segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Milei reforça onda de ultradireita na América Latina; agora é a vez da Argentina

Chegou a vez da Argentina. Javier Gerardo Milei, economista de 53 anos, alcança a Presidência de seu país como a versão platense de uma tendência de governos de ultradireita que vêm atravessando outros países da região.

Suas particularidades são muitas em relação àqueles com quem costuma ser comparado: não tem apreço pelo conservadorismo moral ou pelos militares como tinha Jair Bolsonaro; não evoca ditadores do passado, como o chileno José Antonio Kast; não defende a construção de prisões gigantes nem um Estado hiperpaternalista como o salvadorenho Nayib Bukele; tampouco aprova que o Executivo seja enorme e abocanhe os demais Poderes, como o guatemalteco Alejandro Giammattei.

Mas, sim, Milei se parece com todos eles ao pregar um rompimento com o que considera política tradicional, ao abraçar o politicamente incorreto, ao desconsiderar as políticas de gênero e avançar contra os direitos de minorias e imigrantes, ao estar a favor da liberação do comércio de armas e ao elogiar e exaltar a meritocracia em um país em que isso deveria ser considerado obsceno devido a suas grandes desigualdades.


Nunca a Argentina teve um presidente tão excêntrico como Milei. Carlos Menem (1930-2021) poderia ser uma comparação nesse quesito. Adorava receber presentes caros, como Ferraris; embarcou no delírio da convertibilidade dólar/peso e das privatizações em um país não preparado para isso; esteve cercado de casos místicos em que mortes e intrigas de pessoas próximas a ele e a seu círculo de poder eram comuns; deu indultos a repressores da última ditadura (1976-1983), como a vice de Milei, Victoria Villarruel, deseja fazer.

Como Menem, Milei não esconde sua enorme vaidade, que o faz namorar mulheres do mundo do espetáculo e exibi-las por todos os lados, assim como transmitir a ideia do macho alfa que tem "superioridade estética" com relação aos que pensam diferente.

Também como Menem, Milei não quer saber dos países vizinhos e de se parecer com outros países latino-americanos. Para quem não se lembra, Menem falava em manter "relações carnais" com os EUA. Milei quer chutar o Mercosul em nome da "liberdade" de buscar tratados de livre-comércio com o mundo e se relacionar com "Israel e o mundo ocidental".

O clássico "Pizza Con Champán" (Sylvina Walger, 1995), que retrata a fervilhante excentricidade dos anos 1990, "dolarizados", com um presidente meio amalucado no comando do país, merece ser relido hoje como possível referência de coisas que podem ocorrer novamente.

Milei venceu as eleições por conta de um cansaço da população com o kirchnerismo —esta que vem sendo a corrente predominante do peronismo desde o surgimento de Néstor Kirchner, em 2003. Esse cansaço já havia dado mostras de uma escalada antes, abrindo espaço para a eleição de Mauricio Macri em 2015.

Este, porém, também falhou ao não conseguir reduzir a inflação, fazer os ajustes necessários e trazer investimentos. O resultado é que a pobreza aumentou até cifras muito parecidas às obscenas de hoje. Seu governo começou a ruir a partir de 2018, quando decidiu pedir o empréstimo de US$ 56 bilhões ao FMI (Fundo Monetário Internacional), que comprometeria a economia do país nos anos seguintes, junto à pandemia e à grave seca que fez com que o país tivesse um prejuízo de US$ 20 bilhões no ano passado.

Sergio Massa, ministro da Economia há apenas um ano, tem menos culpa do que se pintou contra ele durante a campanha eleitoral. As medidas que Alberto Fernández se recusou a tomar no começo de seu mandato estão mais relacionadas a essa situação econômica agônica na qual o país já arrastava. A má relação entre ele e sua vice, Cristina, e suas diferenças não "acalmaram a economia". De todo modo, a "narrativa" de que Massa era o culpado pela inflação foi eficiente.

O resultado do fracasso de Macri foi um cansaço ainda mais raivoso do que havia em 2015. Se naquele ano atacavam-se a corrupção e a deterioração econômica apontando apenas para o kirchnerismo, em 2023 essa insatisfação cresceu de modo mais hostil, abraçando também a oposição.

O achado de Milei, de chamar a todos, incluindo a oposição, de "casta" lhe deu vantagem desde o início de sua escalada, nas eleições legislativas de 2021, quando se elegeu deputado.

É preciso olhar para a história para avaliar as chances de êxito de Milei em seu governo. Macri teve como um de seus únicos sucessos o fato de ser o único opositor ao peronismo a completar um mandato. Os demais todos saíram antes. Esse fantasma acompanhará Milei, uma vez que o peronismo na oposição atua em sua forma mais eficiente, mobilizando sindicatos, militância e províncias em que reina há décadas.

Outro entrave para Milei será o Congresso, onde não terá maioria. Também a Constituição, que colocará travas a sua ideia de promover consultas populares vinculantes para aprovar medidas como a dolarização ou outras que não teriam chance, a princípio, de passar pelo Parlamento.

Se saem de cena os Kirchners, o peronismo vai se reagrupar em torno de novas figuras e terá o espaço deixado pelo Juntos pela Mudança.

O peronismo também tem recursos para conter "estallidos" e evitar grandes tensões sociais, justamente por distribuir benefícios. Milei não contará com isso. Se não entregar resultados rápidos nos primeiros meses, a chance de a insatisfação tomar as ruas é muito grande.

Os direitos para o futuro da Terra

Há profundas alterações no clima do planeta, em decorrência da poluição, da economia desenfreada e poluente dos países desenvolvidos, e da baixa aderência aos protocolos climáticos.

Direitos e deveres surgirão para tornar ou manter a Terra, minimamente, habitável?

Esses novos direitos terão como prioridade a manutenção da vida? Tal catálogo está profundamente relacionado à água potável, à suportabilidade das altas temperaturas, à escassez dos alimentos e ao novo formato das habitações.

Isso relaciona-se com a desertificação de amplas áreas, hoje agricultáveis, da poluição das nascentes, dos rios e dos mares, da extinção das florestas, às enchentes inesperadas e aos novos fenômenos que resultam em multidões de refugiados climáticos.

Serão direitos conectados ao meio ambiente e à sobrevivência. Os deveres estarão relacionados à produção econômica das grandes corporações, que jamais se submeteram aos protocolos ambientais.

A supressão da poluição aérea, terrestre e hídrica deverá compor uma nova Constituição Global e Estatal, hoje relegada às franjas ineficazes dos ordenamentos jurídicos.

Como direitos sem sanção não funcionam, – as estruturas do poder estatal obrigarão o cumprimento desse novo sistema legal ambiental.

Por enquanto, está ocorrendo a perda considerável de vidas, faunas e floras, e os painéis científicos internacionais apenas orientam e alertam, nada mais.

Tal debate está distante das novas tecnologias, da inteligência artificial e das poderosas redes sociais que arrastam milhões de pessoas à superficialidade.

Enquanto isso, nos E.U.A., cujo PIB está crescendo graças à indústria armamentista, detém 45% da produção de armas globais.

Em 2022, esse mercado movimentou US$ 2,2 trilhões, em 2023 cresceu US$241 Bi (estimado). Resumo, tais lucros poderiam promover o fim da miséria no mundo, e reduzir a marcha do aquecimento climático. Nada é feito.

Os fins do Estado estão cada vez mais esquecidos: da segurança pública; dos transportes, do fornecimento da energia e da água potável; das políticas públicas e da economia em prol da população.


Ao lado da indústria das armas estão os bancos e a especulação financeira em grande escala, que espoliam bilhões de pessoas, com lucros sempre maiores que todos os outros setores econômicos. Resultado: a economia global movimenta-se no eixo das armas e das instituições financeiras.

Os ordenamentos preocupam-se com esses temas, ora escamoteando-os, ora garantindo-lhes a legalidade. Vejamos as recentes leis e as novas decisões de tribunais sempre favoráveis aos bancos no Brasil, como também a ideologia da independência dos bancos centrais, o livre mercado que se autorregula, enfim, tudo que desencadeou a quebradeira de 1929 e 2008 (dentre outras).

Os direitos e os deveres deverão focar nos profundos problemas globais do clima, das guerras e dos genocídios.

A primeira grande medida será a extinção dos arsenais bélicos e da indústria armamentista; a segunda, a alteração na economia global para voltá-la aos cidadãos do mundo e não ao rentismo. Na última conta, as atuais armas nucleares do mundo poderiam destruir 80 vezes a Terra. Tudo isso que está acontecendo não é uma grande e terrível lição para a humanidade?

Calor.

Tudo está abafado. O ar condicionado mal dá conta, é preciso auxílio do ventilador. Luísa sua pela nuca, testa e virilhas, mas não pelas axilas. Nunca soube o porquê. Só sabe que há coisas na vida que desconhecem porquês e para quês. Só são como são. Luísa é assim, sudorenta irregular. O calor lhe desperta seus “não sei porquês” do corpo e da alma. Fica mais manhosa, às vezes, letárgica. O lento espalhar com as mãos do suor do pescoço e peito lhe dá um ar sedutor e, ao mesmo tempo, seu rosto adquire traços de cansaço e devaneio. Para quem a vê, Luísa torna-se um mistério. Mais um, num mundo quente sem porquês.

Resolveu almoçar na cafeteria da Lorena, a dois quarteirões do trabalho. Foram dois quarteirões de sol a pino e calor inescapável. Vez ou outra, seu rosto era atiçado por baforadas de vento quente que vinham como marolas de ar provocadas pelos ônibus barulhentos que cruzavam a cidade apinhados de gente suada. “Caminhar foi uma má ideia”, pensou.

Chegou melada de suor e incomodada com o vestido que se agarrava à pele suada em desalinho com seu corpo. Sentia-se suja. Incomodada. O garçom, que a conhecia, cumprimentou-a sem o sorriso de sempre. Suava mais que ela. O ar da cafeteria não dava conta do calor da rua, do abre e fecha da porta e do calor que irradiava da cozinha com um forte cheiro de manteiga derretida. Entregou-lhe o cardápio molhado do suor que lhe escorria pelo queixo. Pensou em ir embora, mas para onde fosse, haveria de encarar o calor bafento e malcheiroso da rua. Preferiu ficar no calor amanteigado da cafeteria.


Na mesa ao lado, um sujeito de voz grossa, quase gutural, chamava aos palavrões pelo garçom. “Cadê minha lasanha? E esse ar que não funciona!…”. Gesticulava exibindo duas enormes manchas molhadas e esbranquiçadas de desodorante nas mangas da camisa sob as axilas. Pareciam duas bocas gigantes de xícara de capuccino.

O garçom lhe respondeu tão rápida e displicentemente que Luísa não entendeu o que ele dissera, mas entendeu pelo tom que não era a resposta gentil de costume. Sem retrucar, o sujeito levantou quase num salto seu corpo pesado da cadeira, precipitando a mesa e todos os apetrechos sobre ela ao chão. A mão voou fechada e atingiu em cheio o queixo do garçom, lançando ao ar um leque de gotículas de suor. Um segundo soco o tirou da letargia do susto. Reagiu a pontapés. A cena se passava para Luísa como em câmera lenta, como se não fosse real, como se nada fosse real. O choque de realidade lhe veio na cabeça, atingida por uma cadeira lançada ao ar sabe-se lá por quem.

Em pouco tempo, todos batiam, todos apanhavam. A cafeteria foi se desfazendo em mesas quebradas, vidros e louças estilhaçadas. O chão tornou-se um atoleiro de suor, sangue, comidas e bebidas. Luísa caiu e preferiu não levantar mais. Assistia à barbárie do chão molhado, sem se preocupar com as bochechas que se molhavam na lama do chão. Sentiu-se protegida naquela sarjeta de restos dos incômodos e brutalidade dos que lutavam com palavras, pernas e punhos pela manutenção de seus orgulhos e paciências apequenadas pelo calor indiferente aos incômodos e outras miudezas humanas.

Luísa deu-se por si suja, malcheirosa, ferida e, pela primeira vez na vida, com as axilas suadas. Sentia-se completamente despida de sua dignidade. Largou-se ali até quase adormecer naquele chão menos quente do que o ar fedorento de suor do que, um dia, foi a cafeteria da Lorena.

Dia Mundial da Criança

 


Como são contados os mortos na Faixa de Gaza

Em qualquer zona de guerra, contar os mortos é um desafio. Em Gaza não é diferente.

À medida que as batalhas se intensificam, a situação caótica - com bombardeamentos por forças israelenses, combates terrestres, cortes de comunicações, escassez de combustível e infraestruturas em ruínas - torna extremamente difícil obter informações precisas sobre o número de pessoas que morreram.

E as autoridades palestinas afirmaram que existem agora “dificuldades significativas” na obtenção de informações atualizadas devido à interrupção das comunicações na Faixa de Gaza.

O Ministério da Saúde controlado pelo Hamas é a fonte oficial de Gaza para o número de mortos – que é atualizado regularmente. Na noite de segunda-feira (13/11), informou que 11.240 pessoas foram mortas, incluindo 4.630 crianças, desde os ataques do Hamas a Israel no dia 7 de outubro, que desencadearam a guerra atual.

Os números foram publicamente questionados por Israel, embora recentemente tenha tido de rever os seus próprios números de mortes para baixo em cerca de 200 – de 1.400 para cerca de 1.200.

O presidente dos EUA, Joe Biden, disse que “não tem confiança” nas estatísticas de Gaza. Mas organizações internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) das Nações Unidas, afirmaram não ter motivos para não acreditar neles.

A BBC tem analisado detalhadamente como são contabilizados o número de vítimas em Gaza.


O Ministério da Saúde de Gaza publica regularmente o número de mortes nas redes sociais, com uma divisão separada no número de mulheres, crianças e idosos. Os números não indicam a causa da morte, mas descrevem os mortos como vítimas da “agressão israelense”.

O ministério também fornece números de feridos e desaparecidos. Alguns dos corpos permanecem presos sob pilhas de escombros, afirma a organização humanitária Crescente Vermelho Palestino.

Autoridades do Ministério da Saúde dizem que os números de mortes são registrados por profissionais médicos antes de serem repassados a eles e os números incluem apenas pessoas registradas como mortas no hospital.

Os números não fazem distinção entre mortes de militares e civis. E, como não levam em conta aqueles que morreram no local das explosões e cujos corpos não foram encontrados ou enterrados imediatamente, pode haver uma subcontagem, dizem as autoridades de Gaza.

Esse ponto foi amplificado pela administração Biden na semana passada, quando um alto funcionário dos EUA disse que o número de mortos provavelmente seria maior do que os números divulgados.

"Achamos que são muito altos, francamente", disse Barbara Leaf, secretária de Estado adjunta para Assuntos do Oriente Próximo, ao Comitê de Relações Exteriores da Câmara, "e pode ser que sejam ainda maiores do que os citados".

Isso contrasta fortemente com a opinião do próprio Biden, que, em 25 de outubro, disse não ter “nenhuma noção de que os palestinos estão dizendo a verdade sobre quantas pessoas foram mortas”.

No entanto, ele não forneceu nenhuma razão para seu ceticismo.

Um dia depois de Biden ter rejeitado os números, o Ministério da Saúde de Gaza forneceu mais informações, publicando uma extensa lista de nomes de todos aqueles que foram mortos entre 7 e 26 de outubro. A lista incluía mais de 6 mil nomes completos com idade, sexo e números de identidade.

Como foi compilado? A BBC conversou com pessoas envolvidas na coleta e organização dos dados, assim como com um acadêmico que verificou se havia duplicatas na lista de nomes.

Também falamos com um grupo de investigação independente, o Airwars, que está no processo de comparar as mortes que investigou com nomes que constam na lista do Ministério da Saúde, e com a ONU - que avaliou os números de mortes em Gaza durante períodos anteriores ao conflito.

Profissionais de saúde como Ghassan Abu-Sittah, um cirurgião plástico da Médicos Sem Fronteiras que vive em Londres e tem tratado pessoas em hospitais na Cidade de Gaza, são fundamentais para registar esses números.

Ele diz que o necrotério do hospital registra as mortes apenas após confirmar a identidade do falecido com seus familiares.

O número de mortes registradas até agora, acredita ele, é muito inferior ao que realmente ocorreu. “A maioria das mortes acontece em casa”, diz ele. “Aqueles que não conseguimos identificar, não registramos”.

No entanto, uma vez encontrado um corpo, “ele tem de ser levado ao hospital para ser registrado”, afirma um porta-voz do Crescente Vermelho Palestino.

Para examinar a lista do Ministério da Saúde, a BBC cruzou nomes nela incluídos com os de pessoas mortas que apareceram nas nossas reportagens. Uma dessas mortes relatadas pela BBC foi a de Midhat Mahmoud Saidam, morto num ataque em 14 de outubro. A BBC conversou com seus ex-colegas.

A análise de imagens de satélite realizada pela BBC mostrou danos na área onde ele morava por volta da data de sua morte. Uma imagem publicada nas redes sociais mostra um saco para cadáveres com o nome dele e detalhes escritos.

Trabalho semelhante, mas em maior escala, está sendo realizado pela Airwars. Como parte do seu trabalho de investigação de mortes de civis, ela comparou os nomes dos mortos na lista do Ministério da Saúde com as áreas que foram bombardeadas. Até agora, a Airwars encontrou 72 nomes na lista do ministério em cinco das áreas que investigou, incluindo o de Saidham.

A investigação descobriu ainda que 23 membros da família dele também morreram e todos foram registrados na lista do Ministério da Saúde.

A BBC também falou com a ONU e a Human Rights Watch - ambas afirmaram não ter motivos para desconfiar dos números divulgados pelo Ministério da Saúde em Gaza.

A ONU depende do Ministério da Saúde como fonte de números de vítimas na região.

“Continuamos incluindo os dados nos nossos relatórios e a sua origem é clara”, afirmou em comunicado. "É quase impossível neste momento fornecer qualquer verificação diária da ONU."

Outras pessoas que examinaram os números do Ministério da Saúde incluem o professor de economia Michael Spagat, da Royal Holloway, da Universidade de Londres – que preside a instituição de caridade Every Casualty Counts, que estuda o número de mortos em guerras.

Ele diz que, junto com um colega, encontrou apenas uma entrada duplicada no conjunto de dados do Ministério da Saúde – a de um menino de 14 anos.

No entanto, uma discrepância continua sendo fortemente contestada – a do número de mortos após uma explosão no hospital al-Ahli, na Cidade de Gaza, no dia 17 de outubro. O Ministério da Saúde disse que 500 pessoas foram mortas, e esse número foi posteriormente revisado para 471.

Uma avaliação da inteligência americana foi mais baixa, "provavelmente na extremidade inferior do espectro, de 100 a 300". Os militares de Israel citaram os números de Al-Ahli como base para a afirmação de que o Ministério da Saúde de Gaza “inflaciona continuamente o número de vítimas civis”.

A BBC fez repetidas tentativas de contato com o Ministério da Saúde de Gaza, mas não obteve respostas até a publicação deste texto.

O professor Spagat também analisou conflitos anteriores e descobriu que os números do Ministério da Saúde em Gaza não pareciam estar distantes da realidade.

Em uma análise dos números de mortes do Ministério da Saúde no conflito Israel-Gaza em 2014, no qual Gaza foi bombardeada, e em um registo separado dos números de mortes desse mesmo ano recolhido pela organização israelense de direitos humanos B'Tselem, Spagat encontrou consistência nos números relatados.

O Ministério da Saúde disse que 2.310 habitantes de Gaza foram mortos em 2014, enquanto B'Tselem contou 2.185 mortes. A ONU disse que 2.251 palestinos foram mortos, incluindo 1.462 civis, e o Ministério das Relações Exteriores de Israel disse que a guerra de 2014 matou 2.125 palestinos.

Discrepâncias como essas são “bastante normais”, diz Spagat, já que algumas pessoas podem ter morrido no hospital por razões posteriormente demonstradas como não relacionadas com a violência no conflito.

Ola Awad-Shakhshir, presidente do Gabinete Central de Estatísticas Palestino, em Ramallah, na Cisjordânia ocupada, recebe atualizações regulares sobre as mortes em Gaza.

Awad-Shakhshir diz que o Ministério do Interior de Israel controla efetivamente os números de identificação dos recém-nascidos em Gaza e na Cisjordânia – os mesmos números de identificação que aparecem no registo de mortes do Ministério da Saúde, gerido pelo Hamas.

O Gabinete de Registo da População de Israel mantém arquivos que correspondem aos de Gaza e da Cisjordânia.

Quando a BBC abordou um porta-voz das Forças de Defesa de Israel sobre o motivo pelo qual lançaram dúvidas sobre os números de mortes em Gaza, ele disse que o Ministério da Saúde era um ramo do Hamas e que qualquer informação fornecida por ele deveria ser “vista com cautela”. Mas não forneceu nenhuma evidência de inconsistências nos dados divulgados pelo Ministério da Saúde.

Também perguntamos ao gabinete do primeiro-ministro israelense como foi registrado o número de israelenses mortos no dia 7 de outubro pelo Hamas. Ele não respondeu a essa pergunta, no entanto, nos últimos dias, Israel revisou para baixo o número de pessoas mortas durante o ataque para cerca de 1.200, ante o número anterior de 1.400.

O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Lior Haiat, disse que o número revisado se deve ao fato de muitos corpos não terem sido identificados imediatamente após o ataque e "agora pensamos que pertencem a terroristas... e não a vítimas israelenses".

O governo israelense não publicou uma lista detalhada das vítimas civis, embora alguns meios de comunicação israelenses tenham reunido essas listas com nomes, idades e locais das mortes.

A polícia de Israel afirma que mais de 850 corpos de civis foram identificados – o trabalho continua para tentar identificar restos mortais usando técnicas forenses especializadas.

Existe uma lista pública dos soldados israelenses mortos até agora que inclui 48 que morreram nos combates dentro de Gaza.
Kayleen Devlin

A intolerância

Manifestantes bolsonaristas invadem a Esplanada dos Ministérios e promovem atos de vandalismo e terrorismo em prédios públicos. Na imagem, eles entram em confronto com a polícia, que usam cavalos e escudos para deter vândalos - Metrópoles

A democracia não tem descanso. Sofre ameaças permanentes e frequentes agressões reais. A causa é uma contradição de difícil superação: paga o altíssimo preço mais pelas virtudes que abriga do que pelos defeitos que carrega como obra imperfeita da criação humana.

Os fundamentos do ideal democrático podem ser identificados na definição da notável filósofa, autora de obras marcantes, Hannah Arendt (1906-1975) sobre o que vem a ser a Política: “Tem por base a pluralidade de homens e a convivência de diferentes” (O que é política?; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p.21).


A sábia concisão de Arendt revela os elementos constitutivos da construção democrática: pluralismo, regras de convivência e solução pacífica dos conflitos.

A judia-alemã, naturalizada norte-americana, tinha pleno conhecimento do que dizia não só porque nos legou obras magistrais, frutos de profunda reflexão, como também por uma experiência vivida em que a democracia foi massacrada pela devastadora beligerância dos totalitarismos.

Sua sobrevivência pessoal à “solução final”, preconizada pelo nazismo como etapa derradeira da extinção dos judeus, equivale à uma narrativa épica; sua existência revelou a fortaleza de uma mulher dotada de inabalável empatia e capacidade de enxergar A Condição Humana (título de grande obra) em “ação” integrada à esfera pública, livre e plural.

Sem direitos do homem reconhecidos e protegidos no ambiente fecundo da diversidade, do antagonismo e do diálogo, o espaço da democracia é sufocado pela violência e supremacia do mais forte.

As regras de convivência e as instituições, derivadas do consentimento, separam a barbárie e da civilização; afirmam o governo da lei e as limitações do exercício do poder. Porém, não bastam códigos escritos, a força dos costumes, os imperativos morais ou religiosos, é necessário que a lei seja cumprida e eficaz, pois, quanto maior for a adesão voluntária dos cidadãos aos comandos normativos, mais democrática é uma sociedade.

O momento necessário de confirmação e reiteração do ideal democrático é a paz. Desde os pequenos círculos de convivência à configuração da geopolítica global, caso não haja possibilidade para solução pacífica dos conflitos, a democracia agônica perde continuamente a respiração para o poder dos tiranos e a consagração da estupidez que se chama guerra.

Pois bem, o estrondo das armas e a crueldade terrorista demonstram que a democracia não tem sossego. É o quadro do nosso cotidiano ao refletir as dores que emitem imagens e cores da tragédia humana. Não surpreende porque, na raiz dos conflitos, se encontra, talvez, a maior virtude das democracias: a tolerância.

O preâmbulo da Carta das Nações Unidas (26/6/1945) prescreve “praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros como bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais….”, no entanto, a experiência histórica tem mostrado como é difícil para uma verdadeira democracia, regime tolerante e permeável à opinião pública, lutar contra a intolerância.

Não custa lembrar o Acordo de Munique (28/9/1938), pacto firmado entre as potências europeias que dava à Alemanha nazista os Sudetos e o controle da Checoslováquia desde que fossem a última reivindicação territorial de Hitler. O então Primeiro-Ministro inglês Neville Chamberlain foi recebido em Londres com calorosos aplausos, a exceção de Churchill que proferiu uma de suas célebres e proféticas frases: “Entre a desonra e a guerra, escolheste a desonra e terás a guerra”.

Mais uma vez, o mundo sofre um ódio epidêmico que é a aversão às dessemelhanças. A negação do direito à alteridade. De todos os tipos. Das etnias aos imigrantes. Do racismo ao sexismo. E por aí vai. A questão desafiadora é qual o limite da tolerância? Tolerar o radicalmente intolerável?

É preciso atentar para o fato de que o intolerante não se contenta em recusar sua própria liberdade: quer obrigar todos os outros a renunciarem com ele à liberdade. A espontaneidade humana, mundo aberto, fonte radical da liberdade a que se referia Hannah Arendt, perde espaço para os extremismos a ponto de uma organização terrorista manifestar o objetivo de destruir Israel em permanente e subterrânea (literalmente) declaração de “guerra”.

Melhor dizendo: declaração estatutária de extinção de milhões de pessoas. Não há registro de guerras entres estados democráticos. A reação à ameaça de ampliação das agressões é o legítimo direito de defesa dos judeus e não-judeus que são alvos e escudos, reais e potenciais, da inominável e covarde agressão do Hamas.

Importante lembrar para não esquecer: o terrorismo é um crime contra a humanidade, logo seus fanáticos adeptos são criminosos adestrados para matar disseminando o medo e o horror dos conflitos.

Consciência do mundo num hospital em Gaza

Numa segunda-feira, falar de temas tão distantes como um hospital em Gaza, levantar questões como uma ainda inexistente ordem mundial, talvez não seja o melhor caminho.

“Alguma coisa está fora da nova ordem mundial” — diz a canção. Mas Henry Kissinger, em seu livro sobre o tema, diz que nunca houve uma verdadeira ordem mundial. A Paz de Vestfália no fim da Guerra dos 30 Anos (1618-1648) foi um evento europeu.

No momento em que as tropas de Israel entraram no Hospital Al-Shifa, em Gaza, nada pude fazer, exceto me informar. Mas a ONU também nada pode fazer, exceto dizer que hospitais não são campos de batalha. Estamos, portanto, no mesmo barco, eu a ONU.

As imagens do dia anterior foram terríveis. Bebês recém-nascidos fora das incubadoras, por falta de energia. Israel afirma que, com dados da Inteligência, sabe que o Hamas usa o hospital como base. O Hamas nega. Um palestino entrevistado pela Al Jazeera parece confirmar a tese de Israel: o Hamas deveria sair daqui e ir para o inferno. O Hamas usa as pessoas como escudo humano. Sua tese, pós-atentado, é que trouxe Israel para a guerra, e era isso que pretendia para manter acesa a causa palestina.


Não é possível concordar com quem usa mulheres e crianças como escudo humano. Mas também não é possível concordar com quem mata escudos humanos, numa tentativa de alcançar o Hamas.

O hospital está cheio de feridos de guerra e doentes. Sem remédios ou eletricidade. Os recém-nascidos estavam do lado de fora por causa disso. Uma fila de corpos enrolados em lençóis brancos à espera de uma cova comum nos fundos do hospital. As cirurgias eram feitas sem anestesia ou, nos casos mais graves, com meia dose. Médicos e enfermeiros dormem apenas duas horas por noite. E há ainda centenas de refugiados nos corredores do hospital.

As bombas caíram perto. Soldados de Israel invadem o hospital, visitam quarto por quarto. Homens são chamados para uma revista no pátio. Imagino tudo isso sendo visto pelos olhos de doentes e feridos. Vulneráveis e estupefatos, os pacientes do Al-Shifa foram internados no inferno.

Quando a OMS perdeu contato com os médicos e enfermeiros do hospital, percebi uma nova dimensão da tragédia: estavam isolados no centro de Gaza, sem contato com o mundo exterior. Israel permitiu uma visita controlada da imprensa, achou alguns fuzis, mas ainda procurava os túneis.

Minha vontade foi me sentar na calçada com a ONU e chorar a impossibilidade de fazer algo. No entanto o que sempre sonhei ser possível no Conselho de Segurança acabou se consumando: uma declaração enfatizando o direito das crianças e clamando por pausas humanitárias, inclusive a devolução daquelas que foram sequestradas pelo Hamas. Inicialmente, Israel resistirá.

Será que essa pequena dose de influência da comunidade internacional será cumprida? Será que é possível realmente sonhar com uma ordem mundial com tantos conflitos violentos, tanto extremismo religioso?

Algumas tentativas fracassaram ao longo da História. Mas, num momento como este em que nos sentimos tão frágeis, assim como a própria ONU criada para abrigar todos os países, é exatamente quando precisamos renovar a esperança. O que fizemos com a natureza ameaça nossa existência, só falta nos destruirmos antes de sermos expulsos pelo próprio planeta.

Não importa o resultado desta guerra no Oriente Médio. Ela já nos mostrou como são inadequados os instrumentos que temos, inclusive o próprio Conselho de Segurança, que, na verdade, sempre nos assegura que nada ou muito pouco será feito. Suas regras são feitas para que a rivalidade das potências leve à paralisia. Pelo menos as crianças conseguiram sensibilizar um organismo tão ineficaz. São as grandes vítimas e podem ser uma inspiração para a mudança.