terça-feira, 26 de novembro de 2024

Pensamento do Dia

 


Delírio político

Acabar com a pobreza em todas as suas formas e circunstâncias é apenas um delírio político, que erradica a miséria das ilusões nos números vermelhos de uma economia que é mais vulnerável do que os próprios pobres neste mundo.

O leão e a gazela

Daqui a pouco, chega dezembro, o mês que carrega um largo espaço para reflexão. Um tempo que nos convida a pensar sobre as nossas vidas, a partir da insensatez desses tempos turbulentos. Tempo de recauchutar o espírito. Aproveito para sugerir uma pauta temática, pinçando fatos, historinhas e um apólogo, escolhidos para iniciar uma breve leitura do cotidiano.

Há dias, um empresário foi assassinado no aeroporto de Cumbica, em São Paulo, ao voltar com a namorada de uma a viagem a Alagoas. Fuzilado com balas de fuzil, a mando, dizem, do PCC. Pretendia fazer de sua delação premiada passaporte para continuar a viver a vida na festança. Dispensou, incrível, a cobertura do programa de “proteção à testemunha”. Arriscou-se, assim, ao fuzilamento, achando que policiais contratados para proteger seus passos lhe garantiriam plena segurança. A investigação levanta suspeitas sobre seus seguranças.

O segundo episódio é o de um motoqueiro que fazia muito barulho com sua moto. Em um semáforo, em São Paulo, policiais o pararam. E o castigaram de modo inusitado. Colocaram o motoqueiro com os ouvidos na boca do escapamento da moto e baixaram o pé no acelerador. Um ronco infernal. O rapaz não conseguia tapar os ouvidos, eis que suas mãos estavam contidas pelos policiais. Punição que lembra tempos imemoriais.


Insensatez, loucura, banalização da criminalidade, frieza ou simplesmente um fragmento da brutalidade infernal desses tempos ditos de globalização? O assassinato do empresário mostra o poder informal, as forças da violência, suplantando o poder formal do Estado.

Os dois fatos têm mais significados que a simples fotografia do cenário de terror que estamos vendo. Expressam o estado ilógico, antinômico e alienado de um mundo em que os princípios da eficiência (e aí, Elon Musk?), a meta da competitividade a qualquer custo, da concorrência e aética, estão tornando as pessoas infelizes, solitárias e menos solidárias.

Domenico de Masi, sociólogo italiano, autor de O Futuro do Trabalho, pinça o apólogo do Leão e da Gazela para mostrar a que ponto chega a esquizofrenia bárbara das ruas e dos ambientes de trabalho, que se transformam em campos de guerras da modernidade.

A historinha é emblemática: “Toda manhã, na África, uma gazela desperta. Sabe que deverá correr mais depressa do que o leão para não ser devorada. Toda manhã, na África, um leão desperta. Sabe que deverá correr mais que a gazela para não morrer de fome. Quando o sol surge, não importa se você é um leão ou uma gazela: é melhor que comece a correr”.

Esse lembrete é exibido em ambientes de trabalho como profissão de fé de executivos e dirigentes empresariais. À primeira vista, parece um bom conselho para quem quer vencer na vida. Trata-se, porém, de uma exaltação à barbárie. Basta intuir que, pelo conselho, “leões humanos” (aspas nossas) são autorizados a agarrar “gazelas humanas” (aspas nossas), que, apavoradas, devem se desdobrar para realizar suas tarefas ou a se esconder para fugir das intempéries das ruas e do trabalho (ou dos ataques dos leões). É evidente o estímulo ao instinto da violência, ao cultivo dos perfis agressivos, às lutas por espaço e poder, às táticas aéticas e aos golpes traiçoeiros, tudo justificado pela necessidade da competitividade.

Nessa arena de “leões e gazelas”, a alternativa que se apresenta é única: correr ou matar. Escapar ou morrer. E é isso que se vê nos corredores da morte, nos ambientes de trabalho competitivos, no chão das fábricas, nos palácios e nas ruas. Afinal de contas, ladrões que surripiam calmamente celulares (roubam e se afastam da vítima andando calmamente pela calçada), ele mesmo um “leão faminto” (dinheiro, drogas, satisfação psicológica), é produto de um meio cada vez mais degradado. A estética de medo, subordinação e culto à tecnologia dos teatros de competição, montados nos ambientes de trabalho, soma-se à estética de banalização da violência nas ruas, cuja multiplicidade é assombrosa: as cidades têm seus serviços deteriorados, um tormento que torna a vida massacrante; a violência da miséria absoluta, que exclui milhões de pessoas, principalmente contingentes marginalizados das periferias urbanas; a violência contra o menor e pelo adolescente infrator; a violência contra mulheres (o feminicídio), muito discriminadas; a violência étnica; a violência da falta de oportunidades e assim por diante.

Eis o paradoxo da modernidade. Esse caldeirão, que deveria ser quente, pela alta temperatura das situações, está transfigurando a sociedade em um ente frio, compartimentalizado em grupos e feudos, recortado por imensos apartheids econômicos e sociais. De outro lado, a organodemocracia, a “democracia” dos departamentos criados nos ambientes hierarquizados do trabalho privado, está amortecendo o conceito da sociedade convivial, sociedade voltada para os cidadãos e não para a produção. Os burocratas não sentem o cheiro das ruas e os dirigentes empresariais só têm olhos para a produtividade, não raro procurando fórmulas para atenuar os golpes furiosos do tacape de impostos e tributos governamentais. Sob esse desenho, não há tempo, interesse ou motivação para se tratar de outras questões e das coisas do espírito.

Onde estão os valores da solidariedade, do companheirismo, da doçura nas relações do trabalho, da amizade, da comunhão, do jogo em equipe? Estão se despedindo da Humanidade. Em seu lugar, surge uma modelagem tétrica, um aparato desordeiro, um jogo maléfico, altamente competitivo, que convive com golpes, morte, assassinatos, traições, desprezo à vida. Fechando a galeria da insensatez, aparecem bandidos nas ruas usando camisetas com Cristo, Gandhi ou santos de sua veneração.

Eis o mundo alienado. Que Deus nos proteja do apocalipse. Antes que mísseis intercontinentais (esses que a Rússia começa a usar na guerra contra a Ucrânia) caiam sobre nossas cabeças.

Um golpe para o cinema

Presenciei dois golpes militares no século XX. Primeiro foi no Brasil; nove anos depois, no Chile. Traços comuns: ocupação de pontos estratégicos, deslocamento de tropas, prisões em massa. Não houve planos de assassinato do governante deposto, embora Allende tenha morrido resistindo no Palácio de La Moneda.

No século XXI, os golpes de Estado tomaram outra forma. Há uma batelada de livros descrevendo-os. Agora, a democracia é devorada por dentro. O Poder Executivo aos poucos neutraliza Congresso e Judiciário e passa a mandar sozinho. É possível ver mais ou menos isso na Hungria ou na Venezuela.

O plano de golpe revelado na semana passada pela Polícia Federal representa um brutal retrocesso. Ele começaria com a morte do ministro Alexandre de Moraes, de Lula e Geraldo Alckmin. Teria características do século XIX, assim mesmo em países muito atrasados. Isso revela que o mundo avançou, e os golpistas, criando uma situação grotesca, recuaram no tempo, não chegam aos pés de seus antecessores do século passado.


Apesar da condenação inequívoca, seria interessante conhecer mais detalhes para contar a história. Há pontos ainda obscuros. O projeto era matar e envenenar. Matar a tiros — usando fuzis, pistolas e até um lança-granadas — é uma coisa. Envenenar é outra, em termos de planejamento. Você não lança uma granada envenenada; de um modo geral, usa outros métodos. A mais avançada prática no mundo talvez seja a da Rússia. Um simples chá pode destruir o oposicionista. Tanto o polônio-210 quanto o tálio são muito usados pela polícia política de Putin. Eis a pergunta sobre o envenenamento: qual era o plano, qual sua viabilidade no tempo escolhido, o mês antes da posse?

Não tivemos acesso ao esquema completo, escrito pelo general Mário Fernandes. Foram divulgadas apenas algumas de suas mensagens. Nelas, ele repete a palavra “porra” 53 vezes. Se continuasse produzindo textos, acabaria aumentando o índice de natalidade nacional.

Também não ficou claro como seria o assassinato de Moraes. Houve um olheiro colocado perto do restaurante Gibão, especializado em carne de sol. Ele reclama de falta de táxi; parece que esqueceram que não se pegam táxis na rua em Brasília. É preciso telefonar. O agente era Gana, os outros eram Áustria, Japão, Brasil, nomes de países. Creio que se inspiraram na série “Casa de Papel”, onde se usavam nomes de cidades: Paris, Tóquio.

As armas mencionadas ainda não apareceram. Eram fuzis pistolas, lança-granadas e uma bazuca. É um arsenal considerável. Como se encaixa no planejamento? Se usassem tudo, matariam ministro, motorista, segurança e eventualmente algum adepto de carne de sol próximo ao restaurante Gibão.

À medida que as investigações avançam, creio que algumas dúvidas serão esclarecidas para que se possa montar uma história mais detalhada. Há coisas que só alguém pensando no futuro roteiro pode perguntar. Por exemplo: você envenenaria o presidente e o vice ao mesmo tempo? Caso houvesse espaço entre um e outro, não seria possível que o sobrevivente desconfiasse e tomasse precauções?

Só o general no seu labirinto poderia responder a essas perguntas. Certamente diria:

— Não me venha com detalhes, porra.

Mas o trabalho da PF continua, desvendando toda a trama, encontrando o escalão superior do golpe e criando as condições para que se conte a história de forma precisa.

A série televisiva espera Gana, Áustria, Japão, Brasil, com a mesma atenção que deu a Paris, Tóquio, Londres, na “Casa de Papel”.

O retorno dos tecnolibertários

A vitória de Donald Trump representa muitas coisas transformadoras do mundo. Uma é o casamento entre o determinismo tecnológico e o libertarianismo. No mundo deste novo governo, a linha que separa Milton Friedman dos bilionários da tecnologia como Elon Musk, Peter Thiel, Marc Andreessen e Mark Zuckerberg fica difusa e se confunde em uma filosofia cujo objetivo é acabar com todas as restrições aos mercados.

A turma de “voluntários” tecnolibertários de Trump - como Musk disse de maneira um tanto insincera, dado que Tesla e SpaceX recebem mais financiamento federal do que a NPR - acredita que deveria ser deixada livre para desmontar o aparato estatal em nome da eficiência e do lucro. O lucro já foi alcançado, pelo menos para o pessoal do Vale do Silício: inteligência artificial, criptomoedas e qualquer empresa vinculada a Musk viram o valor decolar desde a eleição.


Os EUA, contudo, não são o único lugar onde os “senhores digitais” exercem influência excessiva. Na semana passada, Musk anunciou que parlamentares britânicos “serão convocados aos Estados Unidos para explicar a censura por parte deles e as ameaças a cidadãos americanos”. Isso ocorreu após Chi Onwurah, deputada trabalhista e presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia do Parlamento britânico, sugerir que Musk deveria depor sobre a disseminação de desinformação antes dos tumultos no Reino Unido em agosto.

Por sorte, alguém teve coragem de enfrentar as gigantes tecnológicas. Por sua vez, Peter Kyle, secretário britânico de Ciência e Tecnologia, cometeu um deslize ao dizer que países como o Reino Unido deveriam interagir com as empresas internacionais de tecnologia mais poderosas como se fossem Estados-nação. Os governos deveriam mostrar um “senso de humildade” e valer-se de “diplomacia” ao lidar com empresas como Google, Microsoft e Meta, segundo Kyle.

Se aprendemos algo desde meados da década de 1990, é que ser cauteloso e humilde não é a maneira de lidar com as big techs, que jogam conforme suas próprias regras e em benefício próprio. Enquanto Trump monta seu novo governo, os ganhos já são espetaculares. Observe enquanto a Palantir assume o complexo militar-industrial, os bitcoins alcançam novos recordes, a X favorece republicanos em detrimento de democratas e a riqueza da classe tecnolibertária dispara. Como Andreessen disse recentemente em um podcast: a vitória de Trump parece “tirar uma bota que pisava a garganta”. “A cada manhã, acordo mais feliz do que no dia anterior”.

O sonho de um mundo impulsionado pela tecnologia, livre de todas as restrições governamentais, existe pelo menos desde o surgimento da internet. A desregulamentação da era Reagan ajudou, mas também a abordagem laissez-faire para o desenvolvimento da internet de consumo nos anos 1990, no governo Bill Clinton. Ele promulgou a agora infame “seção 230”, que isenta empresas de tecnologia de responsabilidade pelo conteúdo em suas plataformas.

Jonathan Taplin escreveu o livro premonitório de 2023 “The End of Reality: How Four Billionaires Are Selling a Fantasy Future of the Metaverse, Mars, and Crypto” (O fim da realidade: como quatro bilionários estão vendendo um futuro fantasioso de metaverso, Marte e criptomoedas, em inglês), sobre Musk, Thiel, Andreessen e Zuckerberg. Ele traça uma linha direta entre a era Clinton/Gore, Musk e os comentários de Kyle.

“Acredito que os oligarcas da tecnologia já estão no comando”, diz. “Afinal, são essas entidades que constroem a infraestrutura de computação em nuvem e a IA para Estados-nação, os cabos submarinos que sustentam o comércio e a comunicação digitais, os drones militares e a tecnologia de satélites cruciais para a defesa, e agora, os novos sistemas de moeda internacional que podem muito bem ser o cerne da próxima crise financeira”.

No entanto, a captura cognitiva das autoridades e governos pelas gigantes tecnológicas é apenas parte do problema. Nos últimos anos, o tecnolibertarianismo se somou à proliferação de domínios extraterritoriais - portos livres, zonas econômicas especiais, paraísos fiscais, cidades de administração privada - nos quais os colossos digitais e seus seguidores escapam dos limites da democracia. Livros recentes, como “Crack-Up Capitalism” (algo como “capitalismo acidentado”), de Quinn Slobodian, e “The Hidden Globe” (o globo oculto), de Atossa Araxia Abrahamian, descrevem como esses locais canalizam riqueza de países ricos para os pobres, sem o incômodo de impostos ou normas e regulamentações locais.

Grande parte do dinheiro e das pessoas nesses lugares vem do Vale do Silício. Veja o caso de Próspera, uma cidade privada em Honduras financiada em parte por fundos que contam com apoio de Andreessen, Thiel e Sam Altman. Lá, as empresas podem criar as próprias regulamentações, empreendedores podem conduzir ensaios clínicos malucos sem precisar seguir os padrões da Agência de Remédios e Alimentos (FDA, na sigla em inglês), e cidadãos são protegidos por uma firma privada de seguranças armados. Seu objetivo é claro: “construir o futuro da governança humana: de administração privada e com fins lucrativos”.

Esse pode muito bem também ser o mantra do governo Trump. No entanto, os investidores devem lembrar que o tecnolibertarianismo em geral chega a picos para depois cair. Em 2006, Richard Haass, ex-oficial do Departamento de Estado de George W. Bush, escreveu sobre a elevação das empresas ao status de quase Estados-nação. Empresas como Microsoft e Goldman Sachs, argumentava ele, tinham um papel a desempenhar em “deliberações regionais e globais”, uma vez que o “quase poder monopolista” dos Estados estava enfraquecido.

A crise financeira mundial de 2008 tornou essa ideia tanto ultrapassada quanto politicamente tóxica, ao menos por algum tempo. Agora, estamos prestes a testemunhar como o poder monopolista privado disfarçado de governo se manifesta. Eu me pergunto por quanto tempo o sonho - ou pesadelo - durará antes que o mundo volte a acordar?

 Rana Foroohar, editora especial do Financial Times