sábado, 4 de junho de 2016
Sem prazo de validade
Antes de mais nada, as delinquências do governo petista foram concebidas e praticadas no curso de sua gestão. No atual, o que há são os reflexos dessa parceria de 13 anos e meio, entre PT e PMDB. Não se registra nenhuma infração cometida após a posse.
O que pesa sobre Romero Jucá, por exemplo, não se refere a atos que tenha praticado como ministro de Temer. Idem o ex-ministro da Transparência, Fabiano Silveira. As gravações de Sérgio Machado, que ainda podem levar a novas degolas, precedem o impeachment. E há as delações de Nestor Cerveró e Odebrecht, que, mesmo atingindo mais o PT, contemplam também seus parceiros.
Temer, além de encontrar um país arruinado, é obrigado a servir-se do material humano disponível. As lideranças mais influentes no Congresso são figuras carimbadas, que não inspiram confiança. Mesmo assim, têm votos, sem os quais nada é possível fazer, a começar pelas mudanças na economia.
Numa conjuntura em que o presidente (suspenso) da Câmara, Eduardo Cunha, em que pese o seu obeso prontuário, ainda detém votos suficientes para sabotar iniciativas do governo, é possível visualizar as dimensões do desafio com que Temer se defronta.
Ei-lo, em síntese: sanear o país com parte dos que o poluíram. Nem todos os corruptos eram do PT, embora ali estivesse a chefia da quadrilha. Mas a parceria era pluripartidária, sem preconceitos ideológicos, incorporando eventualmente oposicionistas.
Vigeu o ecumenismo bandido, a coalizão pelo avesso. Alguns sobreviveram e aderiram à nova ordem, assumindo o tom moralista dos indignados. Política é também – e, às vezes, sobretudo - teatro.
Há grandes canastrões no Congresso, capazes de encenar os mais ecléticos scripts, sem que a maior parte da plateia os perceba.
Mas o radar da Lava Jato vem, aos poucos, detectando-os. Paradoxalmente, porém, o que é uma solução, do ponto de vista da moral pública, tornou-se um problema político.
A presença desses personagens – uns ocultos, outros nem tanto – mantém o ambiente tenso e impede que o mercado sinta que se está entrando numa fase de estabilidade, propícia aos negócios. No espaço de uma semana, dois ministros foram demitidos, não pelo que estavam fazendo, mas pelo que fizeram.
Quantos mais haverá? Eis uma pergunta que só a Força Tarefa pode responder, mas o fará gradualmente, pela própria natureza do ofício, que exige sigilo, cautela e respaldo judicial.
Como se sabe que o grau de comprometimento da classe política é bem mais amplo que o já exposto – e esta semana novas delações o demonstraram -, o governo pisa em ovos.
Além do dado concreto de uma economia em queda livre, com 11 milhões de desempregados – e, pior, sem perspectivas de se reempregar -, lida com um cenário marcado por suspeições, que não poupam o próprio presidente da República.
Mesmo dele, o que se diz é que “até aqui” nada lhe pesa contra – “mas não se sabe; afinal, foi o Lula quem o fez vice da Dilma, por duas vezes”. É verdade, mas, mesmo que isso não implique culpa prévia, confere conteúdo verossímil às especulações.
E é delas que se nutrem os defensores da ordem deposta, os que não conseguiram livrar-se do flagrante delito. Querem voltar, mas, mesmo com escassas chances e expectativas de consegui-lo, satisfazem-se em vingar-se dos antigos parceiros.
Governar sob a tutela de uma operação policial, cujo público-alvo é a classe política – tanto os que deixaram o poder como os que acabam de chegar -, retira do governante sua ferramenta básica: a firmeza nas decisões, que permite enfrentar pressões corporativas.
Isso explica o recuo no caso da fusão do Ministério da Cultura com o da Educação e a concessão à pauta-bomba do Congresso, que aumentou salários de servidores em plena fase de depressão econômica. Temer tem evitado confronto com grupos organizados, que se auto-intitulam “movimentos sociais”, cujo comando está no partido deposto.
O receio está no fato de que é refém não apenas da Lava Jato, mas também dos que com ela estão implicados, muitos dos quais figuram entre seus aliados. Em tal contexto, a pergunta é: qual o prazo de validade de seu governo?
Últimas delações dão ao impeachment aparência de guerra entre facções
O conteúdo das últimas delações premiadas da Lava Jato —além das cenas da já conhecida promiscuidade nas altas esferas da política entre os que lutam para se firmar no poder e os que brigam para retornar— revela um cenário típico de guerra entre facções criminosas pelo controle dos negócios do poder.
Sérgio Machado, o delator do PMDB, disse ter repassado R$ 70 milhões roubados da Transpetro para Renan Calheiros (R$ 30 milhões), Romero Jucá (R$ 20 milhões) e José Sarney (R$ 20 milhões) —uma troica de cardeiais que Michel Temer afaga, para evitar surpresas desagradáveis no Senado.
Marcelo Odebrecht, o delator dos delatores, avisou que seu alvo mais reluzente será Dilma. Ele conta que as arcas da reeleição de madame foram abastecidas com dinheiro de propina. Algo que, aliás, a forca-tarefa da Lava Jato já havia farejado ao rastrear o envio de R$ 3 milhões da construtora Odebrecht para uma conta aberta na Suíça por João Santana, além do repasse de R$ 22 milhões em dinheiro vivo.
A batalha do impeachment se desenrola contra um fundo de progressivo descrédito da sociedade saqueada e submetida a uma combinação de recessão, inflação e desemprego. Há em cena dois Brasis. O país oficial faz pose de limpinho ao lado dos seus respectivos lixões, enquanto briga pelo controle dos pontos de saque. O país real luta para sobreviver à escassez e ao desemprego.
Marcelo Odebrecht, o delator dos delatores, avisou que seu alvo mais reluzente será Dilma. Ele conta que as arcas da reeleição de madame foram abastecidas com dinheiro de propina. Algo que, aliás, a forca-tarefa da Lava Jato já havia farejado ao rastrear o envio de R$ 3 milhões da construtora Odebrecht para uma conta aberta na Suíça por João Santana, além do repasse de R$ 22 milhões em dinheiro vivo.
A batalha do impeachment se desenrola contra um fundo de progressivo descrédito da sociedade saqueada e submetida a uma combinação de recessão, inflação e desemprego. Há em cena dois Brasis. O país oficial faz pose de limpinho ao lado dos seus respectivos lixões, enquanto briga pelo controle dos pontos de saque. O país real luta para sobreviver à escassez e ao desemprego.
Mais um julgamento para Sócrates
Em 399 da era antes de Cristo, Sócrates foi julgado por um grupo de 501 cidadãos, escolhidos por sorteio. Cabia ao próprio acusado defender-se.
O libelo contra o velho Sócrates era vago. Em suma, acusavam-no de corromper a juventude. Sócrates não era um pensador inofensivo. Ele possuía a coragem de dizer o que pensava.
Havia pouco, os atenienses “descobriram” a democracia. Tanto assim que batizaram a nova ideia, segundo a qual as pessoas deveriam manifestar as suas opiniões, a fim de que a sociedade caminhasse de acordo com a vontade da maioria de seus membros. Tratava-se de um conceito revolucionário. Não havia democracia no mundo antigo. Mandava o rei, o soberano, o sacerdote.
A democracia, contudo, trazia profundos desafios. O julgamento de Sócrates se relacionou precisamente a esse tema.
Sócrates não oferecia respostas. Seu famoso estilo consistia em questionar. Ele apresentava uma série de questões ao interlocutor e, a partir daí, chegava a novas conclusões. Muito popular entre os jovens, o filósofo incitava um importante questionamento: haveria, de verdade, democracia? Atenas era uma democracia ou os políticos (outra palavra de origem grega) tratavam o povo como um rebanho?
Segundo Sócrates, os humanos eram dotados de qualidades distintas e alguns gozavam da aptidão para liderar. Outros, não. Para Sócrates, o comando deveria ser entregue apenas aos competentes, assim como a filosofia ficaria ao encargo dos filósofos e os sapatos, aos sapateiros. Esse discurso era corrosivo. Tanto naquela época, quanto hoje.
Pode-se, ainda, dizer que o filósofo questionava a possibilidade de o povo, que ele metaforicamente chamava de gado, ser conduzido por políticos demagogos (mais um termo grego). A democracia, assim, poderia ser perigosa, pois um político hábil levaria a massa para onde quisesse.
Outra forma de ver a crítica de Sócrates era compreendê-la como um importante alerta: para votar, deve haver educação. A capacidade para se manifestar deve ser desenvolvida e aprimorada. O homem necessita de instrução, deve ser municiado de informação para que nele floresça um senso crítico. Sem discernimento, o povo torna-se um alvo fácil para a manipulação.
Mesmo sem uma acusação clara, Sócrates foi condenado à morte.
Antes de beber a amarga cicuta, cercado de seus discípulos, foi dado a Sócrates a opção de fugir da cidade — e, por consequência, escapar daquela condenação que a todos parecia injusta. O filósofo optou por respeitar o Estado e as suas ordens.
A democracia grega morreu pouco depois de Sócrates. Atenas foi dominada pela vizinha Esparta, onde jamais floresceu a democracia, e, depois, pelos macedônios. O governo do povo, ao menos formalmente, apenas voltou a existir com a Revolução Americana de 1776. Até hoje, a democracia não é uma conquista estabelecida na civilização.
Os recentes acontecimentos políticos que paralisam o Brasil reclamam um novo julgamento para Sócrates.
Se o filósofo estivesse aqui, certamente indagaria: existe democracia sem educação? É justo usar de escudo 50 milhões de votos contra qualquer acusação? O Congresso Nacional não foi eleito também pelo povo? Por que o povo ontem votou de uma forma, mas no dia seguinte vai às ruas reclamar de seu próprio voto? As campanhas para um cargo público visam a difundir ideias ou simplesmente a arrebanhar?
O futuro da democracia encontra-se intimamente ligado à educação. Sem um povo instruído, consciente da responsabilidade de seu voto, a democracia é uma farsa.
Há, ainda, outro ensinamento evidente: ainda que os derrotados, quem quer que sejam eles, sintam-se injustiçados, cabe a eles beber a cicuta.
José Roberto de Castro Neves
O libelo contra o velho Sócrates era vago. Em suma, acusavam-no de corromper a juventude. Sócrates não era um pensador inofensivo. Ele possuía a coragem de dizer o que pensava.
Havia pouco, os atenienses “descobriram” a democracia. Tanto assim que batizaram a nova ideia, segundo a qual as pessoas deveriam manifestar as suas opiniões, a fim de que a sociedade caminhasse de acordo com a vontade da maioria de seus membros. Tratava-se de um conceito revolucionário. Não havia democracia no mundo antigo. Mandava o rei, o soberano, o sacerdote.
A democracia, contudo, trazia profundos desafios. O julgamento de Sócrates se relacionou precisamente a esse tema.
Sócrates não oferecia respostas. Seu famoso estilo consistia em questionar. Ele apresentava uma série de questões ao interlocutor e, a partir daí, chegava a novas conclusões. Muito popular entre os jovens, o filósofo incitava um importante questionamento: haveria, de verdade, democracia? Atenas era uma democracia ou os políticos (outra palavra de origem grega) tratavam o povo como um rebanho?
Segundo Sócrates, os humanos eram dotados de qualidades distintas e alguns gozavam da aptidão para liderar. Outros, não. Para Sócrates, o comando deveria ser entregue apenas aos competentes, assim como a filosofia ficaria ao encargo dos filósofos e os sapatos, aos sapateiros. Esse discurso era corrosivo. Tanto naquela época, quanto hoje.
Outra forma de ver a crítica de Sócrates era compreendê-la como um importante alerta: para votar, deve haver educação. A capacidade para se manifestar deve ser desenvolvida e aprimorada. O homem necessita de instrução, deve ser municiado de informação para que nele floresça um senso crítico. Sem discernimento, o povo torna-se um alvo fácil para a manipulação.
Mesmo sem uma acusação clara, Sócrates foi condenado à morte.
Antes de beber a amarga cicuta, cercado de seus discípulos, foi dado a Sócrates a opção de fugir da cidade — e, por consequência, escapar daquela condenação que a todos parecia injusta. O filósofo optou por respeitar o Estado e as suas ordens.
A democracia grega morreu pouco depois de Sócrates. Atenas foi dominada pela vizinha Esparta, onde jamais floresceu a democracia, e, depois, pelos macedônios. O governo do povo, ao menos formalmente, apenas voltou a existir com a Revolução Americana de 1776. Até hoje, a democracia não é uma conquista estabelecida na civilização.
Os recentes acontecimentos políticos que paralisam o Brasil reclamam um novo julgamento para Sócrates.
Se o filósofo estivesse aqui, certamente indagaria: existe democracia sem educação? É justo usar de escudo 50 milhões de votos contra qualquer acusação? O Congresso Nacional não foi eleito também pelo povo? Por que o povo ontem votou de uma forma, mas no dia seguinte vai às ruas reclamar de seu próprio voto? As campanhas para um cargo público visam a difundir ideias ou simplesmente a arrebanhar?
O futuro da democracia encontra-se intimamente ligado à educação. Sem um povo instruído, consciente da responsabilidade de seu voto, a democracia é uma farsa.
Há, ainda, outro ensinamento evidente: ainda que os derrotados, quem quer que sejam eles, sintam-se injustiçados, cabe a eles beber a cicuta.
José Roberto de Castro Neves
O pretenso direito de mentir ao povo que derrubou presidentes
A senhora presidente faria muito melhor se mantivesse indispensável recato e discrição. É que o afastamento a obriga a guardar distância dos acontecimentos, até que terminem os procedimentos jurídicos previstos e seja lavrada a decisão sobre os atos praticados no exercício da Presidência infratores da responsabilidade fiscal.
Os fatos que vieram à luz, nos quais se fundou a Câmara dos Deputados para proclamar a existência de crimes suscetíveis de declaração do impeachment (“indictment”), guardam um conjunto de evidências difíceis de elidir. Entretanto, ruidoso tem sido o comportamento da presidente afastada, que tem falado pelos cotovelos, sem perder oportunidade para despejar ódio pela situação que autoritariamente criou; o respeito pela curul presidencial que o povo lhe delegou tem sido quebrado, como se estivesse agraciada com um “bill of indeminity” e uma espécie de monarquia que ignora limitações, cuja essência democrática desconhece, voltando-se apenas para sua aparência formal.
Daí, talvez, o sentido das normas reguladoras da monarquia parlamentar no Reino Unido não lhe esteja presente, assim como a evolução do próprio regime monárquico e parlamentar britânico e sua lenta e decidida evolução no tempo, a ponto de instituir bravamente, em seu território, uma dos mais sólidas democracias do mundo.
Quiçá a presidente Dilma tenha se inspirado nele, sendo, ela mesma, a soberana no Estado brasileiro. Contudo, ignorante da jornada política britânica, concluiu S. Exª. que igual benemerência lhe veio pelo voto popular, do qual extraiu não as lições dos ingleses e seus avanços históricos, mas, talvez, a crença no direito divino de governar sem limitações morais e jurídicas, mercê do poder de sua vontade.
Foi, dir-se-ia, apenas ligeira a confusão com o reinado de Elizabeth I, no longínquo século XVI. Eis o pretenso direito de mentir ao povo. Aliás, para deitar falação, nossa “rainha” acabou se tornando mestra à altura de seu protetor e preceptor, talvez um pouco abaixo, nada além de um bemol.
Nossa frustrada mandatária me lembra algo do ex-presidente Nixon, um mentiroso pego, afinal, pela pertinácia de dois jornalistas, em sua participação no episódio Watergate. A mentira e o gosto pelas palavras abundantes e malformadas foram o instrumento principal de sua defesa e sua queda. O povo norte-americano, por participar dos benefícios da democracia, não tolera a mentira, seja lá qual for o motivo de seu uso. Se algumas vezes o mentir foi do ex-presidente fator de glória, em compensação foi também o de sua queda. Falou demais e mentiu o tempo todo, ignorando a advertência de Lincoln. Quando tudo perpassou o véu da mentira, sobreveio-lhe a caída inevitável; e, quando o sucessor Gerald Ford lhe concedeu o perdão presidencial, já não adiantava nada: tudo se consumara, e as trevas o cobriram definitivamente.
Demais, um artigo de autoria de Gustavo Franco, em “O Globo” de domingo último, trouxe-me à boca amargo gosto: “E também para que se tenha claro que foi Dilma Rousseff quem transformou um resultado positivo médio da ordem de R$ 190 bilhões – 3% do PIB – em um negativo de R$ 170 bilhões” . Tudo somado, conclui, “a deterioração fiscal, em valores também fiscais, sobe para R$ 360 bilhões, se quisermos o país de volta na situação em que estava no período de 1998 a 2007”.
Qual a sentença a ser lavrada? Apenas esta: “Considerado o comportamento da senhora presidente da República, esta Corte de julgamento declara o impeachment da ré”.
Simples e definitivo.
Os fatos que vieram à luz, nos quais se fundou a Câmara dos Deputados para proclamar a existência de crimes suscetíveis de declaração do impeachment (“indictment”), guardam um conjunto de evidências difíceis de elidir. Entretanto, ruidoso tem sido o comportamento da presidente afastada, que tem falado pelos cotovelos, sem perder oportunidade para despejar ódio pela situação que autoritariamente criou; o respeito pela curul presidencial que o povo lhe delegou tem sido quebrado, como se estivesse agraciada com um “bill of indeminity” e uma espécie de monarquia que ignora limitações, cuja essência democrática desconhece, voltando-se apenas para sua aparência formal.
Quiçá a presidente Dilma tenha se inspirado nele, sendo, ela mesma, a soberana no Estado brasileiro. Contudo, ignorante da jornada política britânica, concluiu S. Exª. que igual benemerência lhe veio pelo voto popular, do qual extraiu não as lições dos ingleses e seus avanços históricos, mas, talvez, a crença no direito divino de governar sem limitações morais e jurídicas, mercê do poder de sua vontade.
Foi, dir-se-ia, apenas ligeira a confusão com o reinado de Elizabeth I, no longínquo século XVI. Eis o pretenso direito de mentir ao povo. Aliás, para deitar falação, nossa “rainha” acabou se tornando mestra à altura de seu protetor e preceptor, talvez um pouco abaixo, nada além de um bemol.
Nossa frustrada mandatária me lembra algo do ex-presidente Nixon, um mentiroso pego, afinal, pela pertinácia de dois jornalistas, em sua participação no episódio Watergate. A mentira e o gosto pelas palavras abundantes e malformadas foram o instrumento principal de sua defesa e sua queda. O povo norte-americano, por participar dos benefícios da democracia, não tolera a mentira, seja lá qual for o motivo de seu uso. Se algumas vezes o mentir foi do ex-presidente fator de glória, em compensação foi também o de sua queda. Falou demais e mentiu o tempo todo, ignorando a advertência de Lincoln. Quando tudo perpassou o véu da mentira, sobreveio-lhe a caída inevitável; e, quando o sucessor Gerald Ford lhe concedeu o perdão presidencial, já não adiantava nada: tudo se consumara, e as trevas o cobriram definitivamente.
Demais, um artigo de autoria de Gustavo Franco, em “O Globo” de domingo último, trouxe-me à boca amargo gosto: “E também para que se tenha claro que foi Dilma Rousseff quem transformou um resultado positivo médio da ordem de R$ 190 bilhões – 3% do PIB – em um negativo de R$ 170 bilhões” . Tudo somado, conclui, “a deterioração fiscal, em valores também fiscais, sobe para R$ 360 bilhões, se quisermos o país de volta na situação em que estava no período de 1998 a 2007”.
Qual a sentença a ser lavrada? Apenas esta: “Considerado o comportamento da senhora presidente da República, esta Corte de julgamento declara o impeachment da ré”.
Simples e definitivo.
Uma em cada sete crianças alemãs depende de auxílio do governo
Dados divulgados pela Agência Federal de Trabalho da Alemanha nesta semana revelam que, em 2015, uma em cada sete crianças alemãs era dependente do sistema de benefícios para desempregados, popularmente conhecido como "Hartz IV". Os números apontam um aumento de mais de 30 mil crianças dependentes do auxílio do governo em relação ao ano anterior.
Nas cidades-estado de Bremen e Berlim, até o final do ano passado, quase uma em cada três crianças com menos de 15 anos (31,5%) dependia do Hartz IV. No estado da Saxônia-Anhalt, a porcentagem era de 21,8%, e em Hamburgo, 20,4%. A Baviera apresenta o menor número de crianças dependentes do auxilio do governo, com apenas 6,5%.
Os dados, que resultam de uma análise encomendada pela deputada Sabine Zimmermann, do Partido A Esquerda, também evidenciam discrepâncias entre as duas metades do país. No leste da Alemanha, 23,3% dos jovens com menos de 15 anos dependem do "Hartz IV", enquanto no oeste, esse número cai para 13%.
Zimmermann ressaltou que o problema fundamental apontado pela pesquisa não é a pobreza das crianças, mas de seus pais. "O grande número de crianças que dependem do Hartz IV reflete as tensões que ainda permanecem no mercado de trabalho em muitas regiões, que ainda sofrem com poucos empregos e baixos salários".
O Hartz IV foi introduzido em 2004 em substituição ao sistema anterior para os desempregados de longo prazo, que levava em conta o histórico individual de trabalho. O sistema atual estabelece o pagamento mensal de um valor fixo por adulto (atualmente 404 euros), com adicional por filhos.
O sistema é alvo de críticas e elogios, quase na mesma medida. Alguns o exaltam por reduzir o desemprego e impulsionar a economia do país, enquanto outros o recriminam por ser rígido demais e perpetuar a pobreza.
O partido A Esquerda declarou anteriormente que abolir o Hartz IV é um de seus principais objetivos políticos.
Nas cidades-estado de Bremen e Berlim, até o final do ano passado, quase uma em cada três crianças com menos de 15 anos (31,5%) dependia do Hartz IV. No estado da Saxônia-Anhalt, a porcentagem era de 21,8%, e em Hamburgo, 20,4%. A Baviera apresenta o menor número de crianças dependentes do auxilio do governo, com apenas 6,5%.
Os dados, que resultam de uma análise encomendada pela deputada Sabine Zimmermann, do Partido A Esquerda, também evidenciam discrepâncias entre as duas metades do país. No leste da Alemanha, 23,3% dos jovens com menos de 15 anos dependem do "Hartz IV", enquanto no oeste, esse número cai para 13%.
Zimmermann ressaltou que o problema fundamental apontado pela pesquisa não é a pobreza das crianças, mas de seus pais. "O grande número de crianças que dependem do Hartz IV reflete as tensões que ainda permanecem no mercado de trabalho em muitas regiões, que ainda sofrem com poucos empregos e baixos salários".
O Hartz IV foi introduzido em 2004 em substituição ao sistema anterior para os desempregados de longo prazo, que levava em conta o histórico individual de trabalho. O sistema atual estabelece o pagamento mensal de um valor fixo por adulto (atualmente 404 euros), com adicional por filhos.
O sistema é alvo de críticas e elogios, quase na mesma medida. Alguns o exaltam por reduzir o desemprego e impulsionar a economia do país, enquanto outros o recriminam por ser rígido demais e perpetuar a pobreza.
O partido A Esquerda declarou anteriormente que abolir o Hartz IV é um de seus principais objetivos políticos.
Desemprego
Fernand Leger |
― Eu sei. As três mulheres do poema de Manuel Bandeira.
― Não, do anúncio do sabonete. O poema veio depois, nós já existíamos antes.
― E que foi feito das duas outras?
― A primeira passou a trabalhar para a Sentinela Juropapo. A segunda está no galarim, só trabalha para a Secom. Eu estou desempregada, não dá para me arranjar uma boa mordomia no INPS? Sei que é difícil me aposentar, porque já tenho idade de sobra, mas...
Carlos Drummond de Andrade - Contos Plausíveis
Quinze minutos
O Ministério da Cultura, dado por extinto durante uns dias, reencarnado ao longo desse espaço de tempo fugaz numa “Secretaria da Cultura” (com direito a um secretário e outros adereços) e ressuscitado de repente sem nunca ter chegado realmente a morrer, está de novo apto a continuar gastando o dinheiro do leitor e de todos os demais brasileiros, como tem feito em seus 31 anos de existência, na sua única missão visível: doar dinheiro do Tesouro Nacional a artistas, intelectuais e quem mais, com uma boa conversa, se apresentar como tal. O ex-ministro se transformou em ex-secretário e agora é ministro de novo. Os artistas etc. continuarão a dizer “fora Temer”, ou “abaixo o golpe”, e a frequentar os guichês que sempre frequentaram. O Brasil continua quebrado (pelas últimas contas, parece que estão faltando 170 bilhões de reais para pagar as despesas públicas deste ano) e as misérias da cultura brasileira permanecem exatamente onde estavam antes de se fazer a mudança que não foi feita. Um observador imparcial, olhando para o episódio, poderia perguntar: “Que diabo quer dizer isso tudo?”. Quem acompanha mais de perto a vida pública do país responderia que não há realmente nada de novo nessa salada. Foi apenas mais um momento de operação normal do Estado brasileiro ─ é assim mesmo que ele funciona todos os dias, e vamos adiante porque a vida continua.
O Ministério da Cultura é, comprovadamente, uma piada. Não é a única, obviamente, nem a mais cara, dentro da coleção de alucinações que faz a máquina da administração pública deste país ser uma das mais pervertidas do mundo. Mas o governo ora em exercício teve a má ideia de mexer ali ─ ou então teve uma boa intenção vazia, dessas que se desfazem porque não têm musculatura para se transformar em fato. Governos, como é bem sabido, não valem pelo que vão fazer, e sim pelo que fazem. O resultado foi criar um problema em torno de questões que normalmente contam com atenção zero por parte do público em geral. Ele serviu apenas para deixar claro mais uma vez o embuste em estado puro que é a superior “intermediação do Estado” na cultura do Brasil. O ministério não extinto, como se sabe, não faz com um mínimo de decência a única tarefa que poderia lhe dar uma utilidade concreta: cuidar do patrimônio cultural que existe para usufruto da população. Os museus estão infestados de goteiras, excesso de poeira, mofo ou cupins ─ um dos maiores, o Museu do Ipiranga, em São Paulo, está fechado para o público até 2022. As bibliotecas não podem conservar obras preciosas. Parte das cidades históricas está em ruínas. Os funcionários recebem quase sempre salários infames ─ e por aí vamos. Como ficou combinado depois desse último debate, porém, o Ministério da Cultura foi mais uma vez considerado importantíssimo para a sobrevivência da cultura nacional.
Sobrevivência, mesmo, só houve do ministério ─ e dos interesses financeiros da clientela que vive largamente às suas custas. Sua manutenção não teve nada a ver com cultura, e tudo a ver com verbas. Naturalmente, o dinheiro que existe ali não pode ser usado para cuidar de museus ou bibliotecas ─ as classes artísticas e intelectuais em proveito das quais o “MinC” ressuscitou consideram tais funções claramente desprezíveis. Elas não envolvem “o processo político de articulação entre Estado e cultura”, e todo o palavrório da mesma família ─ lembrar essas coisas, segundo a nossa inteligência, é ter uma “visão cultural de direita”. A visão certa, dentro do princípio pelo qual é sempre mais cômodo viver de dinheiro público do que do próprio talento, estabelece que o Ministério da Cultura deve sustentar espetáculos de teatro, música ou dança sem público, filmes sem bilheteria e livros sem leitores. Ou, tão ruim quanto isso, deve aumentar o ganho de artistas que têm audiência e poderiam levar a vida sem precisar de ajuda do governo. É precisamente onde ficamos, depois dessa curta comédia da extinção que nada extinguiu. O governo Michel Temer, depois de pensar um pouco, chegou à conclusão de que o problema simplesmente não valia o seu custo. Os milhões de beneficiários de um país sem “MinC”, preocupados em ganhar a própria subsistência a cada dia, não têm tempo para perder com o assunto. Os que ganham com a recriação desse estorvo mal enchem o estádio do Madureira E.C., mas falam sem parar, são levados a sério pela imprensa e incomodam os políticos; é mais conveniente abaixar a cabeça para eles e esperar que tudo seja esquecido daqui a quinze minutos. É o Brasilzão de sempre.
Sobrevivência, mesmo, só houve do ministério ─ e dos interesses financeiros da clientela que vive largamente às suas custas. Sua manutenção não teve nada a ver com cultura, e tudo a ver com verbas. Naturalmente, o dinheiro que existe ali não pode ser usado para cuidar de museus ou bibliotecas ─ as classes artísticas e intelectuais em proveito das quais o “MinC” ressuscitou consideram tais funções claramente desprezíveis. Elas não envolvem “o processo político de articulação entre Estado e cultura”, e todo o palavrório da mesma família ─ lembrar essas coisas, segundo a nossa inteligência, é ter uma “visão cultural de direita”. A visão certa, dentro do princípio pelo qual é sempre mais cômodo viver de dinheiro público do que do próprio talento, estabelece que o Ministério da Cultura deve sustentar espetáculos de teatro, música ou dança sem público, filmes sem bilheteria e livros sem leitores. Ou, tão ruim quanto isso, deve aumentar o ganho de artistas que têm audiência e poderiam levar a vida sem precisar de ajuda do governo. É precisamente onde ficamos, depois dessa curta comédia da extinção que nada extinguiu. O governo Michel Temer, depois de pensar um pouco, chegou à conclusão de que o problema simplesmente não valia o seu custo. Os milhões de beneficiários de um país sem “MinC”, preocupados em ganhar a própria subsistência a cada dia, não têm tempo para perder com o assunto. Os que ganham com a recriação desse estorvo mal enchem o estádio do Madureira E.C., mas falam sem parar, são levados a sério pela imprensa e incomodam os políticos; é mais conveniente abaixar a cabeça para eles e esperar que tudo seja esquecido daqui a quinze minutos. É o Brasilzão de sempre.
O papel do governo de Michel Temer
Encerrado o ciclo de poder do Partido dos Trabalhadores, muitas questões movimentam-se em direção ao centro do debate. A primeira delas consiste em compreender o que de fato aconteceu, porque aconteceu. Outra consiste em apurar responsabilidade: quem ou o quê é o verdadeiro “culpado” por tantos desacertos? Finalmente e muito urgente é examinar o que significa o governo do interino de Michel Temer; qual seu papel, seus limites e seu potencial?
Inicialmente, pode-se de dizer que a presidente afastada, Dilma Rousseff, e seu partido, o PT, não inventaram a maior parte das mazelas observadas ao longo desses últimos anos. Muitos de nossos problemas são estruturais e estão desde sempre a comprometer o desenvolvimento do País. PT e Dilma não foram, de fato, criativos. Mas, seu maior defeito foi a conivência e o uso ilimitado do mau modelo político herdado.
Pode-se ir mais além: o Brasil assistiu, ao longo dos anos 90, um processo – por certo inconcluso – de modernização do estado e da economia. A estabilização econômica, a lei de responsabilidade fiscal, o programa de privatizações e o plano diretor da reforma do Estado. A um certo momento, cujo epicentro é a carta ao povo brasileiro, em meados de 2002, chegou-se a pensar que o PT poderia representar um “passo adiante” no processo de modernização do País.
Mas não isso que aconteceu. Em suas mãos, tornaram-se sistêmicos o intervencionismo estatal na economia, o aparelhamento e o mandonismo do Executivo para fins político partidários. Vale o mesmo para o Parlamento, marcado pelo clientelismo, o corporativismo, a corrupção. Males estruturais e conhecidos, tornaram-se sistêmicos.
O petismo, no governo, repetiu uma proeza que apenas o governo Collor de Melo havia produzido: levar nosso sistema político ao colapso. Colocar em cheque a funcionalidade costumeiramente atribuída ao presidencialismo de coalizão, funcionalidade esta que em fases anteriores, apesar de todos os pesares e por um pequeno período – 2003- 2009 – o sistema realmente parecia expressar.
Isto se deu, em boa medida, porque o poder é de fato o encanto mais perigoso da história, que inebria atores, com seus favores e com seus prazeres. Para evitar que isto aconteça, antes de confiar nesses atores, humanos e limitados, as sociedades criam regras e sistemas institucionais de controle — checks and balances (pesos e contrapesos), accountability (prestação de contas).
No Brasil, há uma clara deficiência institucional nesta direção. No entanto, teimamos em crer na capacidade, na índole e no caráter das pessoas. Claro que isto tudo é importante, mas um país não pode se fiar em indivíduos isolados. Do ponto de vista da sustentabilidade de uma nação, é mesmo uma loucura fazê-lo.
De tal forma que, no nosso presidencialismo, o presidente é visto quase como um ser inumano e absoluto. De fato, no nosso modelo, ele pode muito e, em virtude disto, é responsabilizado por quase tudo. À parte as características de personalidade da presidente afastada, confiar quase que exclusivamente a Dilma os destinos do Brasil foi um grande erro. Verdade que Dilma não tivesse apetite e capacidade política para a tarefa a que foi designada. Mas, diante de tantos problemas quem, de verdade, teria?
Uma moderna concepção de liderança política precisa retirar da mentalidade coletiva a ilusão de que o chefe-de-governo seja capaz de resolver todos os males, ou depois da tragédia, seja responsável por todos eles. Numa percepção mais arguta do problema da liderança, parece justo afirmar que são os grupos, com suas ideias, experiências e legitimidade coletiva os mais capazes de merecer a confiança para o exercício do poder e das responsabilidades públicas.
O mito criado em torno de Getúlio Vargas e, mais recentemente, em torno de Luiz Inácio Lula da Silva parece merecer necessárias ponderações: à parte de qualidades inatas que se lhes possa atribuir, o maior mérito de tanto um quanto outro residiu mesmo em compreender a necessidade dos grupos históricos a que se associaram. Vargas, no processo de superação da sociedade agrária para a industrial; Lula na percepção das necessidades e desejos da grande parcela de trabalhadores.
Não são, no entanto, eles os atores da história e nem maiores do que as circunstâncias em que viveram. Aliás, diga-se que, coincidentemente, ambos foram ora beneficiados por elas, ora açoitados pelas circunstâncias que os cercaram. A percepção de que tudo se resume à figura de um líder é falsa, embora lideranças sejam fundamentais – lideranças, no plural: conjuntos de indivíduos, articulados e mobilizados para um mesmo e grande objetivo.
Nosso sistema e nossa cultura, no entanto, ainda adormecem no berço do sebastianismo, à espera do redentor, capaz de massacrar serpentes e restituir os anjos aos seus nichos. Mais do que um salvador da pátria dessa natureza, o País precisa de gerações voltadas à política e à reconstrução do sentimento de que a dedicação ao interesse público é, sim, tarefa, nobre e superior. Para isso precisamos desobstruir ou criar mecanismos de maior participação e melhor representação políticas.
O maior erro que podemos cometer neste momento — o erro tolo e nada criativo — é atribuir ao presidente interino, Michel Temer, a exclusiva responsabilidade pela reconstrução nacional. Temer precisaria de dotes e habilidades que não possui — que ninguém possui. É importante não alçá-lo à essa condição de “mais um salvador da pátria” que, de resto, tem sempre o prazo de validade reduzido, destinado rapidamente ao perecimento e, portanto, à desilusão pessoal e popular.
Seu papel reside, antes de tudo, em dirigir o Estado brasileiro neste período de transição onde o que é velho já não tem mais futuro e o novo ainda não está pronto. Essa transição requererá ousadia: a coragem coletiva de propor mudanças profundas ao próprio sistema político, fisiológico e falido de onde vieram.
A reforma política é uma das tarefas da transição, com o barateamento das campanhas, o fim das coligações proporcionais, a cláusula de barreira, o estabelecimento de mecanismos de “recall” para governos incompetentes precisam ser estabelecidos. Mas como pedir aos beneficiários para mudar a regra de um jogo que os beneficia?
Talvez o momento exija do Brasil um pouco de ousadia. Quem sabe uma saída menos convencional, para dar conta da reforma política. Há duas opções bastante claras, nesta direção: a primeira é a convocação de uma assembleia constituinte exclusiva, resultado de candidatura avulsas e independentes dos partidos existentes. Pode parecer paradoxal defender os coletivos e propor candidaturas avulsas. Todavia, é necessário reconhecer o estado de fragmentação dos partidos de modo a novamente agrupar indivíduos para a construção de novos coletivos. Nosso sentimento, no entanto, diz que se quisermos superar o sebastianismo e favorecer a formação de grupos responsáveis, nossos futuros constituintes deverão se voltar para o debate de um sistema Parlamentarista.
A segunda opção diz respeito a uma solução plebiscitária. O Brasil tem boa experiência nesta direção. O plebiscito de 1993, sobre a forma de governo, foi um êxito, assim como o referendo sobre o desarmamento. Nossa democracia tem utilizado pouco o instituto da consulta popular direta, relativa a grandes questões nacionais. Talvez este seja o momento.
Carlos Melo
Inicialmente, pode-se de dizer que a presidente afastada, Dilma Rousseff, e seu partido, o PT, não inventaram a maior parte das mazelas observadas ao longo desses últimos anos. Muitos de nossos problemas são estruturais e estão desde sempre a comprometer o desenvolvimento do País. PT e Dilma não foram, de fato, criativos. Mas, seu maior defeito foi a conivência e o uso ilimitado do mau modelo político herdado.
Pode-se ir mais além: o Brasil assistiu, ao longo dos anos 90, um processo – por certo inconcluso – de modernização do estado e da economia. A estabilização econômica, a lei de responsabilidade fiscal, o programa de privatizações e o plano diretor da reforma do Estado. A um certo momento, cujo epicentro é a carta ao povo brasileiro, em meados de 2002, chegou-se a pensar que o PT poderia representar um “passo adiante” no processo de modernização do País.
Mas não isso que aconteceu. Em suas mãos, tornaram-se sistêmicos o intervencionismo estatal na economia, o aparelhamento e o mandonismo do Executivo para fins político partidários. Vale o mesmo para o Parlamento, marcado pelo clientelismo, o corporativismo, a corrupção. Males estruturais e conhecidos, tornaram-se sistêmicos.
O petismo, no governo, repetiu uma proeza que apenas o governo Collor de Melo havia produzido: levar nosso sistema político ao colapso. Colocar em cheque a funcionalidade costumeiramente atribuída ao presidencialismo de coalizão, funcionalidade esta que em fases anteriores, apesar de todos os pesares e por um pequeno período – 2003- 2009 – o sistema realmente parecia expressar.
Isto se deu, em boa medida, porque o poder é de fato o encanto mais perigoso da história, que inebria atores, com seus favores e com seus prazeres. Para evitar que isto aconteça, antes de confiar nesses atores, humanos e limitados, as sociedades criam regras e sistemas institucionais de controle — checks and balances (pesos e contrapesos), accountability (prestação de contas).
No Brasil, há uma clara deficiência institucional nesta direção. No entanto, teimamos em crer na capacidade, na índole e no caráter das pessoas. Claro que isto tudo é importante, mas um país não pode se fiar em indivíduos isolados. Do ponto de vista da sustentabilidade de uma nação, é mesmo uma loucura fazê-lo.
De tal forma que, no nosso presidencialismo, o presidente é visto quase como um ser inumano e absoluto. De fato, no nosso modelo, ele pode muito e, em virtude disto, é responsabilizado por quase tudo. À parte as características de personalidade da presidente afastada, confiar quase que exclusivamente a Dilma os destinos do Brasil foi um grande erro. Verdade que Dilma não tivesse apetite e capacidade política para a tarefa a que foi designada. Mas, diante de tantos problemas quem, de verdade, teria?
Uma moderna concepção de liderança política precisa retirar da mentalidade coletiva a ilusão de que o chefe-de-governo seja capaz de resolver todos os males, ou depois da tragédia, seja responsável por todos eles. Numa percepção mais arguta do problema da liderança, parece justo afirmar que são os grupos, com suas ideias, experiências e legitimidade coletiva os mais capazes de merecer a confiança para o exercício do poder e das responsabilidades públicas.
O mito criado em torno de Getúlio Vargas e, mais recentemente, em torno de Luiz Inácio Lula da Silva parece merecer necessárias ponderações: à parte de qualidades inatas que se lhes possa atribuir, o maior mérito de tanto um quanto outro residiu mesmo em compreender a necessidade dos grupos históricos a que se associaram. Vargas, no processo de superação da sociedade agrária para a industrial; Lula na percepção das necessidades e desejos da grande parcela de trabalhadores.
Não são, no entanto, eles os atores da história e nem maiores do que as circunstâncias em que viveram. Aliás, diga-se que, coincidentemente, ambos foram ora beneficiados por elas, ora açoitados pelas circunstâncias que os cercaram. A percepção de que tudo se resume à figura de um líder é falsa, embora lideranças sejam fundamentais – lideranças, no plural: conjuntos de indivíduos, articulados e mobilizados para um mesmo e grande objetivo.
Nosso sistema e nossa cultura, no entanto, ainda adormecem no berço do sebastianismo, à espera do redentor, capaz de massacrar serpentes e restituir os anjos aos seus nichos. Mais do que um salvador da pátria dessa natureza, o País precisa de gerações voltadas à política e à reconstrução do sentimento de que a dedicação ao interesse público é, sim, tarefa, nobre e superior. Para isso precisamos desobstruir ou criar mecanismos de maior participação e melhor representação políticas.
O maior erro que podemos cometer neste momento — o erro tolo e nada criativo — é atribuir ao presidente interino, Michel Temer, a exclusiva responsabilidade pela reconstrução nacional. Temer precisaria de dotes e habilidades que não possui — que ninguém possui. É importante não alçá-lo à essa condição de “mais um salvador da pátria” que, de resto, tem sempre o prazo de validade reduzido, destinado rapidamente ao perecimento e, portanto, à desilusão pessoal e popular.
Seu papel reside, antes de tudo, em dirigir o Estado brasileiro neste período de transição onde o que é velho já não tem mais futuro e o novo ainda não está pronto. Essa transição requererá ousadia: a coragem coletiva de propor mudanças profundas ao próprio sistema político, fisiológico e falido de onde vieram.
A reforma política é uma das tarefas da transição, com o barateamento das campanhas, o fim das coligações proporcionais, a cláusula de barreira, o estabelecimento de mecanismos de “recall” para governos incompetentes precisam ser estabelecidos. Mas como pedir aos beneficiários para mudar a regra de um jogo que os beneficia?
Talvez o momento exija do Brasil um pouco de ousadia. Quem sabe uma saída menos convencional, para dar conta da reforma política. Há duas opções bastante claras, nesta direção: a primeira é a convocação de uma assembleia constituinte exclusiva, resultado de candidatura avulsas e independentes dos partidos existentes. Pode parecer paradoxal defender os coletivos e propor candidaturas avulsas. Todavia, é necessário reconhecer o estado de fragmentação dos partidos de modo a novamente agrupar indivíduos para a construção de novos coletivos. Nosso sentimento, no entanto, diz que se quisermos superar o sebastianismo e favorecer a formação de grupos responsáveis, nossos futuros constituintes deverão se voltar para o debate de um sistema Parlamentarista.
A segunda opção diz respeito a uma solução plebiscitária. O Brasil tem boa experiência nesta direção. O plebiscito de 1993, sobre a forma de governo, foi um êxito, assim como o referendo sobre o desarmamento. Nossa democracia tem utilizado pouco o instituto da consulta popular direta, relativa a grandes questões nacionais. Talvez este seja o momento.
Carlos Melo
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