabra e Zeitoun não são um bom presságio", afirmou.
"Certamente, todos nós, como cristãos e deslocados na igreja, tememos que ela volte a ser atacada. Mas acataremos a decisão tomada pelo Conselho Supremo da Igreja para os Cristãos em Jerusalém de não sermos removidos da Cidade de Gaza."
Al-Souri enfatizou que a igreja é quem toma as decisões corretas para os cristãos, e que todos os membros da comunidade cristã estão comprometidos com as decisões eclesiásticas mais importantes tomadas pelo Patriarcado Ortodoxo Grego e o Patriarcado Latino em Jerusalém.
Ao fim de agosto, o exército israelense ordenou a evacuação da Igreja Ortodoxa Grega de São Porfírio e de seu complexo na Cidade de Gaza, segundo o jornal The Times of Israel.
Esses acontecimentos ocorrem enquanto o exército israelense se prepara para iniciar uma evacuação em grande escala de civis na Cidade de Gaza, como preparação para uma ofensiva militar mais ampla destinada a dominar a maior cidade da Faixa.
O padre Issa Musleh, porta-voz oficial do Patriarcado Grego Ortodoxo de Jerusalém, declarou que a decisão de não se deslocar foi tomada diretamente pelo patriarca Teófilos 3, patriarca de Jerusalém, de toda a Palestina e da Jordânia, e pelo patriarca Latino de Jerusalém.
O padre Musleh destacou que o comunicado de imprensa emitido por ambos os patriarcados tem como objetivo "prevenir o deslocamento dos cristãos em particular, e dos palestinos em geral, de Gaza", para frustar o que ele chamou de "tentativas israelenses de se apoderar da terra e varrer seus habitantes".
Os patriarcados Grego Ortodoxo e Latino de Jerusalém declararam, em um comunicado conjunto publicado em 26 de agosto que "abandonar a Cidade de Gaza e tentar fugir para o sul equivaleria a uma sentença de morte para eles".
Por essa razão, os religiosos decidiram ficar e continuar cuidando de todos os que permanecerem nos dois complexos.
O padre Musleh disse, em seu discurso, que "apesar da decisão do exército de Israel de expulsar os cristãos do Mosteiro de São Porfírio e da Igreja de Santa Porchina, o clero ortodoxo, junto com as comunidades cristãs, se negou categoricamente a sair, insistindo que seu dever era cuidar do povo palestino, já que esses mosteiros e igrejas acolhem palestinos deslocados, tanto muçulmanos quanto cristãos".
O clero ortodoxo decidiu, de forma unânime, permanecer nos mosteiros e igrejas para "frustrar o plano de deslocamento e preservar o valioso patrimônio herdado de seus pais e avós".
O padre Musleh descreveu a tentativa de expulsá-los de seus locais de culto como um "crime atroz contra a humanidade" e concluiu seu discurso dizendo:
"Acompanhamos de perto a situação porque estamos realmente preocupados com a situação em Gaza, mas, por mais difíceis que sejam as circunstâncias, não os abandonaremos. É a nossa decisão final."
Já o padre Abdulla July afirmou que "os cristãos na Palestina e no Oriente Árabe, em geral, não são seitas, mas parte integral do povo árabe palestino e dos povos árabes da região".
"Partindo dessa perspectiva, nós, como pastores, devemos ajudar os cristãos a sobreviver, porque a sobrevivência e perseverança são uma forma de resistência contra o objetivo que o exército israelense pretende impor, que é se apoderar da terra sem seu povo."
O padre July alertou que, sem os árabes cristãos na região, as igrejas e os mosteiros seriam meros museus e santuários para lamentar entre as ruínas, um povo deslocado.
Elias al-Jida, deslocado da igreja e membro do Conselho de Representantes da Igreja Ortodoxa Árabe de Gaza, destacou:
"Permanecer é uma realidade. A realidade é que há centenas de deslocados neste lugar que não podem ser abandonados, além de várias crianças com deficiência que não poderão ser transferidas se a decisão de deslocamento for implementada."
Segundo Al-Jilda, a maioria das pessoas que se encontram nos templos cristãos da Cidade de Gaza são mulheres, idosos e crianças com deficiência, que foram deslocados de suas casas há cerca de dois anos e buscaram refúgio nessas igrejas após destruição de seus lares.
"A igreja decidiu que não sairíamos daqui, porque é impossível ir e abandonar as pessoas, especialmente as pessoas com deficiência e os idosos. Não é nem religioso e nem humano deixá-los sozinhos para enfrentar o desconhecido. Isso equivale a uma sentença de morte", acrescentou.
Como cristão palestino, Al-Jilda afirmou que nunca considerou ir embora, porque se deslocar ao sul significaria partir para o desconhecido e para um mundo de perdas insuportáveis.
"Nascemos na Cidade de Gaza e estamos acostumados a viver aqui. Não conhecemos outro lar que não seja a Cidade de Gaza."
"Se a morte é inevitável, que seja dentro da igreja. Não escolhemos entre a vida e a morte, mas entre a morte e a morte."
Essa firmeza cristã em Gaza não representa apenas um repúdio ao deslocamento.
É uma mensagem clara ao mundo de que a presença cristã na Terra Santa é parte integrante do tecido social palestino e, que as igrejas não são meros edifícios, mas refúgios e símbolos da humanidade.
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