sexta-feira, 31 de julho de 2020

Brasil do peão boiadeiro


Bolsonaro pode estar certo

Jair Bolsonaro disse que o brasileiro se joga no esgoto e não acontece nada. Bolsonaro deve saber — porque, no caso dele, é verdade. Basta ver seus amigos: políticos rastaqueras, policiais desonestos, milicianos condenados, assessores corruptos e industriais da violência. Até seus ex-vizinhos na Barra têm contas com a lei. Um presidente da República com acusados de assassínio na casa ao lado? Para Bolsonaro, é normal. Imagino seus churrascos com eles no condomínio, discutindo duplas sertanejas, o último programa do Ratinho ou um novo modelo de fuzil.

Daí não surpreende que seu governo inclua as piores pessoas do país. Ele não conhece outras. Dizia-se que dois ou três de seus ministros eram pessoas bem intencionadas. Mas pessoas bem intencionadas não se sentam a uma mesa com Ricardo Salles, Damares Alves, Ernesto Araújo, André Mendonça e Marcelo Álvaro Antônio —como a reunião ministerial de 22 de abril, ainda abrilhantada por Abraham Weintraub, tão bem demonstrou.

Quando Bolsonaro tentou obrigar seu então ministro da Saúde, Henrique Mandetta, a t omar medidas que contrariavam o juramento médico, falou-se que, se se submetesse, Mandetta estaria rasgando seu diploma. Não se submeteu, foi despedido e saiu com o diploma intacto. Seu sucessor, Nelson Teich, também médico e submetido à mesma indignidade, saiu antes de manchar o diploma. O general Eduardo Pazuello, que o substituiu, não tem diploma médico para proteger. Apenas uma farda, que mandará para a lavanderia.

A intimidade com Bolsonaro não compromete só diplomas e fardas. Torna as togas também sujeitas a respingos. Não que alguns de seus ocupantes, como o procurador-geral Augusto Aras, e o presidente do STJ, João Otavio de Noronha, estejam preocupados. A vaga no STF lhes exigirá, de qualquer maneira, uma toga nova.

Pensando bem, todo dia se confirma a frase de Bolsonaro.

Notícias do Arco da Velha

Passamos por um período horroroso, cruel, que nos faz sofrer muito. Difícil escapar da angústia, da tristeza. Dá vontade de não ler os jornais, queremos nos proteger de tanta dor. Mas fica na vontade, pois é impossível deixar de acompanhar o noticiário.

Ignorar o comportamento abissal, vergonhoso, estúpido, das autoridades de nosso país seria deixar de acompanhar o martírio da Nação, deixar de nos solidarizar com nossos irmãos. E também precisamos saber tudo que se passa para tentar nos salvar dessa pandemia, verdadeira praga, castigo dos céus.


O único alento: as pesquisas por vacinas e sua provável chegada dentro de pouco tempo. Modo de falar, pois esse pouco tempo é uma verdadeira eternidade para quem vive por onde anda o vírus infernal.

Vamos aos jornais, pois. E logo nos damos conta de que ao lado do noticiário sobre mortes e mais mortes, damos de cara com novidades do tamanho da mente das pessoas que ocupam os postos máximos no Brasil.

Sem rigor cronológico, apenas com a ajuda de uma memória já bem gasta, vamos pois às notícias saídas do Arco da Velha:

a) O Banco Central vai lançar uma nota de R$200,00. ‘O lobo-guará, animal escolhido para ilustrar a cédula, tem uma forma peculiar de caçar. Eles usam o olfato, mas principalmente a audição (com suas grandes orelhas) para caçar. Quando percebem as presas, saltam para desorientá-las e assim conseguem atacar com maior facilidade’ (Rogério Cunha de Paula, especialista em canídeos.).

b) O inacreditável presidente da República do Brasil, e ex-capitão do Exército, resolveu relaxar numa viagem ao Nordeste, região que não conhecia. Na Bahia, numa pequena cidade chamada Campo Alegre de Lourdes, ele soltou a frase que o definirá para sempre: “Vocês são pessoas iguais às outras quatro regiões do nosso Brasil”. Não é um pensamento magnífico? Digno de quem o expeliu?

c) Bolsonaro critica projeto contra fake news e reclama: ‘não vai poder mais se manifestar sobre nada’. O chefe do Executivo Brasileiro, pelo visto, acha que só pode se manifestar através de notícias falsas. Falar como qualquer outro chefe de Estado, diante de um microfone e aos olhos da Nação que governa, isso seria impensável.

d) Fraudes, roubos, desvios, compras superfaturadas, verba liberada para combater a pandemia guardada numa gaveta misteriosa, são pequenas/gigantescas notícias inseridas entre as notas relatando o número de mortes em tal ou qual dia "em tal ou qual município".

e) Guardei a “mais pior” para o fim. Veja, Leitor, se você consegue decifrá-la. Durante os áureos anos da Lava Jato, as decisões do Juiz Sergio Moro e de sua força tarefa, foram examinadas pelos mais altos tribunais do país. Ele passou glorioso por todas as investigações. Foi considerado o juiz mais brilhante de todos. Elogiado aqui e no resto do mundo. Sua fama era tal, que o candidato magrinho, o Bolsonaro, logo percebeu que sem ele não chegaria nem aos pés da rampa do Planalto. O que fez o ex-capitão? Convenceu o juiz a fazer parte de sua campanha, dando-lhe o cargo de Ministro da Justiça e da Segurança Pública por uns breves anos, até a primeira vaga no STF, que seria dele. A danada da mosca azul pousou em Sergio Moro, que aceitou o convite. Foi seu mal. Até muito pouco tempo atrás, repito, a Lava Jato era exaltada por todos, Moro o super herói de todos. Agora, por motivos que jamais serão expostos em praça pública, auxiliado e incensado pelo estranho PGR Augusto Aras, o que o governo faz é tentar destruir a reputação de Sergio Moro.

Recorde-se que os bolsonaristas gozam da fama de serem ferozes inimigos da corrupção. Durante a campanha exaltaram a Lava Jato por todos os meios ao seu alcance e homenagearam Moro com todas as medalhas em estoque no almoxarifado. E, no entanto, assistem impassíveis à tentativa de destruição de sua obra.

D’ agora em diante, tudo será possível.
Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa

Esfera pública e fake news

Até o século XVIII, a cultura europeia era uma representação da aristocracia da época, que traduzia a imagem de si mesma e dos súditos conforme seus interesses, com demonstrações de poder, desfiles militares, grandes palácios. Até que às tabernas somaram-se os cafés, teatros e salões literários, espaços fora da esfera de poder do Estado, lugares onde as pessoas podiam conversar e debater qualquer assunto de seu interesse, sem os filtros dos cerimoniais. Essa ampliação da “esfera pública” criou oportunidades para o questionamento da cultura representativa do Estado. A literatura e a pintura da época –– não existiam fotografia, cinema, rádio e televisão, muito menos internet — registram essa mudança.

Surgiu um espaço entre a esfera privada e o controle do Estado, que criou oportunidades para o enlace de interesses comuns dos indivíduos, até então contidos no âmbito familiar ou individual, e completamente à margem da esfera oficial. Esse foi um fator decisivo para a Revolução Francesa, em 1789, e suas consequências principais: o surgimento de instituições políticas democraticamente eleitas, tribunais independentes, declarações de direito etc. Um dos estudiosos da esfera pública é o filósofo Jungen Habermas, o teórico da “razão comunicativa”, hoje com 91 anos, um dos representantes vivos da famosa Escola de Frankfurt. Segundo ele, a sociedade é dependente da crítica às suas próprias tradições: os indivíduos precisam questioná-las e mudá-las, via a critica racional. Por isso, na “esfera pública”, surgem novos consensos e possibilidades de mudanças. E a sociedade se fortalece.


Essa conquista parece ameaçada, ironicamente, pela ampliação da própria “esfera pública”, via redes sociais. Esse é um debate que ocorre no mundo, por causa da suspeita de utilização de redes para manipulação da opinião pública e interferência nas eleições, como ocorreu na do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. A “esfera pública” foi ampliada por esse “espaço virtual”, à margem das instituições políticas tradicionais, porém, sob controle dos novos protagonistas da globalização: Google, Facebook, Twitter, Microsoft, Apple, Huawei. Ou seja, empresas em rede constituídas como estruturas supranacionais gigantes.

Aqui no Brasil, a polêmica também esquentou bastante. Discute-se no Congresso uma legislação de combate às fake news, e o Supremo Tribunal Federal (STF) resolveu tirar do ar blogueiros radicais de extrema direita, ligados ao presidente Jair Bolsonaro, cuja eleição também é resultado da emergência das redes sociais na política brasileira e, em parte, da atuação desses blogueiros, financiados por alguns empresários. A decisão cita como titulares das contas a serem suspensas, além do ex-deputado Roberto Jefferson, presidente nacional do PTB, novo aliado de Bolsonaro: Luciano Hang, empresário; Edgard Corona, empresário; Otávio Fakhoury, empresário; Edson Salomão, assessor do deputado estadual de São Paulo Douglas Garcia; Rodrigo Barbosa Ribeiro, assessor do deputado estadual de São Paulo Douglas Garcia; Bernardo Küster, blogueiro; Allan dos Santos, blogueiro; Winston Rodrigues Lima, militar da reserva; Reynaldo Bianchi Júnior, humorista; Enzo Leonardo Momenti, youtuber; Marcos Dominguez Bellizia, porta-voz do movimento Nas Ruas; Sara Giromini; Eduardo Fabris Portella; Marcelo Stachin e Rafael Moreno.

Morais também investiga parlamentares governistas, que tiveram os sigilos fiscal e bancários quebrados: Beatriz Kicis (PSL-DF), Carla Zambelli (PSL-SP), Daniel Silveira (PSL-RJ), Filipe Barros (PSL-PR), Junio Amaral (PSL-MG), Luiz Phillipe de Orleans e Bragança (PSL-SP), deputados federais, e Douglas Garcia (PSL) e Gil Diniz (PSL), deputados estaduais paulistas. A investigação é polêmica, porque envolve a liberdade de expressão e a quebra da imunidade parlamentar. Mas esse debate sobre fake news, no Congresso, deve resultar num novo marco legal sobre o tema.

Recentemente, antevendo a mudança, o Facebook cancelou 35 contas, 14 páginas e um grupo na sua rede social; no Instagram, eliminou 38 contas. O grupo reunia, aproximadamente, 350 pessoas, que eram seguidas por 883 mil bolsonaristas no Facebook e 917 mil no Instagram. As contas canceladas estavam envolvidas com a criação de perfis falsos e “comportamento inautêntico”. Segundo a empresa, foi possível identificar as ligações dessas pessoas com funcionários dos gabinetes do presidente Jair Bolsonaro, do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e também dos deputados estaduais Anderson Moraes e Alana Passos, do PSL no Rio de Janeiro. Tudo junto e misturado.

Pensamento do Dia

Yuri Kosobukin

Bolsonaro e a receita húngara para acabar com a imprensa crítica

“Vocês são uma espécie em extinção. Eu acho que vou botar os jornalistas do Brasil vinculados ao Ibama. Vocês são uma raça em extinção.”
A frase de Jair Bolsonaro ainda pertence à categoria wishful thinking, mas seu governo está empenhado em transformá-la em realidade. De forma geral, políticos encaram a mídia como inimiga. Não entendem por que a imprensa precisa investigar, criticar e fiscalizar os governos. O presidente vai além. Ele quer convencer as pessoas de que quem lê jornais fica “desinformado”, e de que elas deveriam consumir informação diretamente das redes sociais dele e de seus apoiadores, sem filtros.

Outro dia, num raro acesso de bom humor com a imprensa, Bolsonaro aceitou receber repórteres no Alvorada para “chupar uma manga”. Quando os jornalistas se preparavam para entrar no palácio, um apoiador se dirigiu a eles e disse: “Espero que vocês parem de fazer um jornalismo canalha. Espero que tenha manga com veneno para vocês”.

Bolsonaro segue à risca o manual húngaro “Como acabar com a imprensa independente em dez lições”, obra de seu colega populista de direita, o primeiro-ministro Viktor Orbán. Na Hungria, em poucos anos a mídia crítica foi dizimada. Tal como Bolsonaro, Orbán se queixava de que a mídia tradicional era injusta ao atacá-lo e tachava a imprensa independente de “fake news”. Ele então resolveu o “problema”: empresários ligados ao governo e a seu partido, o Fidesz, compraram a maior parte dos veículos de mídia independente, que hoje se dedicam a propagar as ideias caras a Orbán, como demonizar imigrantes e criticar o megainvestidor e filantropo George Soros.

Por mídia independente, entenda-se jornais, televisões, sites noticiosos ou rádios que não deixam de investigar um político só porque ele está no governo, não se curvam a pressões para veicular apenas notícias positivas que se encaixam na narrativa desejada pelo governante da vez, nem se transformam em porta-voz de determinado grupo.

A primeira lição do manual de combate à imprensa é sufocar a mídia em termos econômicos. Os jornais já vivem um contexto financeiro difícil no mundo. Há anos passam por uma crise em seu modelo de negócios. Poucos veículos conseguem ter lucro, mesmo com a combinação de assinaturas e anúncios on-line (que são fagocitados, na maioria, pelas grandes plataformas de tecnologia). Como disse o sociólogo Demétrio Magnoli, “os jornais converteram-se em anões na terra dos gigantes da internet”.



Nos Estados Unidos, entre 2013 e 2018, a receita publicitária dos jornais caiu de 23,6 bilhões de dólares para 14,3 bilhões de dólares. Em 2018, o Google, sozinho, teve 116 bilhões de dólares de faturamento publicitário, e o Facebook faturou 55 bilhões de dólares. Juntos, Google, Facebook e Amazon abocanham quase 70% do toda a receita publicitária on-line.

No Brasil, números sobre a divisão do bolo publicitário ainda não cobrem de forma abrangente o alcance dos anúncios na internet. Mas o levantamento do Cenp-Meios mostra que a participação dos veículos tradicionais de mídia vem caindo. A TV ainda abocanha a maior parte da verba publicitária — 53% a TV aberta e 7% a TV por assinatura em 2019, de janeiro a setembro. Mas a fatia encolheu: em 2017, chegava a 58,7% e 8,5%, respectivamente. Nesse ano, os jornais absorviam 3,3% do gasto em publicidade; as revistas ficavam com 2,1%; o rádio, com 4,6%, e a internet era destino de 14,8%. Em 2019, de janeiro a setembro, o gasto publicitário na internet subiu para 20,7%, o dos jornais caiu para 2,7%; revistas para 1%, e rádio se manteve estável, com 4,6%.

A queda da circulação dos grandes jornais é outra amostra da situação difícil em que se encontra a mídia tradicional. O número total de exemplares (digitais e impressos) de nove grandes jornais brasileiros — Folha de S.Paulo, O Globo, Estado de S. Paulo, Super-Notícia, Zero Hora, Valor Econômico, Correio Braziliense, Estado de Minas e A Tarde — em dezembro de 2014 era de 1712424; em dezembro de 2019, a cifra era 1476303 — queda de 236121 (13,8%).

Acrescente-se a essa fragilidade estrutural um governo aprovando legislação que ameaça a liberdade de imprensa e a viabilidade financeira dos veículos, e está criada a tempestade perfeita. Que já desabou na Hungria e está fustigando o Brasil.

Na Hungria, Orbán baixou uma série de leis que previam multas para veículos de mídia que fizessem “cobertura desequilibrada”, “insultuosa” ou em violação à “moralidade pública”. A legislação obriga a mídia a fazer cobertura “confiável, rápida e precisa” das notícias — do ponto de vista do governo, claro. Além disso, o húngaro recorre a um instrumento básico de intimidação: corte de anúncios do governo em mídia não alinhada ao partido no poder.

No Brasil, Bolsonaro ameaçou cortar publicidade na mídia “inimiga” e cumpriu a promessa já no primeiro ano de governo. Relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) revelou que o governo passou a destinar os maiores percentuais de verba publicitária para a tv Record e o SBT — emissoras consideradas aliadas ao Planalto, mas que não são líderes de audiência.

Embora detentora do maior ibope do país, a Globo passou a ter participação bem menor no bolo. De acordo com reportagem da Folha, em 2017 a Globo ficou com 48,5% dos recursos do governo e, em 2018, 39,1%. Em 2019, com base em dados parciais, a fatia despencou para 16,3%. Os percentuais da Record foram de 26,6% em 2017, 31,1% em 2018 e, agora, 42,6%; os do sbt, 24,8%, 29,6% e 41%, respectivamente. Nos meios impressos críticos, anúncios do governo brasileiro e de estatais secaram.

Também foram adotadas na Hungria várias medidas que dificultam a aplicação de leis de acesso à informação, instrumento essencial para assegurar a transparência dos atos do governo e sua responsabilização. Isso quase ocorreu no Brasil, mas o Congresso brecou no início de 2019. Em 2020 Bolsonaro tentou de novo com uma medida provisória, com a desculpa de ser necessária em decorrência da epidemia do coronavírus — e foi suspensa por um dos juízes do Supremo Tribunal Federal.

Bolsonaro baixou medidas tendo em vista se vingar da imprensa que julga “injusta”. Em agosto de 2019, assinou uma medida provisória que acabava com a obrigação das empresas de capital aberto de publicar seus balanços em jornais de grande circulação; a partir de então, elas poderiam publicá-los sem ônus no site da Comissão de Valores Mobiliários, CVM.

A publicação de balanços é fonte importante de receita para vários veículos. Essa mudança já estava prevista, e é natural, uma vez que a migração para o on-line é tendência inexorável. Ela seria implementada de maneira mais gradual, porém. De acordo com a legislação aprovada pelo Congresso e sancionada pelo próprio presidente em abril, a publicação dos balanços em jornais de grande circulação ainda seria exigida até 31 de dezembro de 2021. Medidas provisórias têm efeito imediato após serem publicadas e precisam ser aprovadas em até 120 dias pelo Congresso para não perderem a validade. De propósito o Congresso perdeu o prazo de votar essa MP da desobrigação de publicar os balanços impressos e ela caducou em dezembro de 2019.

O presidente brasileiro não deixou dúvidas sobre sua motivação para a medida provisória: “No dia de ontem eu retribuí parte daquilo que a grande mídia me atacou. Assinei uma medida provisória fazendo com que os empresários que gastavam milhões de reais ao publicar obrigatoriamente por força de lei seus balancetes agora podem fazê-lo no Diário Oficial da União a custo zero”, disse na época.

Ameaçou o Valor Econômico em especial, dizendo “espero que sobreviva à MP de ontem”, e criticou supostas entrevistas que o jornal teria feito com ele, com declarações cheias de imprecisões. E, logo depois, em meio à polêmica mundial sobre suas políticas antiambientais, afirmou: “Nós estamos ajudando a não desmatar e estamos facilitando a vida dos empresários”. Segundo informou o Valor, o papel utilizado pela imprensa é produzido no Brasil e provém de reflorestamento, ou seja, não causa desmatamento. Por sua vez, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ponderou que “retirar receitas dos jornais do dia para a noite” não era uma boa ideia.

Em setembro de 2019, Bolsonaro voltou à carga e editou uma medida provisória que dispensava a publicação de editais de licitação, concursos e tomadas de preços em jornais diários de grande circulação. Pela proposta, esses comunicados deveriam ser publicados apenas na imprensa oficial. O texto foi suspenso por liminar do ministro Gilmar Mendes, do STF, em outubro.

O Congresso e o Supremo Tribunal Federal têm cumprido seu papel de agir como freios e contrapesos, barrando as medidas presidenciais mais autoritárias contra a imprensa. Mas isso não significa que Bolsonaro tenha sido neutralizado. O presidente e seu secretário de Comunicação, Fabio Wajngarten, passaram a pressionar anunciantes privados para não fecharem contratos de publicidades com alguns jornais e TVs. “Parte da mídia ecoa fake news, ecoa manchetes escandalosas, perdeu o respeito, a credibilidade [e] a ética jornalística. Que os anunciantes que fazem a mídia técnica tenham consciência de analisar cada um dos veículos de comunicação para não se associarem a eles preservando suas marcas”, disse Wajngarten, que, à frente da Secretaria de Comunicação, controla as verbas de propaganda do governo.

Já Bolsonaro, após a Folha ter publicado uma reportagem investigativa não favorável a ele, incitou anunciantes e leitores a boicotarem o jornal. “Eu não quero ler a Folha mais. E ponto-final. E nenhum ministro meu. Recomendo a todo Brasil aqui que não compre o jornal Folha de S.Paulo. Até eles aprenderem que tem uma passagem bíblica, a João 8:32 [E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará]. A imprensa tem a obrigação de publicar a verdade. Só isso. E os anunciantes que anunciam na Folha também”, afirmou. “Qualquer anúncio que faz na Folha de S.Paulo eu não compro aquele produto e ponto final. Eu quero imprensa livre, independente, mas, acima de tudo, que fale a verdade. Estou pedindo muito?”
Patricia Campos Mello, autora de "A Máquina do Ódio"

Sucesso bolsonarista

O Brasil é o atual epicentro da pandemia, mas muitos líderes atuais continuam a demonstrar descaso, irresponsabilidade com a população, indo na contramão das recomendações dos principais órgãos de controle e especialistas
Carolina Lucas, brasileira integrante integra de grupo de pesquisadores da Universidade de Yale

No governo Bolsonaro, servidor público antifascista inspira cuidados

A Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça admitiu que monitora 579 funcionários públicos federais que se declararam antifascistas nas redes sociais. A intenção da medida, segundo a Secretaria, é “prevenir práticas ilegais” e garantir a segurança. Não especificou que “práticas ilegais” os antifascistas costumam cometer. E por que elas ameaçam a segurança.

Por sinal, segurança de quem? Das autoridades constituídas em geral? Do presidente da República em particular? Do Estado como um todo? Quem sabe do planeta, uma vez que as redes sociais aproximam as pessoas e é possível que existam antifascistas em toda parte? Por que ser antifascista é algo perigoso? Aos olhos de quem? Está escrito em que lei, norma ou portaria?

Providência similar não foi tomada pela mesma Secretaria contra funcionários públicos que se declararam fascistas nas redes sociais. É de supor-se, portanto, que esses não representam uma ameaça, quando nada ao governo do presidente Jair Bolsonaro. Ou vai ver que o serviço público está livre de fascistas. Ou que fascistas sejam mais prudentes e prefiram não se assumir como tal.

Resta outra hipótese: por razões ainda não suficientemente estudadas, os fascistas do serviço público e o governo Bolsonaro descobriram surpresos que compartilham os mesmos propósitos. Assim não haveria por que o Ministério da Justiça despender tempo e dinheiro vigiando-os. Para quê? Falam a mesma língua. Entendem-se bem. Os antifascistas é que devem se cuidar.

Nada de usarem as redes sociais para dizerem que são contra o fascismo, uma “ideologia política ultranacionalista e autoritária caracterizada por poder ditatorial, repressão da oposição por via da força e forte arregimentação da sociedade e da economia”. Nada de assinarem manifestos condenando outras ideologias que guardem alguma semelhança com o fascismo.

Os celulares já não inspiram confiança e a escuta se faz, hoje, a longas distâncias. Seu melhor amigo pode delatá-lo amanhã. Evitem estranhos. Evitem jogar conversa fora. Conversas cifradas podem facilmente ser decifradas. Vejam se não estão sendo seguidos. Aproveitem esses tempos de pandemia e usem máscara até que tudo isso passe. Com fé em Deus e no voto, vai passar.

Imperialismo High-Tech

Muitas palavras já foram escritas para definir o megaempresário Elon Musk, cujos negócios vão de carros elétricos e trens ultrarrápidos a viagens espaciais. Ele precisou de apenas nove para definir a sua visão de mundo: “We will coup whoever we want! Deal with it”. Alguma coisa como “vamos derrubar quem quisermos, lide com isso”, em tradução livre.

Foi sua maneira de responder, no Twitter, a uma crítica à suposta participação norte-americana no movimento que levou à queda do então presidente Evo Morales, na Bolívia, em novembro do ano passado. Segundo o autor da crítica, o golpe teria como objetivo garantir o acesso do empresário às reservas de lítio no país vizinho.

A Tesla, que integra o império empresarial de Musk, fabrica os mais lindos e desejados carros elétricos dos Estados Unidos. Os carros fazem parte dos sonhos de consumo de quem tem uma boa conta no banco e preocupações ambientais.

O que poderia haver de mais moderno? Além de atraírem olhares por onde passam, os veículos não produzem ruído nem emitem gás carbônico. Garantem um selo de ambientalista consciente a quem se senta ao volante.

Para colocar os carros elétricos nas ruas, porém, os fabricantes precisam ter acesso a minerais como o lítio – e em grande escala. Essa dependência já levou alguns críticos a estabelecer um paralelo entre a atual dependência por petróleo e a futura dependência por lítio. A relação não é tão direta, mas aponta para um novo eixo geopolítico.


A China tem grandes reservas, embora ainda importe muito lítio da Austrália para alimentar as suas próprias fábricas de carros elétricos e outros produtos industriais de alta tecnologia. Os interesses estratégicos dessa indústria, porém, tendem a se deslocar nos próximos anos do Pacífico para a América do Sul, especialmente para o trio Argentina-Bolívia-Chile.

O Chile é atualmente o segundo maior produtor, e suas reservas no deserto de Atacama são apontadas como as maiores do mundo. A Argentina ocupa a posição de terceiro maior produtor, enquanto suas reservas estariam na quinta posição mundial.

E a Bolívia? Ali podem estar jazidas de lítio ainda maiores, calculadas hoje em nove milhões de toneladas, mas que podem vir a alcançar 21 milhões segundo informa a publicação Foreign Policy, baseada em informações a serem divulgadas pelo U.S. Geological Survey.

As jazidas estão localizadas no Salar de Uyuni, até hoje uma grande atração turística, a 3600 metros de altitude. Sua exploração poderia ajudar o governo boliviano a retirar milhões de pessoas da pobreza. Assim como atrair a cobiça de grandes empresas mundiais, como a Tesla de Elon Musk.

Logo depois da provocação feita pelo empresário pelo Twitter, o ex-presidente Evo Morales apressou-se a usar o fato para fortalecer seu argumento de que teria sido vítima de um golpe de Estado, promovido por interesses econômicos. “Outra prova a mais de que o golpe foi pelo lítio boliviano”, escreveu Morales nas redes sociais.

Musk logo respondeu que compra lítio da Austrália, e não da Bolívia. Nem poderia. A produção comercial boliviana está apenas começando, com a ajuda de investimentos chineses. Na verdade, o projeto do governo anterior era o de fabricar baterias para carros elétricos ali mesmo, em solo boliviano, e não apenas exportar o mineral.

Morales indicava ser menos amigável aos interesses norte-americanos que Chile e Argentina. Pretendia usar o lítio como um passaporte para tirar seu país da condição de um dos mais pobres do mundo.

Por tudo isso, a sua renúncia em novembro, após forte pressão das Forças Armadas, fortaleceu a hipótese de um golpe motivado pelo interesse em minério. Um golpe que seria como um neto do que derrubou Salvador Allende, em 1973, no Chile que então era estratégico pela produção de cobre – assim como será pela de lítio.

Em seu recente artigo para a Foreign Policy, “O Lítio da Bolívia não é o novo petróleo”, o especialista em Geoeconomia Keith Johnson e o editor James Palmer refutam o argumento de que a queda de Morales estaria ligada a interesses estrangeiros contrariados.

Segundo os articulistas, o ex-presidente boliviano assinou contratos no valor de US$ 3 bilhões para a exploração de lítio com uma empresa da China e outra da Alemanha. Sua queda ocorreu semanas depois do cancelamento do contrato com a empresa alemã.

Ele estaria às voltas, nesse período, exatamente com um protesto de habitantes da região de Potosí que não se sentiam convencidos dos benefícios que poderiam vir a ter com o investimento alemão. Para os autores, a atuação de mineradoras chinesas na Mongólia “tem reputação tão pobre como a de multinacionais ocidentais no respeito às necessidades locais”.

Por sua vez, Morales admitiu ao jornal alemão Zeit que errou ao se candidatar a um quarto mandato consecutivo, apesar de uma decisão em contrário do Tribunal Constitucional da Bolívia. Mas contestou as acusações de fraude na sua eleição. As novas eleições no país acabam de ser adiadas mais uma vez, desta vez para 18 de outubro.

Ainda é cedo para dizer como e por quem serão exploradas as jazidas de “ouro branco”, nos salares brancos da Bolívia, cuja beleza atrai visitantes de todo o mundo e onde um dia houve um mar. Os sais de lítio seriam remanescentes dos tempos em que a região era um grande reservatório de água.

As nove palavras de Elon Musk, porém, indicam que a exploração do mineral que alimentará as baterias dos carros do século 21 precisa ser acompanhada de práticas igualmente contemporâneas.

Não cabe neste novo século o mesmo comportamento intervencionista que grandes países ocidentais adotaram no passado para exploração mineral. Nem pode ser aceita a mineração que não leva em conta o bem-estar das comunidades locais.

O argumento vale para a exploração mineral em terras indígenas, que o presidente Jair Bolsonaro quer ver regulamentada pelo Congresso Nacional.
Marcos Magalhães