sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Naufrágio à vista, Brasil!

 


A vacina dos sem-banho

Um dos candidatos a prefeito da cidade de São Paulo comentou com os jornalistas, após um encontro na Associação Comercial, que a suposição de que os moradores de rua seriam os mais atingidos pela pandemia não se confirmou.

Ele arriscou uma hipótese para explicar outra e duvidosa hipótese: “Talvez eles sejam mais resistentes do que a gente, porque eles convivem o tempo todo nas ruas, não têm como tomar banho todos os dias”. A fala não tem uma evidência médica. Mas tem uma evidência sociológica de como é o mundo do candidato: o da sociedade dividida entre “a gente” e “eles”, os que tomam banho e os que não o tomam.

Sua esdrúxula explicação lembrou-me de outro caso, de anos atrás. Eu estava numa reunião em colégio católico em que se debatia pobreza e exclusão social. Uma das senhoras, de uns 60 anos, tomou a palavra, virou-se para o único negro presente, um senhor de idade, e disse-lhe: “Vocês, pobres, precisam cuidar da limpeza, varrer a casa, manter a casa limpa”. Era sua solução para o problema da pobreza.



Muito paciente, aquele senhor lhe respondeu: “Minha senhora, para limpar minha casa eu preciso ter uma casa”. Ela, provavelmente, não entendeu que, nas questões sociais, há o que vem antes e o que vem depois, o principal e o secundário.

Como no preconceito daquela senhora de classe média, o senso comum do candidato paulistano é mera hipótese, sem fundamento científico. Embora na ciência não seja raro que o bom senso do pesquisador faça descobertas inesperadas, no terreno do improvável. Mas isso só ocorre quando o senso comum do cientista não é tão comum assim. Ele pode interpretar o que significam coincidências repetidas em questões como a da saúde pública.

A descoberta da vacina da varíola decorreu da constatação de que as ordenhadeiras de vacas, na Inglaterra, não contraíam varíola. Edward Jenner (1749-1823), o pesquisador inglês que criaria a vacina, percebeu o alcance científico do fato porque era um cientista. As pústulas do úbere das vacas continham o pus vacínico. Elas e suas ordenhadeiras eram agentes de um experimento científico casual.

A questão política na fala do candidato é a de saber por que escolheu ele justamente a hipótese da falta de banho para explicar a suposta imunidade dos moradores de rua à covid-19. Poderia haver outras, como a de que a alimentação a que têm acesso precário essas vítimas do descarte social talvez seja insuficiente e pobre. Não conteria certos alimentos que aumentariam sua vulnerabilidade à doença. Ou que não são exagerados consumidores de remédios, como outros muitos. Itens do farmacismo do exagero talvez os tornasse mais vulneráveis. Estou apenas derivando suposições a partir do mesmo senso comum que sustenta a hipótese do candidato de que menos banho é igual a menos covid-19. É tudo igualmente falso.

O que a resposta escolhida pelo candidato revela, politicamente, é que ela se funda em disseminado e arraigado preconceito contra pobre. O de que pobre não toma banho. Isso é falso. Em observações que fiz numa das grandes favelas de São Paulo, o cuidado com o banho e a apresentação pessoal contrasta com as condições notoriamente adversas dos minúsculos barracos. Seus moradores dependem de carregar água de longe para o banho de caneca ou de bacia. Banho é banho. Os barracos e seus moradores estão sempre muito limpos.

Vi algo semelhante num pavilhão da Casa de Detenção, pouco antes de ser demolido. Os presos, notoriamente desassistidos, com o que sabiam criavam chuveiros elétricos com vasilhas de margarina e gambiarras. Era o senso comum criativo dos desvalidos em contraste com o dos mandões que os abandonavam.

Moradores de rua da cidade de São Paulo e, provavelmente, em outros lugares têm estratégias para o banho e a limpeza. Alguns usam os banheiros dos cemitérios. Um deles me explicou que são mais limpos do que os poucos banheiros públicos.

Outros têm entendimento com donos de bares para usar o banheiro do estabelecimento. Cuidam para deixá-lo limpo e manter o crédito moral desse acesso. Muitos se lavam e lavam suas roupas no espelho d’água da praça da Sé. Depois, penduram as roupas num dos respiradouros do metrô, ali mesmo, para secá-las rapidamente ao ar da poderosa ventilação que sai de lá de dentro.

Essa criatividade é própria do que o antropólogo Oscar Lewis (1914-1970) definiu como cultura da pobreza.

Se o candidato conhecesse a cidade que quer governar, conheceria a cultura de rua dos que nela moram, suas regras, sua concepção de ordem. Há mais ordem social entre os pobres das ruas do que nos recintos do poder.

O mesmo vale para os outros candidatos. Nenhum deles abriu o bico para assinalar o preconceito social óbvio na afirmação do seu colega de disputa.

Desobediência civil deturpada

Eu me envergonharia se ela berrasse a favor de um torturador...
(...)Estranho é a indiferença das pessoas diante do que está acontecendo no Brasil.
A palavra perdeu o sentido no Brasil. Ser democrata é mandar repórter calar a boca? Um presidente prega desobediência civil para as pessoas não usarem máscara ou não tomarem vacina! Isso é deturpar o significado de desobediência civil.
Isabel, ex-jogadora da Seleção Brasileira de vôlei e mãe da jogadora Carol Solberg

Depois da devastação

Não se podem menosprezar os efeitos do vírus que em poucos meses matou mais de 1 milhão de seres humanos, dos quais 155 mil brasileiros, desarticulou a economia e provocou atraso no progresso. Além da perda irreparável por morte, a maior devastação será na educação. Todos voltarão à escola com apagão cognitivo que muitos jamais vão superar. Milhões nem voltarão às escolas neste ano, milhares abandonarão os estudos, outros as encontrarão fechadas ou sem professores.



É equívoco responsabilizar a Covid-19 pelo agravamento da desigualdade educacional, porque ela sempre foi tão grande que é impossível ter piorado. É como dizer que a desigualdade aumentava entre a senzala e a casa-grande em momentos de epidemia. Os senhores tinham mais remédios, menos promiscuidade sanitária, mas a desigualdade entre eles e os escravos era tão abismal que não piorava. A epidemia mostra a desigualdade, não piora.

Nossa desigualdade educacional não decorre do vírus, mas do descuido histórico com a educação dos pobres. Não é por causa da Covid que 12 milhões de adultos não sabem ler “Ordem e Progresso” escrito na nossa bandeira. Também não foi o vírus que deixou 100 milhões de analfabetos funcionais. A Covid pode provocar desigualdade entre os que estão em algumas das raras escolas que se adaptaram ao ensino remoto e os que estudam em outras que não se adequaram ao ensino a distância, mas a grande desigualdade já existia.

A Covid devastou tanto a educação que pode até ter diminuído a desigualdade, ao rebaixar a educação dos ricos. Foi como se houvesse um terremoto numa cidade, destruindo a moradia de todos, mas diminuindo a desigualdade, ao nivelar por baixo, deixando bairros nobres sem suas casas, sem água nem esgoto, como já estavam bairros pobres. O terremoto não aumenta a desigualdade que existia, agrava-a na reconstrução que começa acelerada pelos bairros nobres. É isso que pode ocorrer agora com a educação, aumentando a desigualdade a níveis ainda piores que antes da epidemia.

Nossa tarefa é iniciar a reconstrução do sistema devastado pela escola pública que atende a quase totalidade de nossas crianças. O caminho da reconstrução vai exigir uma estratégia para substituir os frágeis sistemas municipais por um robusto sistema público federal. Fazer a revolução que substituirá a atual “pedagogia teatral” por nova “pedagogia cinematográfica” que use recursos da teleinformática dos bancos de dados e de imagens, da inteligência artificial, dos efeitos especiais.

O vírus devastou toda educação e mostrou uma desigualdade que já existia por nossa culpa. Aproveitemos para despertar à necessidade de o Brasil dar um salto na qualidade da educação e fazê-la equitativa, independentemente da renda e do endereço de cada criança.

Quando a tragédia vem a calhar

A tragédia que já matou quase 155 mil brasileiros virou uma boa desculpa nas mãos dos políticos, que agora usam seletivamente as limitações da pandemia para manter e ampliar poderes e vantagens. O exemplo da semana foi a justificativa esfarrapada do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, ao empurrar para novembro a decisão sobre a convocação para o Conselho de Ética começar a examinar representação que pede a punição do senador Chico Rodrigues (DEM-RR) por falta de decoro. Parece difícil haver falta de decoro maior do que esconder algo da polícia na cueca, e o Conselho vai ficar numa saia justa se não punir o colega. Mas ele é um boa praça querido no tapete azul. Melhor então, raciocinaram, não reabrir o Conselho, que está com as atividades suspensas. Segundo Alcolumbre, os senadores estão temerosos em relação à propagação da Covid-19 e é melhor deixar isso para depois.

Só não explicou bem por que os senadores têm medo do coronavírus no Conselho de Ética – que poderia funcionar virtualmente – e não o têm, por exemplo, nas Comissões de Constituição e Justiça e de Assuntos Econômicos, que se reuniram em modo “semipresencial” esta semana para sabatinar e aprovar a toque de caixa as indicações de Jair Bolsonaro para o STF (Kásso Nunes) e para o TCU (Jorge Oliveira) – sendo que esta última vaga, decorrente da aposentadoria de José Múcio, só estará aberta em 2021. Vai entender o critério...

Aliás, para alguns, está muito bem entendido. Candidato à reeleição que precisa das bênçãos do Planalto, Alcolumbre também resolveu que a CPMI das Fake News – que apura acusações de envolvimento de Carlos e Eduardo Bolsonaro – pode ser um perigosíssimo propagador do coronavírus e não pode funcionar. Assim como o plenário do Congresso, que promete, promete, mas não consegue fazer sessão para derrubar o veto à desoneração da folha de pagamento de 17 setores.

No tapete verde, a Covid também investiu de superpoderes o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Só se vota lá o que ele quer – embora nem tudo que queira seja votado. A medida provisória que reduziu de R$ 600 para R$ 300 o auxílio emergencial, por exemplo, nunca será votada. A oposição anunciou que vai tentar restabelecer o valor antigo do benefício, e é grande o risco de boa parte dos governistas acompanharem. Maia, que voltou a ser unha e carne com Paulo Guedes, sentou em cima da MP. Quando ela caducar, já terá surtido efeito.

Não é só no Congresso e no Planalto – onde Bolsonaro cresceu com o auxílio emergencial - que a maior tragédia sanitária brasileira dá sua mãozinha a autoridades que resolveram usá-la. A Segunda Turma do STF, por exemplo, vem escapando do julgamento que poderá anular a sentença de Sergio Moro no caso do triplex do Guarujá, devolvendo a elegibilidade ao ex-presidente Lula. Seu presidente, Gilmar Mendes, alega que o assunto é tão importante que tem que ser examinado em sessão presencial – que, todos sabem, só ocorrerá ano que vem, se não houver segunda onda. A pandemia, porém, não vem impedindo dezenas de outros julgamentos remotos todos os dias.

Até no momento alto da democracia, a eleição, a pandemia é usada para beneficiar o status quo. Ou o fato de os debates terem sido cancelados no primeiro turno, sob o pretexto do risco de contaminação – como se não pudessem ter proteção ou ser virtuais – não favorece quem está na frente nas pesquisas ou disputa a reeleição?
Helena Chagas 

Brasil, um país sem futuro

Que o Brasil está numa crise profunda, que já dura anos, não é surpresa para ninguém. O que é chocante, quando se para para pensar, é a completa falta de projetos em curso que nos levem a uma realidade melhor, no futuro.

Há alguns caminhos bem conhecidos para a prosperidade. Um deles é a educação. Praticamente todos os países que saíram da pobreza para se tornarem ricos antecederam esse salto com um projeto consistente de universalizar e aumentar a qualidade da educação. Afinal, nada tem tanto valor para a economia quanto uma população com alta capacidade - está aí a base sobre a qual se assenta um país capaz de mudar sua realidade. É o chamado capital humano, maior fonte de riqueza de vários países pobres em outros tipos de recursos naturais, como a Dinamarca, a Coreia do Sul, a Finlândia, a Irlanda e mesmo a China.

Nada do gênero está sendo feito aqui agora. Muito pelo contrário, aliás. O orçamento da educação no país vem sendo massacrado ano a ano. É da educação que o governo queria tirar dinheiro para bancar seu programa Renda Cidadã, a nova versão do Bolsa Família - o plano acabou barrado. Mesmo assim, o Ministério da Educação já fala em cortes bilionários para o ano que vem - isso por cima dos seguidos cortes que tiraram do Brasil mais de metade dos investimentos em infraestrutura para educação nos últimos cinco anos.



Outro caminho, intimamente conectado ao primeiro, é a ciência e a tecnologia. Países com universidades e laboratórios excelentes e um setor produtivo inovador não precisam se conformar com a realidade do mercado: eles podem inventar mercados novos. Mas os investimentos em ciência no Brasil vêm sendo massacrados há anos - a ciência brasileira precisou enfrentar 2020 sob cortes de mais de 80% no fomento à pesquisa. Quase todos os melhores cientistas do Brasil estão indo-se embora, planejando fazê-lo ou sofrendo para sobreviver. Universidades viraram palcos da guerra ideológica, com reitores impostos pelo presidente e sem dinheiro até para o papel higiênico.

Prosperidade no futuro também está intimamente ligada a erguer infraestrutura no presente. Isso ganha importância nestes tempos em que vivemos, porque o mundo inteiro está aproveitando esta crise para construir uma infraestrutura diferente, pensada para um mundo pós-carbono: veículos elétricos, trens de alta velocidade, usinas de energia renovável, coisas pensadas para durar décadas, numa nova realidade climática.

Mas, no Brasil, o orçamento em infraestrutura também vem caindo aceleradamente - em 2020 foi o menor em 16 anos. Não só está caindo, mas o pouco que sobra é completamente obsoleto. O governo vem por exemplo asfaltando estradas do tempo da ditadura no meio da Amazônia - em vez de reduzir a dependência nacional no rodoviarismo e nos combustíveis fósseis.

Se não bastasse o Brasil não semear a prosperidade do futuro, o país vem pondo em risco inclusive a economia do presente. Hoje o Brasil é muito dependente de produtos primários, principalmente commodities agropecuárias como a soja. É pouco para um país que quer ser rico: depender de matérias primas sem valor agregado e importar tudo de industrializado é o caminho para ficar no vermelho. Mas mesmo esse pouco está sob ameaça.

Afinal, a grande riqueza do Brasil, que permite que o país seja uma potência agropecuária, é a riqueza em recursos naturais. E o país está colocando tudo isso a perder, deixando impunes o 1% de produtores agrícolas que desmatam ilegalmente, deixando os incêndios tomarem todos os ecossistemas e queimando junto a marca Brasil diante de seus clientes, ao associá-la à destruição ambiental.

O Brasil está se metendo num beco sem saída: abrindo mão de qualquer chance de prosperidade no futuro. O único lado positivo que consigo ver nisso, depois de muito esforço, é que a falta de saída adiante talvez ajude a criar o consenso necessário para nos forçar a mudar de caminho. Mas precisa ser rápido. Do jeito que está, este é um país sem futuro.

Pensamento do Dia

 


Pergunte ao seu coração

Nesse momento, tem gente morrendo de fome no nosso Brasil.

10,3 milhões de brasileiros padecem de fome. Em cinco anos, cresceu em três milhões o número de pessoas em situação de insegurança alimentar grave – fome.


É a tristeza que a sociedade consome, 
me diz que não viu?
Quem tem fome, tem pressa e não pode esperar.
A fome é perversa, não dá pra negar.
Quem alimenta esse monstro do mal
é a desigualdade social.

10% dos brasileiros, que têm maior renda no trabalho, ficam com 43% de todos os rendimentos de trabalho do país. 1% com maior rendimento mensal ganha 180 vezes mais do que os 5% de menor renda.

Brancos recebem entre 80 a 70% mais do que pretos e pardos. De 2018 para 2019, os rendimentos dos homens ficaram estáveis, os das mulheres caíram. 34,4 milhões de brasileiras são responsáveis pelo sustento da família.

80% dos mortos pela polícia são negros – 99,2% são homens. Com idades de 15 a 29 anos. Negros são 66,7% da população carcerária. Entre os policiais mortos, 61% também são negros.


Tem barriga vazia fazendo chorar...

O Brasil tem 14 milhões de desempregados. Entre maio e setembro, aumentou em 4,1 milhões o número de pessoas em busca de ocupação no mercado de trabalho, alta de 43% no período.

Mas a cidadania tem uma missão
Fazer esse mundo se mobilizar
Pra nunca mais faltar arroz e feijão.
Só a corrente da dignidade pode mudar essa realidade 
e dar um fim nessa situação.
Pergunte para o seu coração e ele vai lhe responder como faz bem fazer o bem e ver o bem prevalecer.
Vem ajudar a renovar a esperança de alguém.
O que é pouco pra você pode salvar quem nada tem.

“Quem tem fome em pressa” é título do samba que puxa a campanha para um Natal Sem fome, deste 2020. Ano atípico em quase tudo, igual na persistente desigualdade social do Brasil, crescente e acentuada nos últimos três anos.


A música é dos compositores Mosquito, Xande de Pilares, Gilson Bernine e Emicida.Anitta abre o clipe que reúne 28 grandes artistas da música brasileira – Alcione, Caetano Veloso, Chico Buarque, Chitãozinho e Xororó, Criolo, Daniela Mercury, Djavan, Elza Soares, Emicida, Gilberto Gil, Gloria Groove, Ivete Sangalo, Karol Conká, Ludmilla, Luísa Sonza, Maria Bethânia, Mart’nalia, Milton Nascimento, Mosquito, Nando Reis, Negra Li, Rogerio Flausino, Teresa Cristina, Xand Avião, Xande de Pilares e Zélia Duncan.

E assim a dor é estancada. Minha gente, é tão urgente. Chega em todas as quebrada. Uma corrente assim de vários camaradas Pra todo mundo ter uma ceia abençoada. Chegar em todas as famílias. E a luz que brilha É de todos nóiz. Todos nóiz juntos nessa guerrilha. Firmeza, firmão, de coração. Quem tem fome, tem pressa. Então corre irmão. Vamo!

Na década de 1990, quando a fome alcançava 14,8% da população brasileira, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, tornou-se símbolo de cidadania ao liderar a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, movimento de mobilização nacional para combater a pobreza e as desigualdades sociais. O Natal Sem Fome era parte dessa ação.

Hemofílico, Betinho morreu de AIDS em agosto de 1997, mas, já existindo como ONG, a Ação da Cidadania continuou realizando a campanha Natal Sem Fome, que foi interrompida em 2017 e retomada agora.

Em 30 anos, o Brasil até conseguiu redução significativa da fome e da miséria, mas nunca sua completa extinção. Em 2014, segundo estimativas da Organização das Nações Unida para a alimentação e a Agricultura (FAO), o Brasil deixava o Mapa Mundial a Fome, alcançando nível menor do que 5% de Prevalência de Subalimentação, com redução de 84,7% no número de brasileiros sujeitos à fome.

Esses índices significaram a maior redução da fome na história brasileira. Mas restavam ainda 3,4 milhões de brasileiros – 1,7% da população – a ser retirada da situação de pobreza extrema. De lá para cá, tristemente, não houve mais redução, mas crescimento da miséria e da fome, que agora volta a alcançar 10 milhões de pessoas. Gente que a barriga vazia humilha e faz chorar.</p>
Tânia Fusco 

Saúde para capachos


Um manda e o outro obedece. Mas a gente tem carinho, dá pra desenrolar
Ediardo Pazzuello, ministro da Saúde

Não se esqueça de tomar seu antibiótico da China

Da longa lista de produtos que importa da China, plataforma de petróleo é aquele em que o Brasil gasta mais. Depois, vêm telefones celulares. Em 2019 gastamos também US$ 70 milhões em “edredons, almofadas, pufes e travesseiros” chineses.

Qual o maior fornecedor estrangeiro de antibióticos para o Brasil? A China, que aliás aparece em terceiro lugar nas vendas de produtos de beleza, por exemplo.



Não dá problema, por ora, porque basicamente quase ninguém sabe alguma coisa de comércio internacional, porque um governador desafeto de Jair Bolsonaro não disse que vai importar antibióticos ou pufes e porque a milícia digital bolsonarista não se ocupou do assunto.

Até o ano passado, o Brasil comprava pouca vacina e produtos imunológicos prontos da China. As importações maiores tradicionalmente vinham de Alemanha, Suíça, Estados Unidos e Bélgica, com Irlanda, Itália, Reino Unido e França logo atrás. Neste ano, a China começou a aparecer entre os quatro maiores.

Mas nada disso importa no nosso ambiente de selvageria lunática. Além do mais, o Brasil fabrica o grosso de suas vacinas, por vezes com matérias primas importadas de vários países, como aliás é o caso de tanta mercadoria. Até de um simples lápis de grafite.

Bolsonaro sabia o que Eduardo Pazuello andava fazendo com a “vacina chinesa”. Mas a reação dos milicianos digitais, os discursos vitoriosos de João Doria e a baixa vaidade presidencial, de valentão provinciano ou síndico maníaco, provocaram o chilique (“eu é que mando!”). O general-chefe do almoxarifado da Saúde é menos que um ajudante de ordens do capitão, é uma ordenança.

Já vimos esse show ruim antes, essa “stand up tragedy”. Os problemas maiores e também já muito sabidos são outros: um desastre diplomático, perigoso para a segurança e economia nacionais, e alguma demagogia destrutiva em geral, como uma decisão econômica tresloucada.

Bolsonaro tem mostrado bom instinto de autopreservação. Tem conseguido jogar para sua plateia desvairada e, pelo menos, não tem tomado decisões que afastem de modo terminal os donos do dinheiro grosso ou a média do eleitorado, até agora. Na prática, a destruição das instituições é homeopática, por enquanto, para o que a maioria não dá a mínima. Quanto tentou um veneno em dose cavalar, com os comícios golpistas, foi travado pelo risco de que sua capivara tivesse consequências imediatas. A ficha corrida de parentes e amigos por enquanto contém o projeto de golpe.

Mas não temos como saber se assim será e se, depois de um envenenamento contínuo, o país, sua democracia e as instituições chegarão a uma desgraça irreversível.

Não sabemos até onde pode ir o conflito com a China, por enquanto mais voçoroca de redes insociáveis e propaganda do que embate concreto. Não sabemos o que Bolsonaro pode aprontar com os vizinhos. Que tal um tiroteio na fronteira, perto de uma eleição?

A China é paciente e pragmática. Quatro ou oito anos de um governo adversário de país fornecedor de matérias primas podem ser suportáveis. Por ora, de resto, Brasil e China dependem um do outro, embora um dia os chineses possam dar um basta e começar a, sei lá, a financiar plantações de soja em alguma savana da África.

O alerta, que já deveria estar ligado faz muito tempo, desde 2018, é que Bolsonaro não tem limite algum. Os bobalhões que louvaram sua adesão às reformas mal começaram a prestar atenção. Daqui a pouco, o capitão pode dar um tiro no teto de gastos que abriga essa gente mercadista.

Ser pária

O resultado da eleição presidencial dos Estados Unidos pode ser fundamental para o resto do mundo, mas especialmente para países como o nosso, governado por extremistas de direita que sentem-se protegidos pela “relação carnal” com a administração Trump. 

O presidente Bolsonaro ainda tem em mente a ideia de uma China comunista que quer dominar o mundo. Realmente, ela quer, como todo potência, mas com armas capitalistas, investimentos e produção, o que faz parte do jogo do capitalismo internacional. O Brasil tem que se aproveitar da sua importância geopolítica para tirar vantagens dos EUA, da China e da Europa, e não ficar entregue aos EUA, fazendo a política de Trump, que até agora não nos deu nada em vantagem. 

Se Joe Biden vencer a eleição americana, vai ficar difícil dar continuidade à política externa brasileira, porque o governo democrata vai exigir contrapartidas importantes do Brasil, especialmente na política ambiental. Com essa briga com a China, corremos o risco de virarmos párias mundiais, sem aliados, se EUA e Europa se unirem e voltarem a nos pressionar na questão do meio ambiente, o que é provável com a vitória de Joe Biden. 

O chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, um dos pilares da visão extemporânea de mundo que rege esse governo, anunciou ontem aos formandos do Instituto Rio Branco que o Brasil está disposto a ser um ‘pária internacional’ se for pela defesa da ‘liberdade’. 

Segundo ele, na abertura da Assembléia Geral das Nações Unidas deste ano, os presidentes Bolsonaro e Trump “foram praticamente os únicos a falar em liberdade”. Para Ernesto Araújo, a ONU “foi fundada no princípio da liberdade, mas a esqueceu”. Ele acredita que o Brasil é o porta-voz da liberdade pelo mundo, e “se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”. 

Para Araújo, “talvez seja melhor ser esse pária deixado ao relento, do lado de fora, do que ser um conviva no banquete do cinismo interesseiro dos globalistas, dos corruptos e semicorruptos”. Globalismo é como os direitistas mais radicais chamam a globalização, e o “banquete” seriam os organismos internacionais como a ONU ou a Organização Mundial da Saúde (OMS) que representam a ideia de um mundo multipolarizado, mas que a direita internacional critica por, nessa visão, serem controlados por uma orientação esquerdizante do mundo, que quereriam impor a todos os países. 

Os organismos internacionais, comandados por pessoas que não foram eleitas, querem impor ao mundo uma visão unificada, impedindo que as nações exerçam sua soberania. Como já disse o chanceler Ernesto Araújo, o globalismo seria “a configuração atual do marxismo”. 

Mesmo com essa visão estereotipada das relações internacionais, o Brasil não tem se esquivado de se aliar a ditaduras, mesmo a chinesa, para defender seus pontos de vista sobre direitos humanos no Conselho da ONU, alterando fundamentalmente a posição tradicional brasileira a respeito do tema. 

Em junho, apoiou uma resolução proposta por China, Cuba, Venezuela, Irã e Síria, que acabou aprovada, reduzindo o âmbito de atuação do Conselho dos Direitos Humanos, transformando-o em um lugar de debate de cooperação, e não de monitoramento de violações dos direitos humanos no mundo. 

Juntamente com essas ditaduras, o Brasil tem recebido muitas críticas com respeito à violação dos direitos humanos, sobretudo de indígenas e minorias. O Brasil também se aliou a governos autoritários como Arábia Saudita , Paquistão, Egito e Iraque sobre direitos sexuais das mulheres, propondo, entre outras coisas, retirar o tema “educação sexual” das prioridades da ONU.

Nos documentos brasileiros, não há mais referências a temas como tortura, gênero, LGBT, desigualdade, e, juntamente com a Arábia Saudita, defende o fortalecimento da família com “pai e mãe”. Os crimes do ditador Duterte, das Filipinas, cometidos na guerra às drogas, não tiveram o voto do Brasil para uma investigação. Já somos, portanto, párias em diversos setores da sociedade internacional, e não acompanhamos mais os países progressistas da Europa ou mesmo da América Latina. 

Combate à corrupção reduz mortalidade infantil, aponta estudo

Auditorias anticorrupção realizadas em municípios brasileiros entre 2003 e 2015 reduziram a mortalidade infantil. Esta é a principal conclusão de um estudo, conduzido por pesquisadores da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, que relacionou o programa de fiscalização randômico da Controladoria Geral da União (CGU) a uma melhora de índices sociais no país.

Os dados ainda são preliminares e foram disponibilizados em uma plataforma de pré-prints científicos – ou seja, são passíveis de revisão entre os pares –, mas indicam que as auditorias "foram muito importantes para reduzir corrupção e melhorar a alocação de recursos e o uso de recursos públicos nos municípios brasileiros", afirma à DW Brasil um dos autores do estudo, Antonio Pedro Ramos.

"A novidade do nosso trabalho foi mostrar que essas auditorias também tiveram efeito muito positivo na saúde infanto-maternal, principalmente entre crianças não brancas. De acordo com nossas estimativas, os efeitos são duas vezes maiores para crianças não brancas. As auditorias também aumentaram o número de visitas pré-natais e reduziram o número de nascimentos prematuros", afirma Ramos, que é psicólogo, estatístico e cientista político, pesquisador na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, e professor visitante na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro.

Quando os pesquisadores aplicaram um modelo matemático para checar os impactos atribuídos às auditorias realizadas pela CGU no período analisado, constataram que, após as investigações, tais dados tendiam a melhorar nos municípios, o que pode ser entendido como consequência das ações anticorrupção.



O modelo concluiu que, excluindo outras variáveis, os índices tiveram uma redução adicional de 6,7% para a mortalidade neonatal (mortes no primeiro mês de nascimento) em relação aos municípios não auditados; 7,3% para a mortalidade infantil (aqueles que não sobrevivem ao primeiro ano de vida); e 7,3% para a mortalidade de crianças de 1 a 5 anos.

Separando os dados entre brancos e não brancos, a melhoria foi cerca de duas vezes superior no caso dos não brancos: 8,1% contra 3,3% para mortalidade neonatal; 8,2% contra 3,6% para mortalidade infantil; e 8,2% contra 4% no caso de crianças de até cinco anos.

Quanto ao atendimento pré-natal a gestantes, houve uma redução adicional de 12,1% nos casos de grávidas que ficaram sem nenhuma consulta nas localidades que passaram por auditorias em relação às não auditadas. A modelagem matemática também indica que as auditorias contribuíram para uma redução extra de 7,4% os nascimentos prematuros – ou seja, com menos de 37 semanas de gestação.

Os pesquisadores falam em redução adicional, pois o Brasil como um todo apresentou melhora em tais índices desde a década passada. De 2003 a 2015, a mortalidade neonatal caiu de 13 para 10 por cada mil nascidos vivos. Já a mortalidade infantil caiu de 20 para 14 por mil. A mortalidade de crianças de 1 a 5 anos diminuiu de 23 para 17 por mil.

O estudo considerou o recorte temporal de 2003 a 2015 porque foi nesse período que tais auditorias da CGU ocorreram nesse formato. Os municípios eram escolhidos por sorteio público, no mesmo sistema das loterias da Caixa Econômica Federal. No total, foram aferidas 1.949 localidades. A partir de então, o programa foi reorganizado, e a seleção das cidades passou a obedecer critérios demográficos e estatísticos.

Ramos acredita que o formato anterior tinha uma abordagem mais correta, do ponto de vista científico. "É importante ressaltar que o fato de haver um sorteio é crucial para avaliarmos o efeito das auditorias. Sem o sorteio, não seria possível fazermos uma análise causal crível. O sorteio automaticamente cria dois grupos: o de tratamento, no caso os municípios auditados, e o grupo de controle, ou seja, os municípios que não foram auditados", explica.

"Esses grupos são idênticos em todos os aspectos, exceto o tratamento [as auditorias]. É uma situação muito parecida com ensaios clínicos na medicina, que são feitos para avaliar a eficácia de novos remédios."
"Pandemia oculta"

O estudo usa a expressão "pandemia oculta" para falar sobre como a corrupção interfere em questões de saúde. "A corrupção é uma preocupação premente no Brasil contemporâneo", enfatiza o texto preliminar, citando como exemplo a operação Lava Jato.

Em seguida, os pesquisadores destacam casos em que desvios de recursos públicos afetaram diretamente o setor da saúde, como no escândalo conhecido como "sanguessugas" – que veio a público em 2006, sobre uma quadrilha que desviava dinheiro destinado à compra de ambulâncias – e investigações em curso de corrupção durante a pandemia de covid-19.

"Não podemos inferir que o único mecanismo [descoberto pelas auditorias] seja a retirada dos recursos da saúde via corrupção, apesar de este ser um importante mecanismo", diz Ramos. "Há outros possíveis mecanismos: má alocação de recursos por parte dos gestores, ainda que sem a má-fé; ou uma melhora [decorrente das auditorias] na 'qualidade' dos políticos que então passariam a adotar políticas públicas mais voltadas para a saúde infanto-maternal."

Para o pesquisador, um ponto importante é que tais auditorias estimulam a transparência e a responsabilidade de governança das contas públicas por meio dos políticos locais. "No caso da saúde, os resultados corroboram e explicam algo que já suspeitávamos: só enviar recursos para regiões pobres não é efetivo e pode não promover melhorias na saúde."

Procurado pela DW Brasil para comentar a pesquisa, o jurista Carlos Ary Sundfeld, professor da FGV-Direito e especialista em direito público, explica que a CGU é consequência de sucessivas estruturações realizadas desde os anos 1930 pelo Estado brasileiro com o objetivo de racionalizar a administração, em um esforço em deixar para trás "aquela administração patrimonialista e improvisada". "Nos municípios e nos estados mais desorganizados, a penetração de problemas de corrupção tendem a ser maiores", ressalta

"Eles [os auditores] não são xerifes que vão descobrir irregularidades. [As auditorias] são, no fundo, um esforço geral do governo federal de aumentar a qualidade das políticas públicas", contextualiza o jurista. "Provavelmente temos um conjunto de causas que produzem esse impacto positivo."