A turma de “voluntários” tecnolibertários de Trump - como Musk disse de maneira um tanto insincera, dado que Tesla e SpaceX recebem mais financiamento federal do que a NPR - acredita que deveria ser deixada livre para desmontar o aparato estatal em nome da eficiência e do lucro. O lucro já foi alcançado, pelo menos para o pessoal do Vale do Silício: inteligência artificial, criptomoedas e qualquer empresa vinculada a Musk viram o valor decolar desde a eleição.
Os EUA, contudo, não são o único lugar onde os “senhores digitais” exercem influência excessiva. Na semana passada, Musk anunciou que parlamentares britânicos “serão convocados aos Estados Unidos para explicar a censura por parte deles e as ameaças a cidadãos americanos”. Isso ocorreu após Chi Onwurah, deputada trabalhista e presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia do Parlamento britânico, sugerir que Musk deveria depor sobre a disseminação de desinformação antes dos tumultos no Reino Unido em agosto.
Por sorte, alguém teve coragem de enfrentar as gigantes tecnológicas. Por sua vez, Peter Kyle, secretário britânico de Ciência e Tecnologia, cometeu um deslize ao dizer que países como o Reino Unido deveriam interagir com as empresas internacionais de tecnologia mais poderosas como se fossem Estados-nação. Os governos deveriam mostrar um “senso de humildade” e valer-se de “diplomacia” ao lidar com empresas como Google, Microsoft e Meta, segundo Kyle.
Se aprendemos algo desde meados da década de 1990, é que ser cauteloso e humilde não é a maneira de lidar com as big techs, que jogam conforme suas próprias regras e em benefício próprio. Enquanto Trump monta seu novo governo, os ganhos já são espetaculares. Observe enquanto a Palantir assume o complexo militar-industrial, os bitcoins alcançam novos recordes, a X favorece republicanos em detrimento de democratas e a riqueza da classe tecnolibertária dispara. Como Andreessen disse recentemente em um podcast: a vitória de Trump parece “tirar uma bota que pisava a garganta”. “A cada manhã, acordo mais feliz do que no dia anterior”.
O sonho de um mundo impulsionado pela tecnologia, livre de todas as restrições governamentais, existe pelo menos desde o surgimento da internet. A desregulamentação da era Reagan ajudou, mas também a abordagem laissez-faire para o desenvolvimento da internet de consumo nos anos 1990, no governo Bill Clinton. Ele promulgou a agora infame “seção 230”, que isenta empresas de tecnologia de responsabilidade pelo conteúdo em suas plataformas.
Jonathan Taplin escreveu o livro premonitório de 2023 “The End of Reality: How Four Billionaires Are Selling a Fantasy Future of the Metaverse, Mars, and Crypto” (O fim da realidade: como quatro bilionários estão vendendo um futuro fantasioso de metaverso, Marte e criptomoedas, em inglês), sobre Musk, Thiel, Andreessen e Zuckerberg. Ele traça uma linha direta entre a era Clinton/Gore, Musk e os comentários de Kyle.
“Acredito que os oligarcas da tecnologia já estão no comando”, diz. “Afinal, são essas entidades que constroem a infraestrutura de computação em nuvem e a IA para Estados-nação, os cabos submarinos que sustentam o comércio e a comunicação digitais, os drones militares e a tecnologia de satélites cruciais para a defesa, e agora, os novos sistemas de moeda internacional que podem muito bem ser o cerne da próxima crise financeira”.
No entanto, a captura cognitiva das autoridades e governos pelas gigantes tecnológicas é apenas parte do problema. Nos últimos anos, o tecnolibertarianismo se somou à proliferação de domínios extraterritoriais - portos livres, zonas econômicas especiais, paraísos fiscais, cidades de administração privada - nos quais os colossos digitais e seus seguidores escapam dos limites da democracia. Livros recentes, como “Crack-Up Capitalism” (algo como “capitalismo acidentado”), de Quinn Slobodian, e “The Hidden Globe” (o globo oculto), de Atossa Araxia Abrahamian, descrevem como esses locais canalizam riqueza de países ricos para os pobres, sem o incômodo de impostos ou normas e regulamentações locais.
Grande parte do dinheiro e das pessoas nesses lugares vem do Vale do Silício. Veja o caso de Próspera, uma cidade privada em Honduras financiada em parte por fundos que contam com apoio de Andreessen, Thiel e Sam Altman. Lá, as empresas podem criar as próprias regulamentações, empreendedores podem conduzir ensaios clínicos malucos sem precisar seguir os padrões da Agência de Remédios e Alimentos (FDA, na sigla em inglês), e cidadãos são protegidos por uma firma privada de seguranças armados. Seu objetivo é claro: “construir o futuro da governança humana: de administração privada e com fins lucrativos”.
Esse pode muito bem também ser o mantra do governo Trump. No entanto, os investidores devem lembrar que o tecnolibertarianismo em geral chega a picos para depois cair. Em 2006, Richard Haass, ex-oficial do Departamento de Estado de George W. Bush, escreveu sobre a elevação das empresas ao status de quase Estados-nação. Empresas como Microsoft e Goldman Sachs, argumentava ele, tinham um papel a desempenhar em “deliberações regionais e globais”, uma vez que o “quase poder monopolista” dos Estados estava enfraquecido.
A crise financeira mundial de 2008 tornou essa ideia tanto ultrapassada quanto politicamente tóxica, ao menos por algum tempo. Agora, estamos prestes a testemunhar como o poder monopolista privado disfarçado de governo se manifesta. Eu me pergunto por quanto tempo o sonho - ou pesadelo - durará antes que o mundo volte a acordar?
Rana Foroohar, editora especial do Financial Times
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