terça-feira, 4 de maio de 2021
El Salvador vira modelo 'democrático' dos Bolsonaro
Muito se tem falado nos últimos anos a respeito das novas formas de minar a democracia, sem a necessidade de golpes de Estado clássicos, com tanques e tropas nas ruas. Regimes e governantes eleitos pelo povo, em processos que nem necessariamente são evitados de fraude eleitoral, passam a minar as instituições imediatamente após empossados, com o objetivo claro de blindar seus governos de críticas, fiscalização e oposição e se perpetuar no poder.
O processo está em curso, sem nenhuma tentativa de disfarce, em El Salvador. Eleito em 2019 para presidir o País, o jovem publicitário Nayib Bukele, obteve em fevereiro deste ano uma importante vitória legislativa, conquistando 61 das 80 cadeiras legislativas. O triunfo teve resultado imediata: empossada, a nova Assembleia Legislativa depôs todos os juízes da Suprema Corte e o procurador-geral que eram críticos ao regime de Bukele.
E foi aí que o presidente do pequeno país americano caiu nas graças do bolsonarismo, carente de espelhos desde a queda de Donald Trump. Na ausência de um primo rico num país grande e democrático, o jeito é se espelhar em alguém mais próximo.
Bukele reúne algumas das características caras ao bolsonarismo: é jovem, com perfil autoritário (já chegou a invadir o parlamento com força policial para pressionar por uma votação), teve ascendência meteórica na política, costuma atribuir a si mesmo desígnios divinos para tomar decisões, vem de um partido de extrema-direita que chegou ao poder depois de vencer a esquerda combalida por denúncias de corrupção e usa as redes sociais com maestria.
Sem esconder a inspiração, sobretudo depois que o Supremo Tribunal Federal virou a pedra no sapato para os arreganhos autoritários de Jair Bolsonaro, seu filho Eduardo, o suposto especialista em política externa da família, passou o fim de semana numa escalada de admiração por Bukele no Twitter. Chegou a exaltar a deposição da Suprema Corte: "Tudo constitucional", escreveu, com indisfarçada inveja.
"Juízes julgam casos, se quiserem ditar políticas que saiam às ruas para se elegerem", afirmou.
Fez a postagem em cima de outra em que o presidente salvadorenho convida os "amigos da América Latina" a uma espécie de intercâmbio político, um convite para a criação de uma "Ursal da direita", para usar um dos fetiches da direita nas eleições de 2018.
Não é de hoje que Eduardo Bolsonaro, Filipe Martins, Ernesto Araújo e o próprio Bolsonaro tentam emular regimes que corroem a democracia por dentro, implodindo suas instituições. As sucessivas manifestações, inclusive no último fim de semana, tendo o STF como alvo nada mais são do que investidas para plantar na sociedade a semente da insatisfação com o funcionamento do estado democrático de direito e tentar aumentar o apoio a saídas golpistas, como intervenção militar de alguma espécie.
Há, inclusive, narrativas que falseiam o que diz a Constituição a esse respeito, para criar a fantasia de que é "tudo constitucional", como diz Eduardo Bolsonaro, cuja inteligência limitada sempre faz com que deixe patentes todas as suas intenções.
Acontece que o Brasil não é El Salvador, e a popularidade combalida de Bolsonaro, graças à sua desastrosa condução da economia, não dá a ele algo nem próximo do aval que Bukele obteve nas urnas em fevereiro para colocar em marcha seu golpe branco.
Ainda assim, repito uma cantilena muito comum a esse espaço, mas que continuarei proferindo enquanto a ameaça golpista constantemente brandida pelo bolsonarismo prosseguir: ou as instituições ficam vigilantes para reagir a tentativas de fragilizá-las, ou só perceberão a infiltração quando ela tiver comprometido a estrutura do prédio da democracia constitucional.
O processo está em curso, sem nenhuma tentativa de disfarce, em El Salvador. Eleito em 2019 para presidir o País, o jovem publicitário Nayib Bukele, obteve em fevereiro deste ano uma importante vitória legislativa, conquistando 61 das 80 cadeiras legislativas. O triunfo teve resultado imediata: empossada, a nova Assembleia Legislativa depôs todos os juízes da Suprema Corte e o procurador-geral que eram críticos ao regime de Bukele.
E foi aí que o presidente do pequeno país americano caiu nas graças do bolsonarismo, carente de espelhos desde a queda de Donald Trump. Na ausência de um primo rico num país grande e democrático, o jeito é se espelhar em alguém mais próximo.
Bukele reúne algumas das características caras ao bolsonarismo: é jovem, com perfil autoritário (já chegou a invadir o parlamento com força policial para pressionar por uma votação), teve ascendência meteórica na política, costuma atribuir a si mesmo desígnios divinos para tomar decisões, vem de um partido de extrema-direita que chegou ao poder depois de vencer a esquerda combalida por denúncias de corrupção e usa as redes sociais com maestria.
Sem esconder a inspiração, sobretudo depois que o Supremo Tribunal Federal virou a pedra no sapato para os arreganhos autoritários de Jair Bolsonaro, seu filho Eduardo, o suposto especialista em política externa da família, passou o fim de semana numa escalada de admiração por Bukele no Twitter. Chegou a exaltar a deposição da Suprema Corte: "Tudo constitucional", escreveu, com indisfarçada inveja.
"Juízes julgam casos, se quiserem ditar políticas que saiam às ruas para se elegerem", afirmou.
Fez a postagem em cima de outra em que o presidente salvadorenho convida os "amigos da América Latina" a uma espécie de intercâmbio político, um convite para a criação de uma "Ursal da direita", para usar um dos fetiches da direita nas eleições de 2018.
Não é de hoje que Eduardo Bolsonaro, Filipe Martins, Ernesto Araújo e o próprio Bolsonaro tentam emular regimes que corroem a democracia por dentro, implodindo suas instituições. As sucessivas manifestações, inclusive no último fim de semana, tendo o STF como alvo nada mais são do que investidas para plantar na sociedade a semente da insatisfação com o funcionamento do estado democrático de direito e tentar aumentar o apoio a saídas golpistas, como intervenção militar de alguma espécie.
Há, inclusive, narrativas que falseiam o que diz a Constituição a esse respeito, para criar a fantasia de que é "tudo constitucional", como diz Eduardo Bolsonaro, cuja inteligência limitada sempre faz com que deixe patentes todas as suas intenções.
Acontece que o Brasil não é El Salvador, e a popularidade combalida de Bolsonaro, graças à sua desastrosa condução da economia, não dá a ele algo nem próximo do aval que Bukele obteve nas urnas em fevereiro para colocar em marcha seu golpe branco.
Ainda assim, repito uma cantilena muito comum a esse espaço, mas que continuarei proferindo enquanto a ameaça golpista constantemente brandida pelo bolsonarismo prosseguir: ou as instituições ficam vigilantes para reagir a tentativas de fragilizá-las, ou só perceberão a infiltração quando ela tiver comprometido a estrutura do prédio da democracia constitucional.
Apagão de emprego e capital
O pastor anglicano Thomas Malthus era um pessimista, em meio ao otimismo iluminista do final do século 18. Atribuía aos impulsos sexuais o crescimento da população e, em decorrência, o aumento da pobreza. Era um darwinista social, como o ministro da Economia, Paulo Guedes, que acha absurdo as pessoas quererem viver até os 100 anos e os filhos de porteiros sonharem com aquele canudo de papel do samba O pequeno burguês, grande sucesso de Martinho da Vila.
Somente Thomas Malthus explica a naturalidade com que o presidente Jair Bolsonaro e Guedes estão lidando com a crise sanitária e os 400 mil mortos pela covid-19 já contabilizados no Brasil. A teoria econômica malthusiana sustentava-se na tese de que a produção de alimentos não acompanharia o crescimento da população; porém, com a má alimentação e as doenças, haveria um reequilíbrio, com a redução da expectativa de vida e da taxa de natalidade. Mais semelhança com pensamento dominante no Palácio do Planalto e no Ministério da Fazenda, impossível.
Entretanto, àquela época, a teoria malthusiana já havia sido ultrapassada pelo desenvolvimento do capitalismo, cujas inovações permitiram a maior produção de alimentos, de bens e de serviços. Hoje, a população inglesa é três vezes maior e 10 vezes mais rica do que há 200 anos. Mesmo na China, que até recentemente proibia os casais de terem mais de um filho, em decorrência do fracasso do “Grande salto para a frente” de Mao Zedong (45 milhões de chineses morreram de fome), o problema alimentar foi resolvido. Em grande parte, graças ao Brasil, que se tornou seu maior fornecedor de grãos e proteínas.
Somente Thomas Malthus explica a naturalidade com que o presidente Jair Bolsonaro e Guedes estão lidando com a crise sanitária e os 400 mil mortos pela covid-19 já contabilizados no Brasil. A teoria econômica malthusiana sustentava-se na tese de que a produção de alimentos não acompanharia o crescimento da população; porém, com a má alimentação e as doenças, haveria um reequilíbrio, com a redução da expectativa de vida e da taxa de natalidade. Mais semelhança com pensamento dominante no Palácio do Planalto e no Ministério da Fazenda, impossível.
Entretanto, àquela época, a teoria malthusiana já havia sido ultrapassada pelo desenvolvimento do capitalismo, cujas inovações permitiram a maior produção de alimentos, de bens e de serviços. Hoje, a população inglesa é três vezes maior e 10 vezes mais rica do que há 200 anos. Mesmo na China, que até recentemente proibia os casais de terem mais de um filho, em decorrência do fracasso do “Grande salto para a frente” de Mao Zedong (45 milhões de chineses morreram de fome), o problema alimentar foi resolvido. Em grande parte, graças ao Brasil, que se tornou seu maior fornecedor de grãos e proteínas.
Com a pandemia, no entanto, milhões de brasileiros estão mergulhados na miséria absoluta, sem ter nem o que comer em casa por falta de renda. São números acachapantes: 14,4% de desempregados e redução da massa salarial da ordem de 7,4%,uma perda de R$16,8 bilhões, entre o trimestre encerrado em fevereiro de 2021 e o mesmo período do ano passado, segundo o Instituto Brasi- leiro de Geografia e Estatística (IBGE). A menor queda foi na agrope- cuária (-0,8%). A administração pública, porém, teve aumento surreal nos rendimentos, de 5,3%. Tem algo errado aí.
As atividades de alojamento e alimentação perderam 1,5 milhão de empregos, maior queda percentual (-27,4%). A indústria fechou cerca de 1,3 milhão de postos (-10,8%), mesmo número dos serviços domésticos (-20,6%). O comércio perdeu 1,98 milhão de vagas (-11%). Somente a agropecuária (226mil) e o setor público (374 mil) elevaram o número de vagas. Durante a pandemia, houve um aumento de 2 milhões de desempregados; ou seja, a situação já era muito grave no mercado formal antes disso, com 12,4 milhões de desempregados. Um dado chama muita atenção: a perda de rendimento de empregadores (-5,4%) e dos trabalhadores domésticos (-3,6%).
O agravante é que nada será como antes, porque a covid-19 acelerou transformações no mundo do trabalho que vieram para ficar, com a substituição de mão de obra por mais tecnologia e a adoção do trabalho avulso e remoto. Além disso, 10,5 milhões de pessoas deixaram de procurar emprego, dos quais 1,2 milhão passaram a compor o grupo de desalentados, que chegou ao patamar recorde de quase 6milhões, um aumento de 27% em um ano.
Empresas com mais capacidade de investimentos aproveitam a oportunidade para avançar sobre os concorrentes e obter ganhos de produtividade. Entretanto, tão grave quanto o desemprego é o apagão de capital de micro, pequenos e médios empreendedores, que encerraram suas atividades e queimaram suas economias para sobrevivência das suas famílias. Guedes, entretanto, vê na pandemia uma oportunidade de ouro para descontruir políticas públicas, sem pôr nada no lugar, porque suas teorias ultraliberais estão tão ultrapassadas quanto as teses malthusianas.
As atividades de alojamento e alimentação perderam 1,5 milhão de empregos, maior queda percentual (-27,4%). A indústria fechou cerca de 1,3 milhão de postos (-10,8%), mesmo número dos serviços domésticos (-20,6%). O comércio perdeu 1,98 milhão de vagas (-11%). Somente a agropecuária (226mil) e o setor público (374 mil) elevaram o número de vagas. Durante a pandemia, houve um aumento de 2 milhões de desempregados; ou seja, a situação já era muito grave no mercado formal antes disso, com 12,4 milhões de desempregados. Um dado chama muita atenção: a perda de rendimento de empregadores (-5,4%) e dos trabalhadores domésticos (-3,6%).
O agravante é que nada será como antes, porque a covid-19 acelerou transformações no mundo do trabalho que vieram para ficar, com a substituição de mão de obra por mais tecnologia e a adoção do trabalho avulso e remoto. Além disso, 10,5 milhões de pessoas deixaram de procurar emprego, dos quais 1,2 milhão passaram a compor o grupo de desalentados, que chegou ao patamar recorde de quase 6milhões, um aumento de 27% em um ano.
Empresas com mais capacidade de investimentos aproveitam a oportunidade para avançar sobre os concorrentes e obter ganhos de produtividade. Entretanto, tão grave quanto o desemprego é o apagão de capital de micro, pequenos e médios empreendedores, que encerraram suas atividades e queimaram suas economias para sobrevivência das suas famílias. Guedes, entretanto, vê na pandemia uma oportunidade de ouro para descontruir políticas públicas, sem pôr nada no lugar, porque suas teorias ultraliberais estão tão ultrapassadas quanto as teses malthusianas.
Precisamos escapar do universo paralelo de Lula e Bolsonaro
A manifestação na Avenida Paulista, no último sábado, simboliza a apropriação indébita e a impostura que ocorrem sob Jair Bolsonaro. O presidente que se elegeu aproveitando-se da bandeira anticorrupção da Lava Jato não só ajudou a destruir a operação, em conluio tácito com o PT e demais partidos implicados em crimes, como agora se utiliza de uma das figuras políticas mais associadas à corrupção do PT, o mensaleiro Roberto Jefferson, para fazer discurso na via paulistana que serviu de palco para os maiores protestos contra a corrupção já registrados no país, depois da redemocratização.
Foi como se descortinássemos um universo paralelo: o verde-amarelo de 2016 agora é do bolsonarismo; no alto da caminhão de som, Roberto Jefferson no lugar de personalidades respeitáveis; ao invés de exigência de democracia e fortalecimento das instituições, gritos por intervenção militar e fechamento do STF.
Por ocasião das manifestações de 2016, havia um grupo de aloprados com as mesmas bandeiras, ainda sem Bolsonaro, que ocupava uma pequena porção da avenida, pedindo absurdos idênticos: intervenção militar e correlatos. Não chegava a um quarteirão. O número dessas pessoas não aumentou tanto assim desde então. O problema é que, agora, eles são os únicos a ir para a rua. Está certo que, ao contrário dos demais, esse pessoal que aplaudiu Roberto Jefferson se comporta como aliado do vírus da Covid. Mas é de se perguntar se a maioria hoje silenciosa só está recolhida por causa da pandemia ou se apresente mais do que cansada diante das sucessivas derrotas da Lava Jato em todas as frentes e do espetáculo estarrecedor que se desenrola sem freios em Brasília. Essa maioria hoje silenciosa não quer fechar instituição nenhuma e não quer saber de militar tomando poder. Continua a querer manutenção das liberdades democráticas, instituições que funcionam, honradez e honestidade.
É compreensível o cansaço de repetir as demandas, apontar as mesmas picaretagens e redundar nos protestos. Também é prudente não ir à rua, com um vírus ameaçador como o da Covid circulando livremente pelo Brasil. Mas nem o cansaço nem a prudência deveriam resultar em resignação. Estaria a maioria de 2016, hoje silenciosa, resignada? Essa impassibilidade pode se traduzir em duas formas perigosas nas próximas eleições, sem que a ordem implique hierarquia em matéria de risco: a primeira delas é a conclusão de que Lula é a opção mais sensata depois de quatro anos de selvageria. Lula também tinha o mesmo Roberto Jefferson e tudo o que ele representa ao lado dele. Lula também tem uma visão autoritária, como expressaram os anos em que permaneceu no poder e o programa de governo do seu poste. Lula também deu no que deu, ao operar desvio de dinheiro público no varejo e no atacado. A outra forma perigosa é reprisar 2018 e votar em Bolsonaro, a fim de evitar Lula, fechando os olhos para as ignomínias cometidas por ele, para a sua sociopatia, para o aparelhamento das instituições na defesa da sua família e para as alianças com os corruptos especializados em operar no varejo — e que fatalmente pularão para o atacado.
Lula e Bolsonaro são duas faces de uma mesma podridão sistêmica. Assistir a Lula pregando por democracia e honestidade na paradigmática avenida Paulista será assistir igualmente a um espetáculo protagonizado num universo paralelo, só mudarão as cores. Não nos resignemos com essa gente. É preciso sanear a democracia brasileira. Trata-se de tarefa difícil — eu mesmo, aqui nesta trincheira, não consigo ver a paisagem clareada neste momento –, mas não é impossível. A democracia costuma se comportar como uma floresta que, depois de devastada, regenera-se com rapidez surpreendente mesmo para os especialistas. O que estava previsto para renascer em décadas recupera-se em questão de meses.
Apostemos na democracia, na sua capacidade de regeneração, e escapemos do universo paralelo de Bolsonaro e Lula.
Recolhidos e cansados, sim; resignados, nunca.
Foi como se descortinássemos um universo paralelo: o verde-amarelo de 2016 agora é do bolsonarismo; no alto da caminhão de som, Roberto Jefferson no lugar de personalidades respeitáveis; ao invés de exigência de democracia e fortalecimento das instituições, gritos por intervenção militar e fechamento do STF.
Por ocasião das manifestações de 2016, havia um grupo de aloprados com as mesmas bandeiras, ainda sem Bolsonaro, que ocupava uma pequena porção da avenida, pedindo absurdos idênticos: intervenção militar e correlatos. Não chegava a um quarteirão. O número dessas pessoas não aumentou tanto assim desde então. O problema é que, agora, eles são os únicos a ir para a rua. Está certo que, ao contrário dos demais, esse pessoal que aplaudiu Roberto Jefferson se comporta como aliado do vírus da Covid. Mas é de se perguntar se a maioria hoje silenciosa só está recolhida por causa da pandemia ou se apresente mais do que cansada diante das sucessivas derrotas da Lava Jato em todas as frentes e do espetáculo estarrecedor que se desenrola sem freios em Brasília. Essa maioria hoje silenciosa não quer fechar instituição nenhuma e não quer saber de militar tomando poder. Continua a querer manutenção das liberdades democráticas, instituições que funcionam, honradez e honestidade.
É compreensível o cansaço de repetir as demandas, apontar as mesmas picaretagens e redundar nos protestos. Também é prudente não ir à rua, com um vírus ameaçador como o da Covid circulando livremente pelo Brasil. Mas nem o cansaço nem a prudência deveriam resultar em resignação. Estaria a maioria de 2016, hoje silenciosa, resignada? Essa impassibilidade pode se traduzir em duas formas perigosas nas próximas eleições, sem que a ordem implique hierarquia em matéria de risco: a primeira delas é a conclusão de que Lula é a opção mais sensata depois de quatro anos de selvageria. Lula também tinha o mesmo Roberto Jefferson e tudo o que ele representa ao lado dele. Lula também tem uma visão autoritária, como expressaram os anos em que permaneceu no poder e o programa de governo do seu poste. Lula também deu no que deu, ao operar desvio de dinheiro público no varejo e no atacado. A outra forma perigosa é reprisar 2018 e votar em Bolsonaro, a fim de evitar Lula, fechando os olhos para as ignomínias cometidas por ele, para a sua sociopatia, para o aparelhamento das instituições na defesa da sua família e para as alianças com os corruptos especializados em operar no varejo — e que fatalmente pularão para o atacado.
Lula e Bolsonaro são duas faces de uma mesma podridão sistêmica. Assistir a Lula pregando por democracia e honestidade na paradigmática avenida Paulista será assistir igualmente a um espetáculo protagonizado num universo paralelo, só mudarão as cores. Não nos resignemos com essa gente. É preciso sanear a democracia brasileira. Trata-se de tarefa difícil — eu mesmo, aqui nesta trincheira, não consigo ver a paisagem clareada neste momento –, mas não é impossível. A democracia costuma se comportar como uma floresta que, depois de devastada, regenera-se com rapidez surpreendente mesmo para os especialistas. O que estava previsto para renascer em décadas recupera-se em questão de meses.
Apostemos na democracia, na sua capacidade de regeneração, e escapemos do universo paralelo de Bolsonaro e Lula.
Recolhidos e cansados, sim; resignados, nunca.
O exército de 5,9 milhões de 'desempregados' de fora do índice oficial
De um ano para cá, mais de um milhão de brasileiros desistiram de procurar emprego. Alguns porque buscavam há meses, sem sucesso. Outros, porque simplesmente não veem novas vagas sendo abertas na cidade onde moram.
As razões são várias.
Apesar de estarem disponíveis para trabalhar, essas pessoas não entram no cálculo da taxa de desemprego. Para ser considerado desempregado, pelos parâmetros internacionais de estatística, é preciso estar ativamente buscando uma vaga.
Isso não significa necessariamente, contudo, que a situação financeira dos chamados desalentados seja mais confortável do que a dos que estão oficialmente desempregados, os 14,4 milhões contabilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
De acordo com os dados divulgados na sexta, os desalentados somaram 5,9 milhões em fevereiro, recorde na série histórica da Pnad Contínua, que começa em 2012. O levantamento é feito em trimestres móveis - o dado de fevereiro, portanto, é uma média composta com dezembro e janeiro.
O número é 26,8% maior do que o registrado um ano atrás, no trimestre móvel encerrado em fevereiro de 2020, o que significa um aumento de 1,259 milhão de pessoas.
Este foi o oitavo mês consecutivo em que o desalento cresceu a uma velocidade superior a 20% no país.
"Esse aumento tem um motivo bem claro, que é a questão da pandemia. Tem muita gente com medo [de ficar doente], muita gente que sabe que as atividades estão fechando, que por isso acaba não saindo para procurar emprego", diz o economista Bruno Ottoni, pesquisador do IDados e do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV).
Essa dinâmica tem um impacto indireto importante sobre a própria taxa de desemprego, já que as pessoas que estão fora da força de trabalho não entram na conta. A estimativa de Ottoni para o dado divulgado nesta sexta, por exemplo, era desemprego de 14,8%, 0,4 ponto percentual acima do que foi efetivamente registrado, 14,4%.
"O dado do desalento surpreendeu. Eu esperava que mais gente tivesse voltado ao mercado de trabalho em fevereiro - a pandemia ainda não tinha piorado como em março, quando vieram as medidas mais restritivas", pontua o economista.
O desalento reduz a taxa de participação no mercado de trabalho, que é a relação entre a quantidade de pessoas que estão de fato empregadas ou à procura pelo total de pessoas em idade para trabalhar - uma boa medida para enxergar o chamado "desemprego oculto".
Em fevereiro, a taxa de participação foi de 56,8%, 4,9 pontos percentuais a menos do que o registrado no mesmo período do ano passado, 61%.
Caso o percentual tivesse se mantido constante, conforme calcula o economista Alberto Ramos, Diretor de Pesquisa Econômica para a América Latina do Goldman Sachs, a taxa de desemprego teria atingido expressivos 21,2% em fevereiro.
Essa discrepância sinaliza que o desemprego tem um espaço mais restrito para melhora à medida que a economia tiver espaço para crescer.
"A taxa pode não reduzir de forma significativa quando a epidemia for controlada, à medida que os desalentados voltem a procurar emprego e retornem à força de trabalho em ritmo mais acelerado do que a criação de novas vagas", escreveu o economista em relatório enviado a clientes.
Além do desalento, a Pnad Contínua também acompanha o que chama de subocupação: aqueles que trabalharam no mês de referência, mas menos horas do que gostariam ou precisariam - é o trabalhador que faz um bico quando aparece, por exemplo.
Em fevereiro, 6,9 milhões de pessoas estavam nessa situação.
A pesquisa agrega esses e outros grupos na taxa de subutilização da força de trabalho, uma medida mais ampla e, por isso, um bom retrato dos problemas do mercado de trabalho que vão além da taxa de desemprego.
No trimestre móvel encerrado em fevereiro, o volume de pessoas subutilizadas no Brasil chegou a 32,6 milhões. Nesse total estão incluídos os 14,4 milhões oficialmente desempregados, os 5,9 milhões de desalentados, os 6,9 milhões subocupados e outros 5,4 milhões que compõem a força de trabalho potencial junto com os desalentados.
Ottoni batizou esse último grupo de "indisponíveis". São aqueles que gostariam de trabalhar e chegaram a procurar, mas não podiam no período de referência da pesquisa. Aí entram, por exemplo, mulheres que tiveram filhos e têm de ficar em casa porque não há disponibilidade de creches na região em que moram.
Para o economista, a ampla vacinação é condição fundamental para a recuperação da economia brasileira e, por consequência, do mercado de trabalho.
É o ritmo de imunização que vai ditar a velocidade de recuperação.
A expectativa, diz ele, é que o desemprego aumente um pouco nos próximos meses, com o retorno dos desalentados à força de trabalho. A partir do segundo semestre, à medida que a economia conseguir gerar mais vagas para absorver os trabalhadores disponíveis, o indicador deve começar a melhorar.
As razões são várias.
Apesar de estarem disponíveis para trabalhar, essas pessoas não entram no cálculo da taxa de desemprego. Para ser considerado desempregado, pelos parâmetros internacionais de estatística, é preciso estar ativamente buscando uma vaga.
Isso não significa necessariamente, contudo, que a situação financeira dos chamados desalentados seja mais confortável do que a dos que estão oficialmente desempregados, os 14,4 milhões contabilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
De acordo com os dados divulgados na sexta, os desalentados somaram 5,9 milhões em fevereiro, recorde na série histórica da Pnad Contínua, que começa em 2012. O levantamento é feito em trimestres móveis - o dado de fevereiro, portanto, é uma média composta com dezembro e janeiro.
O número é 26,8% maior do que o registrado um ano atrás, no trimestre móvel encerrado em fevereiro de 2020, o que significa um aumento de 1,259 milhão de pessoas.
Este foi o oitavo mês consecutivo em que o desalento cresceu a uma velocidade superior a 20% no país.
"Esse aumento tem um motivo bem claro, que é a questão da pandemia. Tem muita gente com medo [de ficar doente], muita gente que sabe que as atividades estão fechando, que por isso acaba não saindo para procurar emprego", diz o economista Bruno Ottoni, pesquisador do IDados e do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV).
Essa dinâmica tem um impacto indireto importante sobre a própria taxa de desemprego, já que as pessoas que estão fora da força de trabalho não entram na conta. A estimativa de Ottoni para o dado divulgado nesta sexta, por exemplo, era desemprego de 14,8%, 0,4 ponto percentual acima do que foi efetivamente registrado, 14,4%.
"O dado do desalento surpreendeu. Eu esperava que mais gente tivesse voltado ao mercado de trabalho em fevereiro - a pandemia ainda não tinha piorado como em março, quando vieram as medidas mais restritivas", pontua o economista.
O desalento reduz a taxa de participação no mercado de trabalho, que é a relação entre a quantidade de pessoas que estão de fato empregadas ou à procura pelo total de pessoas em idade para trabalhar - uma boa medida para enxergar o chamado "desemprego oculto".
Em fevereiro, a taxa de participação foi de 56,8%, 4,9 pontos percentuais a menos do que o registrado no mesmo período do ano passado, 61%.
Caso o percentual tivesse se mantido constante, conforme calcula o economista Alberto Ramos, Diretor de Pesquisa Econômica para a América Latina do Goldman Sachs, a taxa de desemprego teria atingido expressivos 21,2% em fevereiro.
Essa discrepância sinaliza que o desemprego tem um espaço mais restrito para melhora à medida que a economia tiver espaço para crescer.
"A taxa pode não reduzir de forma significativa quando a epidemia for controlada, à medida que os desalentados voltem a procurar emprego e retornem à força de trabalho em ritmo mais acelerado do que a criação de novas vagas", escreveu o economista em relatório enviado a clientes.
Além do desalento, a Pnad Contínua também acompanha o que chama de subocupação: aqueles que trabalharam no mês de referência, mas menos horas do que gostariam ou precisariam - é o trabalhador que faz um bico quando aparece, por exemplo.
Em fevereiro, 6,9 milhões de pessoas estavam nessa situação.
A pesquisa agrega esses e outros grupos na taxa de subutilização da força de trabalho, uma medida mais ampla e, por isso, um bom retrato dos problemas do mercado de trabalho que vão além da taxa de desemprego.
No trimestre móvel encerrado em fevereiro, o volume de pessoas subutilizadas no Brasil chegou a 32,6 milhões. Nesse total estão incluídos os 14,4 milhões oficialmente desempregados, os 5,9 milhões de desalentados, os 6,9 milhões subocupados e outros 5,4 milhões que compõem a força de trabalho potencial junto com os desalentados.
Ottoni batizou esse último grupo de "indisponíveis". São aqueles que gostariam de trabalhar e chegaram a procurar, mas não podiam no período de referência da pesquisa. Aí entram, por exemplo, mulheres que tiveram filhos e têm de ficar em casa porque não há disponibilidade de creches na região em que moram.
Para o economista, a ampla vacinação é condição fundamental para a recuperação da economia brasileira e, por consequência, do mercado de trabalho.
É o ritmo de imunização que vai ditar a velocidade de recuperação.
A expectativa, diz ele, é que o desemprego aumente um pouco nos próximos meses, com o retorno dos desalentados à força de trabalho. A partir do segundo semestre, à medida que a economia conseguir gerar mais vagas para absorver os trabalhadores disponíveis, o indicador deve começar a melhorar.
O insuportável estado vulgar
O que não podia suportar era aquele estado vulgar das coisas, aquela sufocante apatia que lhes dava um ar de seres que se consomem num lento aniquilamento. Por momentos, parecia esquecer-se de tudo. Mas eis que de repente, a um golpe ou a um ruído, a angústia voltava a obsedar-lhe a alma. Ele não tinha sentidos senão para sofrer e desejar inutilmente.Lúcio Cardoso
Almoço das 400 mil mortes
Tá cada vez mais down na high society. Como canta Elis Regina, a crise já está virando zona. Deve dar indigestão sentar-se ao lado do homem que regurgita 400 mil mortes por Covid-19. Deveria dar, ao menos. Crime de lesa-humanidade não compõe boa entrada para o almoço. Ao andar de cima, indigestão é para os fracos. É para o filho do porteiro que estudou na universidade pelo Fies, pensam. Para quem está acostumado a lecionar economia no Chile de Pinochet, os fracos devem ser os outros.
E daí? A mesa está posta, o vinho servido, a máscara descartada, a branquitude presente. Por que não desfrutar do almoço enquanto o resto do país volta ao mapa mundial da fome e, se não fossem campanhas como a Tem Gente com Fome e o auxílio que o governo não queria, seria ainda pior?
Enfileiram-se as empresas com hashtag vidas negras importam. Importam sim, dirão, exceto as 400 mil vidas que perdemos por inação e ação de quem se assenta ao seu lado na mesa.
De entrada, serviremos uma porção de ar. Ar puro. O mesmo ar que faltou em Manaus. O mesmo ar de cuja escassez o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, soube ao menos quatro dias antes do colapso no Amazonas. Em 11 de janeiro, Pazuello relatou a conversa que teve com a cunhada cujo irmão estava “sem oxigênio nem para passar o dia”: “O que você vai fazer?”, ela perguntou. Resposta do ex-ministro: “Nada. Você e todo mundo vão esperar chegar o oxigênio e ser distribuído. Vamos com calma.” Em homenagem a todos que padeceram sem ar, a entrada no almoço de hoje com o presidente será: ar. Respirem sem parcimônia!
Óbvio, a bebida não pode faltar. Serviremos água e vinho. Água, claro, é potável. Diferente da água que circula no estado do Rio de Janeiro, apesar do martelo no leilão e o sorriso para foto. Em homenagem ao veto presidencial de 8 de julho de 2020, serviremos a água potável que o governo federal negou fornecer, no auge da pandemia, a indígenas, quilombolas e povos tradicionais em extrema situação de vulnerabilidade. Serviremos água cristalina diretamente tirada da boca de indígenas. Aos espíritos mais festivos, dispostos a celebrar o feito macabro de 400 mil mortes por Covid-19, serviremos vinho.
Serviremos o cálice do sangue de todas as mortes que poderiam ter sido evitadas e não foram.
De prato principal, serviremos cloroquina, azitromicina e ivermectina. Mais precisamente, serviremos 31 milhões de comprimidos sem eficácia contra a Covid-19, a mesma quantidade enviada pelo governo federal aos estados. Gastamos R$ 126,5 milhões com esse prato principal. Espero que apreciem!
Esperamos também que não morram ao inalar cloroquina nebulizada, como aconteceu com uma paciente em Manaus em 2 de março, após médicos aplicarem esta terapia ineficaz, mas difundida pelo homem que se assenta ao seu lado. Teremos, ademais, um prato surpresa. Sigiloso. Como também são sigilosos os gastos no valor de R$ 150 mil do Exército brasileiro na pandemia, autorizados em fevereiro pelo presidente.
De sobremesa, teremos crimes contra a humanidade e genocídio. Mas não se preocupe, os outros que sentirão o amargo. Os senhores e as senhoras sentirão apenas a doçura do leite condensado, muito leite condensado. Sentirão apenas o frescor da fila VIP da vacina em Miami, a brisa dos jatinhos sobrevoando Trancoso, a água no rosto durante o passeio de jet-ski nas férias pagas com dinheiro público.
Ao final, tiraremos uma foto. Uma foto alegre, onde possamos ver todos os seus dentes e peles alvas. Num país onde não há justiça, o que nos resta é a memória: uma forma de eternizar, antes que esta nos falhe novamente, quem com a morte se assentou na mesa dos hipócritas.
E daí? A mesa está posta, o vinho servido, a máscara descartada, a branquitude presente. Por que não desfrutar do almoço enquanto o resto do país volta ao mapa mundial da fome e, se não fossem campanhas como a Tem Gente com Fome e o auxílio que o governo não queria, seria ainda pior?
Enfileiram-se as empresas com hashtag vidas negras importam. Importam sim, dirão, exceto as 400 mil vidas que perdemos por inação e ação de quem se assenta ao seu lado na mesa.
De entrada, serviremos uma porção de ar. Ar puro. O mesmo ar que faltou em Manaus. O mesmo ar de cuja escassez o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, soube ao menos quatro dias antes do colapso no Amazonas. Em 11 de janeiro, Pazuello relatou a conversa que teve com a cunhada cujo irmão estava “sem oxigênio nem para passar o dia”: “O que você vai fazer?”, ela perguntou. Resposta do ex-ministro: “Nada. Você e todo mundo vão esperar chegar o oxigênio e ser distribuído. Vamos com calma.” Em homenagem a todos que padeceram sem ar, a entrada no almoço de hoje com o presidente será: ar. Respirem sem parcimônia!
Óbvio, a bebida não pode faltar. Serviremos água e vinho. Água, claro, é potável. Diferente da água que circula no estado do Rio de Janeiro, apesar do martelo no leilão e o sorriso para foto. Em homenagem ao veto presidencial de 8 de julho de 2020, serviremos a água potável que o governo federal negou fornecer, no auge da pandemia, a indígenas, quilombolas e povos tradicionais em extrema situação de vulnerabilidade. Serviremos água cristalina diretamente tirada da boca de indígenas. Aos espíritos mais festivos, dispostos a celebrar o feito macabro de 400 mil mortes por Covid-19, serviremos vinho.
Serviremos o cálice do sangue de todas as mortes que poderiam ter sido evitadas e não foram.
De prato principal, serviremos cloroquina, azitromicina e ivermectina. Mais precisamente, serviremos 31 milhões de comprimidos sem eficácia contra a Covid-19, a mesma quantidade enviada pelo governo federal aos estados. Gastamos R$ 126,5 milhões com esse prato principal. Espero que apreciem!
Esperamos também que não morram ao inalar cloroquina nebulizada, como aconteceu com uma paciente em Manaus em 2 de março, após médicos aplicarem esta terapia ineficaz, mas difundida pelo homem que se assenta ao seu lado. Teremos, ademais, um prato surpresa. Sigiloso. Como também são sigilosos os gastos no valor de R$ 150 mil do Exército brasileiro na pandemia, autorizados em fevereiro pelo presidente.
De sobremesa, teremos crimes contra a humanidade e genocídio. Mas não se preocupe, os outros que sentirão o amargo. Os senhores e as senhoras sentirão apenas a doçura do leite condensado, muito leite condensado. Sentirão apenas o frescor da fila VIP da vacina em Miami, a brisa dos jatinhos sobrevoando Trancoso, a água no rosto durante o passeio de jet-ski nas férias pagas com dinheiro público.
Ao final, tiraremos uma foto. Uma foto alegre, onde possamos ver todos os seus dentes e peles alvas. Num país onde não há justiça, o que nos resta é a memória: uma forma de eternizar, antes que esta nos falhe novamente, quem com a morte se assentou na mesa dos hipócritas.
E por falar em utopia
Ao participar há dias de um debate sobre utopia, não foi difícil constatar que estamos vivendo justamente o contrário, uma distopia como nunca vivemos: um acúmulo de crises — sanitária, política, econômica, ética, social, ambiental. Por isso, para muitos, a utopia do século XXI é a sustentabilidade, isto é, o equilíbrio entre progresso, bem-estar social e conservação dos recursos naturais. E, se não o fim, pelo menos a redução das distâncias obscenas entre riqueza e pobreza.
Aliás, a utopia sempre foi, digamos, meio utópica, desde o começo. Thomas Morus, o filósofo autor do livro “Utopia”, que em grego quer dizer “não lugar”, “lugar que não existe”, apresentava em 1516 o cenário de uma sociedade em que todos seriam felizes, ninguém era dono de nada, todos eram ricos. Porém o criador desse paraíso utópico morreu infeliz. Preso na Torre de Londres, foi executado por ordem de Henrique VIII. Quer dizer: o criador da utopia teve um fim distópico.
O Brasil tinha 3 anos de idade quando entrou para a história da utopia. Em 1503, o navegador italiano Américo Vespúcio exclamou: “Aqui é o paraíso”. Era a Ilha de Fernando de Noronha, que, ao que tudo indica, inspirou Morus a escrever seu famoso livro. De um jeito ou de outro, experimentamos sempre o sentimento da utopia. Seja olhando para a frente, como “país do futuro” (por sinal, Stefan Zweig suicidou-se aqui, ele e a mulher), ou para trás, com nostalgia de anos dourados, em geral idealizados. Não se pode esquecer que a lenda situava o Eldorado, o país do ouro, entre o Brasil e a Venezuela. Estamos sempre esperando alcançar algo que nunca chega ou que já passou.
“Utopia selvagem”, de Darcy Ribeiro, sonha substituir o país oficial centrado na figura do branco, do índio e do negro por um povo novo, miscigenado —“um povo para ser a mais bela nação da Terra”. O antropólogo viveu durante dez anos entre as tribos dos kadiwéus, terenas, kaiowás e bororos.
Por se tratar do terreno que envolve a imaginação e o sonho, a utopia está sempre presente nele de alguma maneira, como inspiração ou como referência. Um dos poemas mais populares de Manuel Bandeira é “Vou-me embora pra Pasárgada”, o lugar ideal onde o poeta quer se refugiar: “Vou-me embora pra Pasárgada/ Lá sou amigo do rei/ Lá tenho a mulher que eu quero/ Na cama que escolherei”. Noutra versão, o compositor e poeta Dorival Caymmi canta: “Eu vou pra Maracangalha, eu vou (...) Se Anália não quiser ir , eu vou só...”.
O professor Francisco Ortega, estudioso do fenômeno médico-fisicalista, tem uma tese original: “Não podendo mudar o mundo, tentamos mudar o corpo, o único espaço que restou à utopia”. Seriam as utopias corporais substituindo as sociais.
Essa “ideologia” do corpo sarado, siliconado cria a obsessão por intervenções como bodybuilding, cuting, tatuagem e piercing —na língua, no nariz, no bico dos seios e até nos lugares mais recônditos da mulher e do homem. A mais comum dessas mudanças consiste nas cirurgias plásticas.
Mas nossa grande utopia mesmo é o fim da pandemia e a comprovação pela CPI da Covid dos responsáveis pelo genocídio de mais de 400 mil pessoas em pouco mais de um ano no Brasil.
Aliás, a utopia sempre foi, digamos, meio utópica, desde o começo. Thomas Morus, o filósofo autor do livro “Utopia”, que em grego quer dizer “não lugar”, “lugar que não existe”, apresentava em 1516 o cenário de uma sociedade em que todos seriam felizes, ninguém era dono de nada, todos eram ricos. Porém o criador desse paraíso utópico morreu infeliz. Preso na Torre de Londres, foi executado por ordem de Henrique VIII. Quer dizer: o criador da utopia teve um fim distópico.
O Brasil tinha 3 anos de idade quando entrou para a história da utopia. Em 1503, o navegador italiano Américo Vespúcio exclamou: “Aqui é o paraíso”. Era a Ilha de Fernando de Noronha, que, ao que tudo indica, inspirou Morus a escrever seu famoso livro. De um jeito ou de outro, experimentamos sempre o sentimento da utopia. Seja olhando para a frente, como “país do futuro” (por sinal, Stefan Zweig suicidou-se aqui, ele e a mulher), ou para trás, com nostalgia de anos dourados, em geral idealizados. Não se pode esquecer que a lenda situava o Eldorado, o país do ouro, entre o Brasil e a Venezuela. Estamos sempre esperando alcançar algo que nunca chega ou que já passou.
“Utopia selvagem”, de Darcy Ribeiro, sonha substituir o país oficial centrado na figura do branco, do índio e do negro por um povo novo, miscigenado —“um povo para ser a mais bela nação da Terra”. O antropólogo viveu durante dez anos entre as tribos dos kadiwéus, terenas, kaiowás e bororos.
Por se tratar do terreno que envolve a imaginação e o sonho, a utopia está sempre presente nele de alguma maneira, como inspiração ou como referência. Um dos poemas mais populares de Manuel Bandeira é “Vou-me embora pra Pasárgada”, o lugar ideal onde o poeta quer se refugiar: “Vou-me embora pra Pasárgada/ Lá sou amigo do rei/ Lá tenho a mulher que eu quero/ Na cama que escolherei”. Noutra versão, o compositor e poeta Dorival Caymmi canta: “Eu vou pra Maracangalha, eu vou (...) Se Anália não quiser ir , eu vou só...”.
O professor Francisco Ortega, estudioso do fenômeno médico-fisicalista, tem uma tese original: “Não podendo mudar o mundo, tentamos mudar o corpo, o único espaço que restou à utopia”. Seriam as utopias corporais substituindo as sociais.
Essa “ideologia” do corpo sarado, siliconado cria a obsessão por intervenções como bodybuilding, cuting, tatuagem e piercing —na língua, no nariz, no bico dos seios e até nos lugares mais recônditos da mulher e do homem. A mais comum dessas mudanças consiste nas cirurgias plásticas.
Mas nossa grande utopia mesmo é o fim da pandemia e a comprovação pela CPI da Covid dos responsáveis pelo genocídio de mais de 400 mil pessoas em pouco mais de um ano no Brasil.
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