segunda-feira, 21 de julho de 2025

A Estátua da Liberdade está envergonhada

As nações se distinguem e se identificam pela adoção de diversos símbolos. Não importam a dimensão territorial ou tamanho de PIB. A identidade nacional está, orgulhosamente, inscrita nas bandeiras, hinos e rituais que atravessam gerações formando uma unidade indissolúvel – a nação – fortalecida por uma vontade contínua de pertencimento, “um plebiscito diário”, na inspirada definição do historiador francês, Ernest Renan (1823-1892), a quem Joaquim Nabuco dedicou o capítulo VII do livro de memórias Minha Formação.

No caso de monumentos ou estátuas, elas revelam muito mais do está diante dos olhos. Puxam pela imaginação, provocam ressonâncias, carregadas de dinamismo e afetividade. Vai mais além quando ultrapassam o intelecto e o interesse estético: fazem a vida vibrar e se revelam como forças unificadoras.

Neste sentido, três ícones merecem alguns comentários. O primeiro na ordem dos sentimentos é o Cristo Redentor, construído no cimo do morro do Corcovado. Mede 709 metros acima do nível do mar é a mais alta estátua do mundo no estilo Art Déco com 38 metros de altura, 28 de envergadura 1145 toneladas. O engenheiro Heitor da Silva Costa projetou a estátua, esculpida pelo franco-polonês Paul Landowski e o rosto criado pelo romeno Gheorghe Leonida. Os trabalhos duraram nove anos: início em 1922 e inaugurada em 12 de outubro de 1931, dia consagrado a Nossa Senhora Aparecida.

Contemplar o que seria e é um cartão postal transforma-se na beleza mágica e sentimento profundo do gesto de admiração e respeito. A estátua condensa a beleza oceânica e o horizonte verde-azul no abraço universal da paz e do acolhimento dos que aqui vivem e dos que vieram na busca de novos caminhos.


E o que dizer da Torre Eiffel, marco do centenário da Revolução Francesa, inaugurada na Exposição Universal de 1889, como estrutura temporária, prevista para ser desmontada após vinte anos, alvo que foi das severas críticas de artistas e intelectuais parisienses? Ora, a Torre feita de ferro forjado, pesando 10 mil toneladas, serviu também para comprovar sua resistência ao vento, tese defendida pelo seu projetista Alexandre Gustavo Eiffel. Mais tarde, por ocasião da Segunda Guerra Mundial, Hitler ordenou que fosse demolida. Os franceses destruíram os elevadores. Restou-lhe profanar a soberania francesa com a suástica nazista, banida pela bandeira tricolor na celebração da resistência e da vitória dos aliados.

O que comove e sensibiliza na arte é a força do espanto, um estalo de admiração e surpresa que despertam curiosidades, estimulam dúvidas e buscam respostas que não existem. Mas é um exercício saudável refletir e especular. É o que ocorre quando nos deparamos com monumentos já referidos e que se completam no encontro com a Estátua de Liberdade, originalmente, chamada “Liberdade Iluminando o Mundo”.

Na raiz, estavam princípios e ideias que deveriam ser comemoradas e cultivadas como um destino histórico da humanidade. Para dar forma e enfatizar a permanência e a universalidade do conjunto de valores, entre eles, o valor supremo da liberdade. Em 1886, o jurista e político francês Edouard René Laboulaye propôs a criação de um monumento que celebrasse a amizade franco-americana e os ideais republicanos da democracia. A concepção foi de Fréderic Auguste Bartholdi e a estrutura interna de Gustavo Eiffel, o mesmo engenheiro da Torre Eiffel. A inauguração ocorreu em 28 de outubro de 1886.

A Estátua da liberdade exala símbolos. Ela representa a deusa romana Libertas que personifica a autonomia, a independência e todas as faces da libertação humana. A tocha na mão direita remete ao caminho iluminado e a esperança. Na mão esquerda segura a tábua com a inscrição de 04 de julho de 1776 data da Declaração de Independência dos EUA. Nos pés, as correntes quebradas são os grilhões da opressão e da tirania. Durante o período de forte imigração (1892 a 1954), a visão da Estátua apontava para uma vida nova, um ícone de boas-vindas ao mito do “sonho americano”, na direção de sete pontas, os sete mares e os sete continentes, representando uma cultura de amplitude universal.

Enquanto isso, o Presidente Trump, democraticamente eleito, usa as instituições que asseguram a estabilidade política para destruir a própria democracia e, se necessário, a força como pressuposto para a paz. Embora rompido, Trump ouve os conselhos do ideólogo da extrema direita e esperto homem de negócios, Steve Bannon: “A verdadeira oposição é a mídia. A forma de lidar com ela é entupindo a zona de merda”.

Infelizmente este é o nível dos atores que emporcalham a política. Tentam colocar em xeque a democracia. A democracia não é um ponto de chegada. É algo móvel. Um processo. É um truísmo dizer que nenhum regime, chega à democracia plena. Não basta se adequar às mudanças históricas. É fundamental preservar os princípios fundadores e operar aperfeiçoamentos. O desencanto com a democracia representativa é global. Mas não se pode perder de vista que padecemos de fatores endógenos, entre eles, a confiança que mina as estruturas institucionais, as relações pessoais e gera o espaço por onde prospera a erva daninha dos apelos populistas.

Quanto à economia, os estragos estão sendo contabilizados e serão enfrentados por um país unido e utilizando os caminhos da diplomacia política. Tem razão a lucidez de Edmar Bacha: “Em vez de Trump procurar acordos comerciais para o país, age como um ‘valentão’ dando tiro em bar. Mas o mundo vai sobreviver a ele”.

A crônica de um naufrágio anunciado

De tempos em tempos, a realidade nos oferece cenas tão emblemáticas que só a literatura, com seu panteão de personagens, parece ser capaz de explicá-la. E esse é o caso do Capitão Ahab, protagonista do romance Moby Dick. Na obra, publicada por Herman Melville em 1851, Ahab encarna a figura do líder obcecado por um inimigo simbólico — a baleia branca — cujo enfrentamento não é racional, mas movido por ressentimentos e desejos de vingança. Na sua cruzada pessoal, o personagem ignora alertas em sacrifício do pragmatismo e conduz a tripulação do navio Pequod ao naufrágio.

O arquétipo literário proposto por Melville pode nos ajudar a explicar o período de incertezas políticas que vivenciamos hoje, notadamente a situação do bolsonarismo no Brasil e do trumpismo nos EUA, com os quais Ahab compartilha traços de irracionalidade e impulsividade autodestrutiva, para dizer o mínimo. Tanto aqui quanto lá, tais grupos têm mantido uma lógica de confronto contínuo contra inimigos difusos — o “sistema”, o Judiciário, a imprensa, o “globalismo”, etc. —, numa estratégia esquizofrênica que dispensa a construção de alternativas viáveis para a própria sobrevivência política e insiste na mobilização pelo ressentimento. E o episódio da imposição de tarifas comerciais por parte do governo americano sobre produtos brasileiros oferece um exemplo concreto disso.

Conforme visto no dia 9, Donald Trump anunciou tarifas de 50% sobre todas as exportações do Brasil aos EUA a partir de 1º de agosto de 2025. A decisão, comunicada por meio de uma carta pessoal endereçada ao presidente Lula (PT), chocou os analistas e foi classificada como punitiva, ultrapassando qualquer expectativa do mercado. O Brasil, aliás, foi tratado de forma desproporcional em relação a outros países taxados, como Argélia, Iraque, Líbia e Sri Lanka (30%), Brunei e Moldávia (25%) e Filipinas (20%). Enquanto o teor da carta escancarou a motivação política deste movimento, ao citar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), criticar o Supremo Tribunal Federal (STF) e avançar sobre a manutenção da “liberdade de expressão” e a regulação das plataformas digitais.


Ainda que não seja a primeira vez que Washington tenha utilizado tal estratégia enquanto instrumento geopolítico, a situação revela uma inversão do espírito que norteou a criação da ordem comercial liberal pós-Segunda Guerra — uma ordem que, como lembra o Nobel Paul Krugman, via no comércio internacional não apenas ganhos econômicos, mas uma ferramenta de promoção da paz e de fortalecimento da democracia. Da mesma forma, torna-se evidente a falta de uma lógica econômica por trás dessas medidas, considerando que os americanos mantêm um superávit na balança comercial com o nosso país, o que inviabiliza justificativas para a adoção de tarifas dessa natureza.

De acordo com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, a relação comercial entre Brasil e EUA é deficitária para o Estado brasileiro desde 2009. Segundo o presidente Lula, em entrevista à BBC, o déficit acumulado dos últimos 15 anos já ultrapassa US$400 bilhões. Portanto, as “graves injustiças do regime atual”, nos termos da carta enviada por Trump, são evidentes inverdades para quem lê os números — e verdadeiras inevidências para quem acredita, talvez demais, em bravatas tarifárias.

Além disso, apenas para título de ilustração, cerca de 30% do café e 50% do suco de laranja importados pelos EUA vêm do Brasil, conforme dados divulgados pela Reuters. O que significa que, sob à sombra da diminuição no fluxo de venda, os roasters norte-americanos não conseguiriam absorver o aumento dos custos internos. Já no campo do alumínio e do aço, segundo a Intellinews, uma tarifa de 25% sobre as exportações brasileiras seria responsável por uma queda estimada de 11% na venda desses insumos, o que, em termos de prejuízo, bateria a casa dos US$1,5 bilhão.

No entanto, um detalhe curioso — para não dizer irônico — é que os setores atingidos no Brasil estão sediados justamente em redutos bolsonaristas: Minas Gerais e São Paulo. Estados governados por figuras próximas ao ex-presidente — Romeu Zema (Novo) e Tarcísio de Freitas (Republicanos) —, e que agora poderão experimentar interrupções na produção, demissões em massa e perda de arrecadação. Aliás, o possível impacto inflacionário, causado pelas pressões nas cadeias de transmissão, só não é mais instigante do que o papel de Jair Bolsonaro nessa história. Isso porque, longe de ser protagonista, o ex-presidente tornou-se um peão mal posicionado no tabuleiro geopolítico de Washington, algo claro no final da carta de Trump, quando o republicado diz que:

“[…] Se o senhor [Lula] desejar abrir seus mercados comerciais, até agora fechados, para os Estados Unidos e eliminar suas tarifas, políticas não tarifárias e barreiras comerciais, nós poderemos, talvez, considerar um ajuste nesta carta […] O senhor nunca ficará decepcionado com os Estados Unidos da América […]”. 

Em outras palavras, embora seja tentador acreditar na “reciprocidade amistosa” da relação Trump-Jair, conforme o bolsonarismo afirma incessantemente, a Casa Branca instrumentaliza Bolsonaro como pretexto para minar a coesão dos BRICS e enfraquecer as posições da China na América do Sul — esses sim, os reais alvos dos EUA. Não se pode ignorar que a recente carta foi divulgada apenas três dias após o encontro do grupo no Rio de Janeiro — evento que, entre outros temas sensíveis, incluiu a proposta de um sistema monetário mais autônomo em relação ao dólar, provocando reações imediatas. No dia 06 de julho, Trump ameaçou impor tarifas adicionais de 10% a qualquer país que se alinhasse “às políticas ‘antiamericanas’ dos BRICS”.

Para além das tensões diplomáticas, as posturas reativas da Casa Branca refletem as transformações do cenário internacional. Hoje o PIB dos BRICS já superou o do G7, por exemplo. Além disso, o populismo tarifário de manual, por assim dizer, não apenas testa os limites da paciência brasileira, como também busca intimidar os rivais norte-americanos. No entanto, esta guerra comercial pode se transformar num famoso “tiro no pé” ao produzir efeitos inversos aos esperados por Washington. Em visita recente ao Palácio da Alvorada, o Primeiro-Ministro indiano, Narendra Modi, foi recebido por Lula em uma reunião que selou parcerias estratégicas nas áreas de ciência e tecnologia, agricultura e combate ao terrorismo. Após o encontro, o presidente brasileiro reforçou o posicionamento do bloco: os BRICS não aceitam intromissões de países que se recusam a reconhecer a soberania de seus membros.

Logo, diante desse cenário, perguntamos: o que exatamente impediria os integrantes do grupo de se aproximarem ainda mais? Que garantias têm os EUA de que sua estratégia não acabará, na prática, incentivando o fortalecimento interno do bloco, inclusive no plano econômico, por meio de mecanismos de proteção mútua?

Não há dúvidas de que os EUA buscam utilizar a figura do bolsonarismo enquanto cortina de fumaça, mirando em quem realmente os incomoda: Pequim. Porém, ao fazer isso, Trump acaba por fragilizar economias aliadas e dar margem para a reconfiguração de discursos no campo adversário.

Lula, que até então vinha adotando um comportamento conciliador no plano internacional, encontra agora uma oportunidade interna: se posicionar como defensor da soberania diante de agressões externas, e articular um — já conhecido e eficaz — discurso de “unidade nacional” frente ao “inimigo estrangeiro”. Capitalizar a situação sobre um desgaste provocado por forças que, paradoxalmente, se dizem defensoras do Brasil, tende a render ganhos satisfatórios na arena doméstica, impulsionando a popularidade atual do presidente. Afinal, quem diria que Bolsonaro, mesmo temporariamente, reuniria do mesmo lado do “cabo de guerra” figuras de distintas pigmentações ideológicas, desde Guilherme Boulos (PSOL) e Luiz Felipe d’Ávila (Novo) ao Editorial do Estadão (10/07)?

Em entrevista à Record, o presidente Lula destacou que “brincar” com a taxação internacional só levaria a um jogo de retaliações sucessivas, um processo exponencial em que um aumento de 50% seria prontamente respondido com outro de igual magnitude. Um duelo que não termina por exaustão, quando um dos lados resolve, politicamente, recuar. E até aqui, não foi o Brasil quem piscou. Ao contrário do governo japonês, que, quando sujeito à mesma pressão protecionista, sinalizou rapidamente o interesse em renegociar, o Palácio do Planalto parece disposto a não ser o primeiro a ceder.

O tom adotado pelo governo deixa isso claro. Segundo o Ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, o Brasil deve ampliar sua presença em mercados alternativos, buscando reduzir a dependência de exportações aos EUA. O Ministério das Relações Exteriores, por sua vez, reforçou a postura ao passo que optou por devolver à Casa Branca a carta enviada por Trump, apontando seu tom ofensivo e listando as imprecisões factuais do discurso presidencial americano.

Trata-se de uma questão de tempo até que os representantes das federações agroindustriais brasileiras abandonem o silêncio e se juntem ao coro. Isso porque, no fim das contas, a situação das tarifas demonstrou que o nacionalismo performático do séquito bolsonarista não apenas prejudica o país, mas os interesses econômicos de quem antes apoiou Bolsonaro com poucas ressalvas. Mais do que isso, semelhante à tragédia de Ahab em Moby Dick, não parece haver ao lado do bolsonarismo a busca por vencer uma disputa, mas a necessidade de perpetuar uma luta como forma de manter a coesão do seu rebanho político.

Ou seja, o ex-presidente não está voltado para a construção de um projeto viável — nem mesmo para as elites —, mas sim para a sustentação de uma “guerra eterna” contra a “baleia branca”, onde a derrota importa menos do que o confronto. A ruína é uma consequência previsível, mas secundária.

À medida que se torna evidente a ausência de coerência entre as tarifas de 50% impostas pelos EUA e a realidade econômica — marcada pela integração de cadeias produtivas —, e ao passo que os mercados brasileiro e norte-americano começam a reagir, resta a pergunta: o que sobra para Donald Trump? Por enquanto, provavelmente, o velho e conhecido TACO (Trump Always Chickens Out). Afinal, duas semanas é tempo mais que suficiente para recuos — e não seria a primeira vez que o republicano voltaria atrás após bravatas desse tipo. E para o Brasil, o que sobra?

Embora o quadro não seja favorável, Brasília possui alguns trunfos, a começar pela capacidade de resiliência do Itamaraty em negociações bilaterais e institucionais. Sabemos que ações por violação de normas multilaterais na Organização Mundial do Comércio (OMC), buscando a restauração de cotas de aço e alumínio, por exemplo, podem parecer inócuas nesta altura do campeonato. Mas liderar esforços de diálogo em estruturas de governança pode ser uma boa alternativa, inclusive para justificar movimentos posteriores mais bruscos.

Acima de tudo, a diversificação de mercados visando o Leste e Sudeste Asiático, e a União Europeia, além do aprofundamento comercial intra-BRICS e o avanço de parcerias de infraestrutura e integração logística com a China nunca foi tão urgente. Em outras palavras, se o Governo agir com estratégia e cautela poderá transformar um choque adverso numa oportunidade histórica de reposicionamento do país no cenário global e, também, no fortalecimento de sua posição interna. Mas e quanto ao Bolsonaro? O que resta ao bolsonarismo?

Os paralelos com a jornada de Ahab, nessa situação, são pedagógicos e, da mesma forma que o destino do Capitão não foi resultante de uma força incontrolável — mas da decisão consciente de priorizar o conflito à sobrevivência coletiva —, ao bolsonarismo resta a mesma máxima que impera no romance de Melville: quando a irracionalidade substitui a razão, o naufrágio deixa de ser uma possibilidade e passa a ser apenas uma questão de tempo.

Geopolítica da loucura encenada

O imperador Calígula dizia ser um deus e conversar com a lua. Sanguinário, devasso, aperfeiçoava métodos de tortura, exilava cidadãos. Encabeça a lista dos governantes absolutistas mais loucos do mundo, próximos às ideias monarquistas de Curtis Yarvin, pensador da extrema direita, consultor de Elon Musk para um terceiro partido. Seria apressado associá-los a Trump, embora a crueldade do régulo americano tenha afinidade com o rol histórico dos desatinados. Eleito, ele veste carapuça imaginária de imperador, com fúria caligulesca de deportações e sombrios rumores sexuais. Mas de olho além da Lua, em Marte.



Em princípio, são aspectos miúdos do trumpismo, cujo eixo é a reafirmação do protecionismo econômico dos EUA por meio de guerra comercial. Nisso, nenhuma loucura, e sim reflexo do medo da desindustrialização, devida à realocação de fábricas para onde os salários se rebaixam ao nível da desumanidade. Uma reação particular à nova ordem mundial, que vitimiza a antiga classe trabalhadora branca do "cinturão da ferrugem". A esta, junto a setores desclassificados, deveu-se a eleição de Trump.

Em suma, foi o medo. Pode-se agir por medo ou apesar dele. No último caso, enfrentam-se obstáculos, até mesmo a morte. É o que se observa nos "tycoons", construtores de fortunas e impérios. E disso sempre fez alarde o capitalismo. O que nunca se explicita é o temor subjacente às conquistas. A paranoia como cimento social é motora de uma ideologia isolacionista, expressa em modos de vida, literatura popular e cinema de ação. Uma sociabilidade propícia a serial killers.

Esse é o substrato da aversão visceral ao outro, o estrangeiro, foco da alma coletiva encarnada em Trump. Deportar imigrantes é uma incitação ao exílio interior de cidadãos destinados à "América Novamente Grande" (Maga), ou seja, brancos descendentes dos primeiros colonos. O uso de boné do Maga por um não-americano, um brasileiro, digamos, é um marcador rebarbativo de ignorância política ou do transe atravessado pelos excluídos da nova bonança, prometida, não pelo impossível retorno da indústria manufatureira, e sim pela IA.

Mas o domínio da inteligência vive à sombra da besteira. Anos atrás, Jean Baudrillard assinalava que "a tirania da IA preside ao nascimento de uma besteira desconhecida até agora —a estupidez artificial— espalhada por toda parte, nas telas e redes informáticas. Então a besteira natural pode ganhar nobreza, como loucura" (em "Le Pacte de Lucidité").

Produto dessas telas e redes, portanto, de um novo tipo de estupidez, Trump busca nobreza eleitoral na insanidade. Seu niilismo, avesso ao iluminismo das universidades, prospera na depressão moral e cultural dos parceiros de crueldade: nacionalistas cristãos de direita, big techs e até na subserviência da brasileira, a JBS, que doou US$ 5 milhões para a sua posse.

Trump quer dinheiro. A aparente loucura está na imprevisibilidade da sua gangorra entre mundo histórico e realidade paralela. Até agora não emulou Calígula, que fez do cavalo Incitatus um senador romano. Uma equinocultura contagiante: segundo um senador brasileiro, Trump poderá retaliar com bomba atômica se for desobedecido. Mas o Chucky-Laranja, invenção telemórfica, prefere se afirmar como reencenador oportunista de loucuras do passado.