“Vocês são uma espécie em extinção. Eu acho que vou botar os jornalistas do Brasil vinculados ao Ibama. Vocês são uma raça em extinção.”A frase de Jair Bolsonaro ainda pertence à categoria wishful thinking, mas seu governo está empenhado em transformá-la em realidade. De forma geral, políticos encaram a mídia como inimiga. Não entendem por que a imprensa precisa investigar, criticar e fiscalizar os governos. O presidente vai além. Ele quer convencer as pessoas de que quem lê jornais fica “desinformado”, e de que elas deveriam consumir informação diretamente das redes sociais dele e de seus apoiadores, sem filtros.
Outro dia, num raro acesso de bom humor com a imprensa, Bolsonaro aceitou receber repórteres no Alvorada para “chupar uma manga”. Quando os jornalistas se preparavam para entrar no palácio, um apoiador se dirigiu a eles e disse: “Espero que vocês parem de fazer um jornalismo canalha. Espero que tenha manga com veneno para vocês”.
Bolsonaro segue à risca o manual húngaro “Como acabar com a imprensa independente em dez lições”, obra de seu colega populista de direita, o primeiro-ministro Viktor Orbán. Na Hungria, em poucos anos a mídia crítica foi dizimada. Tal como Bolsonaro, Orbán se queixava de que a mídia tradicional era injusta ao atacá-lo e tachava a imprensa independente de “fake news”. Ele então resolveu o “problema”: empresários ligados ao governo e a seu partido, o Fidesz, compraram a maior parte dos veículos de mídia independente, que hoje se dedicam a propagar as ideias caras a Orbán, como demonizar imigrantes e criticar o megainvestidor e filantropo George Soros.
Por mídia independente, entenda-se jornais, televisões, sites noticiosos ou rádios que não deixam de investigar um político só porque ele está no governo, não se curvam a pressões para veicular apenas notícias positivas que se encaixam na narrativa desejada pelo governante da vez, nem se transformam em porta-voz de determinado grupo.
A primeira lição do manual de combate à imprensa é sufocar a mídia em termos econômicos. Os jornais já vivem um contexto financeiro difícil no mundo. Há anos passam por uma crise em seu modelo de negócios. Poucos veículos conseguem ter lucro, mesmo com a combinação de assinaturas e anúncios on-line (que são fagocitados, na maioria, pelas grandes plataformas de tecnologia). Como disse o sociólogo Demétrio Magnoli, “os jornais converteram-se em anões na terra dos gigantes da internet”.
Nos Estados Unidos, entre 2013 e 2018, a receita publicitária dos jornais caiu de 23,6 bilhões de dólares para 14,3 bilhões de dólares. Em 2018, o Google, sozinho, teve 116 bilhões de dólares de faturamento publicitário, e o Facebook faturou 55 bilhões de dólares. Juntos, Google, Facebook e Amazon abocanham quase 70% do toda a receita publicitária on-line.
No Brasil, números sobre a divisão do bolo publicitário ainda não cobrem de forma abrangente o alcance dos anúncios na internet. Mas o levantamento do Cenp-Meios mostra que a participação dos veículos tradicionais de mídia vem caindo. A TV ainda abocanha a maior parte da verba publicitária — 53% a TV aberta e 7% a TV por assinatura em 2019, de janeiro a setembro. Mas a fatia encolheu: em 2017, chegava a 58,7% e 8,5%, respectivamente. Nesse ano, os jornais absorviam 3,3% do gasto em publicidade; as revistas ficavam com 2,1%; o rádio, com 4,6%, e a internet era destino de 14,8%. Em 2019, de janeiro a setembro, o gasto publicitário na internet subiu para 20,7%, o dos jornais caiu para 2,7%; revistas para 1%, e rádio se manteve estável, com 4,6%.
A queda da circulação dos grandes jornais é outra amostra da situação difícil em que se encontra a mídia tradicional. O número total de exemplares (digitais e impressos) de nove grandes jornais brasileiros — Folha de S.Paulo, O Globo, Estado de S. Paulo, Super-Notícia, Zero Hora, Valor Econômico, Correio Braziliense, Estado de Minas e A Tarde — em dezembro de 2014 era de 1712424; em dezembro de 2019, a cifra era 1476303 — queda de 236121 (13,8%).
Acrescente-se a essa fragilidade estrutural um governo aprovando legislação que ameaça a liberdade de imprensa e a viabilidade financeira dos veículos, e está criada a tempestade perfeita. Que já desabou na Hungria e está fustigando o Brasil.
Na Hungria, Orbán baixou uma série de leis que previam multas para veículos de mídia que fizessem “cobertura desequilibrada”, “insultuosa” ou em violação à “moralidade pública”. A legislação obriga a mídia a fazer cobertura “confiável, rápida e precisa” das notícias — do ponto de vista do governo, claro. Além disso, o húngaro recorre a um instrumento básico de intimidação: corte de anúncios do governo em mídia não alinhada ao partido no poder.
No Brasil, Bolsonaro ameaçou cortar publicidade na mídia “inimiga” e cumpriu a promessa já no primeiro ano de governo. Relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) revelou que o governo passou a destinar os maiores percentuais de verba publicitária para a tv Record e o SBT — emissoras consideradas aliadas ao Planalto, mas que não são líderes de audiência.
Embora detentora do maior ibope do país, a Globo passou a ter participação bem menor no bolo. De acordo com reportagem da Folha, em 2017 a Globo ficou com 48,5% dos recursos do governo e, em 2018, 39,1%. Em 2019, com base em dados parciais, a fatia despencou para 16,3%. Os percentuais da Record foram de 26,6% em 2017, 31,1% em 2018 e, agora, 42,6%; os do sbt, 24,8%, 29,6% e 41%, respectivamente. Nos meios impressos críticos, anúncios do governo brasileiro e de estatais secaram.
Também foram adotadas na Hungria várias medidas que dificultam a aplicação de leis de acesso à informação, instrumento essencial para assegurar a transparência dos atos do governo e sua responsabilização. Isso quase ocorreu no Brasil, mas o Congresso brecou no início de 2019. Em 2020 Bolsonaro tentou de novo com uma medida provisória, com a desculpa de ser necessária em decorrência da epidemia do coronavírus — e foi suspensa por um dos juízes do Supremo Tribunal Federal.
Bolsonaro baixou medidas tendo em vista se vingar da imprensa que julga “injusta”. Em agosto de 2019, assinou uma medida provisória que acabava com a obrigação das empresas de capital aberto de publicar seus balanços em jornais de grande circulação; a partir de então, elas poderiam publicá-los sem ônus no site da Comissão de Valores Mobiliários, CVM.
A publicação de balanços é fonte importante de receita para vários veículos. Essa mudança já estava prevista, e é natural, uma vez que a migração para o on-line é tendência inexorável. Ela seria implementada de maneira mais gradual, porém. De acordo com a legislação aprovada pelo Congresso e sancionada pelo próprio presidente em abril, a publicação dos balanços em jornais de grande circulação ainda seria exigida até 31 de dezembro de 2021. Medidas provisórias têm efeito imediato após serem publicadas e precisam ser aprovadas em até 120 dias pelo Congresso para não perderem a validade. De propósito o Congresso perdeu o prazo de votar essa MP da desobrigação de publicar os balanços impressos e ela caducou em dezembro de 2019.
O presidente brasileiro não deixou dúvidas sobre sua motivação para a medida provisória: “No dia de ontem eu retribuí parte daquilo que a grande mídia me atacou. Assinei uma medida provisória fazendo com que os empresários que gastavam milhões de reais ao publicar obrigatoriamente por força de lei seus balancetes agora podem fazê-lo no Diário Oficial da União a custo zero”, disse na época.
Ameaçou o Valor Econômico em especial, dizendo “espero que sobreviva à MP de ontem”, e criticou supostas entrevistas que o jornal teria feito com ele, com declarações cheias de imprecisões. E, logo depois, em meio à polêmica mundial sobre suas políticas antiambientais, afirmou: “Nós estamos ajudando a não desmatar e estamos facilitando a vida dos empresários”. Segundo informou o Valor, o papel utilizado pela imprensa é produzido no Brasil e provém de reflorestamento, ou seja, não causa desmatamento. Por sua vez, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ponderou que “retirar receitas dos jornais do dia para a noite” não era uma boa ideia.
Em setembro de 2019, Bolsonaro voltou à carga e editou uma medida provisória que dispensava a publicação de editais de licitação, concursos e tomadas de preços em jornais diários de grande circulação. Pela proposta, esses comunicados deveriam ser publicados apenas na imprensa oficial. O texto foi suspenso por liminar do ministro Gilmar Mendes, do STF, em outubro.
O Congresso e o Supremo Tribunal Federal têm cumprido seu papel de agir como freios e contrapesos, barrando as medidas presidenciais mais autoritárias contra a imprensa. Mas isso não significa que Bolsonaro tenha sido neutralizado. O presidente e seu secretário de Comunicação, Fabio Wajngarten, passaram a pressionar anunciantes privados para não fecharem contratos de publicidades com alguns jornais e TVs. “Parte da mídia ecoa fake news, ecoa manchetes escandalosas, perdeu o respeito, a credibilidade [e] a ética jornalística. Que os anunciantes que fazem a mídia técnica tenham consciência de analisar cada um dos veículos de comunicação para não se associarem a eles preservando suas marcas”, disse Wajngarten, que, à frente da Secretaria de Comunicação, controla as verbas de propaganda do governo.
Já Bolsonaro, após a Folha ter publicado uma reportagem investigativa não favorável a ele, incitou anunciantes e leitores a boicotarem o jornal. “Eu não quero ler a Folha mais. E ponto-final. E nenhum ministro meu. Recomendo a todo Brasil aqui que não compre o jornal Folha de S.Paulo. Até eles aprenderem que tem uma passagem bíblica, a João 8:32 [E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará]. A imprensa tem a obrigação de publicar a verdade. Só isso. E os anunciantes que anunciam na Folha também”, afirmou. “Qualquer anúncio que faz na Folha de S.Paulo eu não compro aquele produto e ponto final. Eu quero imprensa livre, independente, mas, acima de tudo, que fale a verdade. Estou pedindo muito?”Patricia Campos Mello, autora de "A Máquina do Ódio"
Nenhum comentário:
Postar um comentário