terça-feira, 28 de maio de 2024

O horror e o terror moral, amigos de Israel na matança dos palestinos

A armadilha montada no extremo-sul da Faixa de Gaza para matar palestinos funcionou a contento do governo de Israel. Pelo menos 45 pessoas morreram queimadas e decapitadas em tendas onde Israel garantiu que elas estariam a salvo de bombardeios, e 250 escaparam feridas – a maioria das vítimas, mulheres, crianças e velhos. O horror, o horror!

A expressão “o horror, o horror” aparece pela primeira vez na literatura em Heart of Darkness, do escritor britânico de origem polonesa Joseph Conrad, no ano de 1899. São as palavras derradeiras de Kurtz, um traficante de marfim franco-inglês que se encontra fisicamente doente e, ao que tudo indica, igualmente insano.

No filme Apocalipse Now, lançado em 1979, o cineasta Francis Ford Coppola resgatou a expressão e a pôs na boca do Coronel Kurtz, das forças especiais dos Estados Unidos, vivido por Marlon Brando, que enlouquecera e se refugiou nas selvas do Camboja. A ação se passa na guerra do Vietnã e todos os personagens são militares.


Coube ao Capitão Willard (Martin Sheen) a tarefa de localizar e matar o coronel, o que ele faz. Mas antes de ser morto, o coronel lhe diz:

“Você tem o direito de me matar, mas não o de me julgar. É impossível pôr em palavras o necessário para quem desconhece o sentido do horror. Horror. Horror tem rosto e é preciso fazer amizade com o horror. O horror e o terror moral são seus amigos. Se não forem, então são inimigos a temer. São inimigos de verdade.”

Não peça a Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro de Israel, que reconheça o horror das suas ações. Ele só vê o horror nas ações do grupo Hamas, que invadiu seu país em 7 de outubro do ano passado. Se visse também nas suas, não poderia chamar o Hamas de grupo terrorista para que Israel não fosse tachado de Estado terrorista.

Mais uma vez, o mundo chocou-se com o que aconteceu nas proximidades de Rafah, no extremo-sul da devastada Faixa de Gaza, e reagiu com indignação, a pedir o fim da guerra. Netanyahu limitou-se a declarar, contrafeito:

“Apesar dos nossos esforços máximos para não prejudicar os civis, infelizmente algo correu tragicamente errado”.

O mundo chocar-se não quer dizer grande coisa. Não mudará em nada a determinação dos dirigentes de Israel de ir em frente com a guerra que já matou mais de 36 mil palestinos civis e inocentes. Somente os Estados Unidos poderiam impor a Israel seu desejo de que a guerra terminasse, mas não o fará. Israel é seu braço armado na região.

Por mais que continue matando palestinos e árabes aqui e acolá, Israel já perdeu esta guerra. Não tem como derrotar o Hamas em definitivo, promessa repetida por Netanyahu a cada vez que é obrigado a se explicar. A Netanyahu só resta estender o fim do seu governo provocando o horror e o terror moral, seus diletos amigos.

Negar a crise do clima pode custar caro

Um oceano separa a catástrofe climática que atingiu o Rio Grande do Sul do comício do partido espanhol Vox, com lideranças da ultradireita internacional, como Javier Milei, realizado em Madri no domingo (19). A verdade, contudo, é que a distância entre esses dois eventos, um geográfico, outro político, é tão estreita que seria possível cruzar esse oceano com uma pinguela.

Isso porque no mesmo dia em que os principais nomes da extrema direita mundial reuniram-se na Espanha para reforçar, entre outras pautas, o negacionismo climático, os brasileiros - do outro lado do Atlântico - assistiam, estarrecidos, à fúria das águas arrastando carros, móveis, pessoas, animais, sobre cidades inundadas, um cenário de guerra, uma atmosfera de desespero e desalento. Tão longe, e tão perto.

Os dados mais recentes mostram que morreram 157 pessoas e quase 1 milhão de pessoas estão há quase um mês em abrigos públicos, ou na casa de parentes ou amigos. Mas é espantoso que o desastre tenha precedentes recentes, e nenhum governante tenha feito a lição de casa.

Se o Guaíba superou o nível de 5 metros, nas enchentes provocadas pelas chuvas de novembro (há seis meses), o lago/rio já havia acionado o alarme ao bater o recorde de ultrapassar 3 metros - o que não ocorria desde as cheias de 1941. Alguns dos municípios mais afetados neste mês, como Porto Alegre, Canoas e Eldorado do Sul, haviam sido inundados nas chuvas de novembro, embora não na mesma proporção.

A crise climática evidencia-se num cenário em que, enquanto as tempestades devastavam cidades no Rio Grande do Sul em novembro, uma onda de calor, com termômetros marcando 46o C, alastrava-se pelo restante do país. O próprio Rio Grande do Sul, antes de se ver debaixo d’água, amargou uma das estiagens mais severas nos três anos que antecederam as atuais enchentes.

São fatos que desafiam os negacionistas, como o presidente da Argentina, Javier Milei, chamado no comício do Vox de “estrela brilhante”. No país de Lionel Messi, a crise climática também deu sinais de alerta. As temperaturas alcançaram os 46º C, enquanto o volume de água de rios alimentados pela neve da Cordilheira dos Andes está diminuindo. E um inimigo antes reservado ao Brasil e ao Paraguai agora ameaça os argentinos: a dengue, que se manifesta nas altas temperaturas, como nos verões brasileiros.

Milei, entretanto, é um político que chamou o aquecimento global de “marxismo cultural”, fechou o Ministério do Meio Ambiente e resiste a vacinar a população contra a dengue.

Na mesma sintonia, o presidente do Vox, Santiago Abascal, acusa os socialistas de estarem sob ordens dos "ecologistas radicais" e fala em "religião climática".

E, recentemente, o ex-presidente Jair Bolsonaro afirmou nas redes sociais que "problematização climática é desinformação".

No ato em Madri, Milei exortou a direita europeia a se unir contra o socialismo, e pediu votos para o Vox nas eleições para o parlamento europeu em 9 de junho. Os partidos ultraconservadores vivem uma onda de expansão. Em março, o partido Chega, de Portugal, do líder extremista André Ventura, cresceu de 12 cadeiras para 50 vagas no Congresso.

Nos últimos dois anos, a ultradireita passou a governar, ou integrar coalizões de governo, na Itália, Grécia, Suécia e Finlândia. França e Alemanha estão ameaçadas. Donald Trump pode retornar à Casa Branca, e o bolsonarismo segue com musculatura no Brasil.

A união da ultradireita é estratégica, e busca seguir um modelo implementado pela esquerda e centro-esquerda europeia na última década, mas que perdeu fôlego nos últimos anos. Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou a prisão, ele fez um périplo internacional, e foi recepcionado pelas principais lideranças da centro-esquerda europeia, cujos partidos mantêm a aliança histórica com o PT. Em novembro de 2021, Lula nem era pré-candidato, e foi recebido pelo presidente da França, Emanuel Macron, pelo primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, pelo futuro chanceler da Alemanha, Olaf Scholz (que era ministro de Finanças na ocasião), e discursou no Parlamento Europeu em Bruxelas, em evento promovido por congressistas do bloco social democrata, de centro-esquerda. Na contramão do negacionismo climático dos ultraconservadores, Lula defendeu a preservação do meio ambiente e a redução da desigualdade econômica.

A preocupação de cientistas atentos às mudanças climáticas é com o aumento da frequência e da duração desses episódios extremos. E como se não bastassem os alertas dos dados científicos para o agravamento desse quadro, os cientistas ainda são vítimas de desinformação nas redes sociais, onde são agredidos e achincalhados.

Mas há reações. Em fevereiro, o cientista americano e professor da Universidade da Pensilvânia Michael Mann venceu uma batalha judicial que se prolongava havia 12 anos contra blogueiros que o difamaram nas redes sociais. Segundo a revista “Nature”, um tribunal americano fixou contra os difamadores uma indenização por danos morais ao cientista no valor de US$ 1 milhão.

Não há mais nada de bom em nosso mundo?

Como jornalista preciso ler ou ouvir as últimas notícias do mundo assim que acordo. Quando as pessoas ao meu lado me perguntam sarcasticamente quais são as “boas notícias” do dia, entendo a ironia. E mais do que irônico é a constatação de que hoje no mundo tudo parece ser um desastre, sobretudo de violência, mas também de crise de valores, de despertar de velhos fascismos e de corrupção de democracias.

Teremos que voltar aos tempos dos jornais que só publicavam notícias boas e que acabavam fracassando? Também não é isso, mas talvez seja verdade que especialmente com a chegada das redes sociais e das novas tecnologias de divulgação de notícias, essa coceira inata pelo catastrófico, pelo negativo versus o negativo, está se tornando mais aguda, e às vezes até cientificamente positiva.. Quanto mais sangue, melhor. Quanto mais trágica a notícia, mais ela vende.

Porém, talvez estejamos equivocados ao acreditar que boas notícias, notícias que expandem a alma, exemplos de melhoria, desejos de paz e justiça, não vendem mais. Isto começa a parecer verdade, pois os grandes jornais, que estavam a ser contaminados pelas redes sociais com a sua truculência quotidiana, começam a regressar a uma informação positiva, luminosa, cultural, que oferece esperança. As pessoas começam a se cansar de tanta violência e novas doenças psicológicas crescem de forma assustadora.

Há alguns dias, a notícia do menino de 17 anos que matou o pai, a mãe e a irmã com a arma do pai, sem arrependimento, chocou o Brasil. Além de confessar o crime, disse impassivelmente à polícia que o repetiria se pudesse. Sim, mais um crime, mas a maior parte das informações tratava de detalhes sobre o ocorrido, sem se aprofundar nas possíveis motivações. Apenas um jornal lembrou que o menino havia sido “adotado”, sem aprofundar as reais causas.

E esse é um dos perigos da informação nestes tempos em que certos tipos de violência se multiplicam e os meios de comunicação não conseguem escondê-la. O que falta na maioria das vezes é uma análise que aprofunde as verdadeiras razões deste aumento da violência, seja familiar ou social, especialmente entre os adolescentes e que atinge tão fortemente as mulheres. E seja verdade ou não que principalmente entre os adolescentes, a principal causa da violência são os celulares que facilitam seu acesso a jogos e cenas de violência.

Segundo psicólogos e psiquiatras, o que pode estar falhando, porém, é a falta de diálogo nas escolas e faculdades entre educadores e familiares para uma melhor compreensão do aumento da violência entre os jovens. Pouco adianta dar a conhecer os factos sem tentar aprofundar as suas causas, sabendo que estamos num momento histórico de transição. Não sabemos ao certo onde e para quê, mas é inegável que o homo sapiens se vê assediado pela velocidade da transformação da vida social e pessoal. Basta pensar na confirmação dos novos gurus da inteligência artificial (IA) que imaginam máquinas que superam intelectualmente os humanos.

O que talvez nos falte a todos nesta mudança de época que ainda não sabemos onde nos poderá levar é a capacidade de compreender as diferenças, os problemas e os riscos a que a nova geração que ainda não viveu os horrores de uma guerra mundial, mas que tem de suportar, sem ajuda, a nova e imparável revolução digital com todos os seus prós e contras.

Assim como as guerras mundiais do passado deixaram abertas durante anos as feridas do corpo e da alma sofridas nos campos de batalha, é possível que as novas guerras tecnológicas, que também poderiam ser tão desastrosas quanto as guerras convencionais, deixem feridas abertas e difíceis de tratar.

Esta pequena reflexão sobre o aumento da violência entre os adolescentes impulsionado pelas novas guerras tecnológicas que por vezes perturbam o equilíbrio físico e, sobretudo, psicológico dos jovens – que é tão difícil para nós analisarmos – fez-me recordar a triste história de um jornalista colega quando, antes da fundação deste jornal, trabalhei na secção cultural da RAI, a poderosa televisão italiana.

Fui incumbido de preparar uma série de reportagens sobre “a solidão do homem moderno”, desde a do empresário de sucesso até a da prostituta que escondeu a sua profissão da família. Na equipe de seis pessoas que viajou pela Itália em busca de experiências de solidão para filmar, havia um jornalista mais velho encarregado de organizar as viagens. No primeiro dia em Milão, na hora do almoço num restaurante, ele me perguntou se poderia comer sozinho em uma mesa separada. Ele era extremamente tímido e parecia esconder algum problema íntimo e indescritível.

Ao longo dos 10 dias de viagem, ele continuou comendo em uma mesa só para ele. De volta a Roma, perguntei ao meu diretor na época se aquele colega tinha algum problema especial. Ele me disse que não sabia, mas que, por exemplo, nunca conversavam com a filha única com quem ele morava em casa, apenas por telefone quando ele vinha à emissora de televisão.


Eu não me acomodei. Ele era um companheiro magnífico e prestativo. Um dia perguntei-lhe, sem rodeios, mas delicadamente, por que ele queria ficar sozinho. Ele confiou em mim e contou-me a sua história: era, embora ninguém soubesse, um sobrevivente do campo nazi de Auschwitz, do qual conseguiu escapar. Ele me contou que uma das coisas que mais o horrorizou no campo de concentração era estar sempre junto, sem um minuto de solidão ou para se aliviar, e que desde então não podia estar acompanhado. Sua felicidade era a solidão. Conseguimos abrir um diálogo e até conheci a filha dele, com quem ele só falava por telefone.

Essa lembrança ao mesmo tempo terna e terrível vem à mente cada vez que uma nova onda de violência assola o mundo dos adolescentes, que se mutilam ou se suicidam sem que nos preocupemos muito em saber o porquê. Sem este trabalho que deveria ser multicultural, continuaremos a denunciar todos os dias as tragédias sangrentas perpetradas por jovens, incapazes de compreender as dobras feridas da sua alma. E aí temos uma responsabilidade, nós que exercemos a função de informar a sociedade e de analisar porque é que este rio de jovens, hoje, em todo o mundo, parece sofrer frequentemente os açoites da incompreensão daquilo que ferve nas suas almas feridas mesmo em flor.

Juan Arias