quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Conto Verde

Estranha é a cabeça das pessoas.


Uma vez, em São Paulo, morei numa rua que era dominada por uma árvore incrível. Na época de floração, ela enchia a calçada de cores. Para usar um lugar-comum, ficava sobre o passeio um verdadeiro tapete de flores; esquecíamos o cinza que nos envolvia e vinha do asfalto, do concreto, do cimento, os elementos característicos desta cidade.

Percebi, certo dia, que a árvore começava a morrer. Secava lentamente, até que amanheceu inerte, em folha. "É um ciclo, ela renascerá", comentávamos no bar ou na padaria. Não voltou. Pedi ao Instituto Botânico que analisasse a árvore, e o técnico concluiu: fora envenenada.

Surpresos, nós, os moradores da rua, que tínhamos a árvore como verdadeiro símbolo, começamos a nos lembrar de uma vizinha de meia-idade que todas as manhãs estava ao pé da árvore com um regador. Cheios de suspeitas, fomos até ela, indagamos, e ela respondeu com calma, os olhos brilhando, agressivos e irritados:

- Matei mesmo aquela maldita árvore.

- Por quê?

- Porque na época da flor ela sujava minha calçada, eu vivia varrendo essas flores desgraçadas.
Ignácio de Loyola Brandão

Arrogantes príncipes principiantes

Na quinta-feira passada, durante uma sustentação oral no Supremo Tribunal Federal (STF), o advogado Hery Waldir Kattwinkel escorregou numa gafe traumática e, não obstante, hilária: confundiu o livro O Príncipe, do italiano Nicolau Maquiavel, publicado no século XVI, com o best-seller do século 20 O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry. Foi uma passagem ligeira, coisa de poucos segundos, quase um lapso de oratória. Lá pelas tantas, ele citou, veja você, “O Pequeno Príncipe de Maquiavel”. Suma batatada. O próprio ministro Alexandre de Moraes, que, além de magistrado, é professor de Direito, cuidou de repreendê-lo, mal escondendo um ar de divertimento de foro íntimo. A partir daí, em poucos minutos, o orador de toga lustrosa virou chacota nacional.

O causídico bem que poderia ter passado sem essa. Teria sido melhor para si e para seu cliente, o produtor rural Thiago de Assis Mathar, que terminou o dia condenado por cinco crimes, entre eles golpe de Estado e associação criminosa armada. Tomou 14 anos de prisão, tornando-se responsável por tudo aquilo que depredou.


Piadas à parte, é preciso respeitar os que perdem a liberdade por decisão de um tribunal, mesmo quando a sentença é justa. Mais ainda, é preciso respeitar seus advogados, mesmo quando fracassam. A isso se resume o propósito deste artigo. O que importa aqui não é o tropeção em mau juridiquês, não é a reprimenda do ministro, não é a condenação do réu. Só o que importa é o respeito – ou a falta que ele nos faz. A arrogância ensurdecedora com que foi tratado o sujeito que embaralhou o príncipe da política com aquele outro, o pequenino, xodó das misses, deveria nos levar a refletir sobre crueldade e sectarismo. Vamos mal nesse quesito.

Em cada zombaria que ainda circula na internet dá para notar o indisfarçável sentimento de superioridade dos que fazem bullying contra o operador do direito que perorou de mau jeito. Ele deu um mau passo, é verdade, mais do que um passo ruim, mas não merecia tanto enxovalho. Ninguém merece.

E seus algozes, serão melhores, por acaso? De uma hora para outra, gente que nunca leu uma linha de Nicolau Maquiavel se sentiu no direito de tripudiar sobre a ignorância do outro. Da noite para o dia, o Brasil inteiro se descobriu versado nas letras inaugurais da Ciência Política, com suas sutilezas finas, seus pontos cegos traiçoeiros e seus picos de puro brilho, inalcançáveis para o senso comum. Ora, quem são os detratores do infeliz doutor? Eruditos, todos eles eruditos até não mais poder. Ao menos é como se veem.

Quem são esses que gargalham sem polidez? Ora, são os novos “príncipes”. Sim, são “todos eles príncipes”, como escreveu Fernando Pessoa no Poema em Linha Reta. Todos eles são muito melhores do que todos os outros que não são eles. Todos eles nobres, poliglotas e propedeutas. Todos eles herdeiros supremos do pensamento ocidental. Todos eles luminares do Renascimento. O orador no Supremo pode desconhecer a virtù e a fortuna, mas eles, não, nunca. Exímios estudiosos da força do leão e da astúcia da raposa, todos eles são íntimos dos Medici.

E aqui estamos nós, às voltas com os principiantes em artes das quais mal supõem a dimensão. O improvável leitor pode achar que é exagero dedicar tantos parágrafos à petulância dos que agora bradam em nome Maquiavel, sem jamais ter segurado nas mãos um livro de Maquiavel, mas não vai aqui exagero nenhum. Nos pormenores insignificantes dos dias pálidos se escondem chaves da treva que permanece, e na empáfia rude, inculta e sádica dos principiantes se concentra um dos males mais corrosivos da “polarização” que nos cindiu.

Os que se sentem moralmente superiores também se sentem culturalmente superiores. São eles que, do alto de sua ilusão de plena potência, agora escarnecem dos seres que veem como inferiores. Não percebem que, nos supostamente inferiores, execram e procuram extirpar o que não reconhecem pulsando em si mesmos. A ignorância do outro é a própria, da qual se envergonham sem dela se dar conta.

Pois essa arrogância – embora explicável, compreensível, posto que reativa – vem dando uma enorme contribuição para dividir ainda mais o Brasil. Seus agentes não sabem disso, mas fazem isso. Para eles, ou para quase todos eles, a inteligência que os distingue vai salvar a pátria. Arrogantes? Não, eles não se descrevem assim. Eles são apenas predestinados.

Ninguém dentre eles jamais citou um livro errado, jamais se referiu a um autor que não existe, jamais declamou um verso com rima torta. Não, isso nunca. Todos eles são, mais do que maquiavélicos, maquiavelianos e maquiavelinos. Tomam os próprios fins como fins mais legítimos que os fins dos outros. Pior de tudo: a exemplo do doutor que discursou no STF, acreditam que o pensador florentino ensinou que “os fins justificam os meios” – frase que não aparece em O Príncipe, nem no grande nem no pequeno. Não sabem que para Maquiavel nem todos os meios são aceitáveis, e muito menos todos os fins. Não se sabem moralistas da política, e falam como intérpretes daquele que mais combateu o moralismo na política.