domingo, 28 de abril de 2019

Tudo ou nada

Apesar de ainda não ter edição no Brasil, recomenda-se a Hamilton Mourão, ao quarteto Bolsonaro e às vivandeiras políticas nacionais um livro de cabeceira de utilidade imediata: “First in Line: Presidents, Vice-Presidents and the Pursuit of Power” ("Primeiros da Fila: Presidentes, Vices e a Busca do Poder"), da jornalista americana Kate Andersen Brower. A obra analisa a trajetória malabarista dos 13 homens que ocuparam a vice-presidência dos Estados Unidos entre 1953 até hoje. Ela destrincha a natureza do cargo cujo primeiro ocupante, John Adams, definiu-se nos seguintes termos ainda no século 18: “Sou vice-presidente. E assim sendo, não sou nada. Mas posso ser tudo”.

A definição é mais atual do que nunca, tanto lá como cá. Nos Estados Unidos, pelo lançamento esta semana da candidatura democrata de Joe Biden, que pela terceira vez tenta chegar à Casa Branca — agora com o currículo acrescido de oito anos como vice de Barack Obama. A atenção geral também está voltada ao desempenho do atual ocupante do cargo, Mike Pence, devido à governança ciclotímica do presidente Donald Trump.


No Brasil, o foco da semana esteve em Hamilton Mourão. Ou melhor, nas intrigas e embates explícitos, quase psiquiátricos, que sua recente encarnação como “poder moderador”, ou “traidor”, tem gerado. Má notícia para quem avalia que as desconfianças intestinas haverão de serenar com o tempo. O livro citado demonstra que à exceção de um caso, em todos os governos dos EUA desde 1953 (Dwight Eisenhower/ Richard Nixon), as relações entre presidente e vice tendem a se deteriorar com o passar dos anos. O titular vive no presente, o vice opera com o futuro, e analisa o quanto as políticas do chefe afetarão suas chances de algum dia ocupar o cargo. Neste exercício contínuo de equilibrismo, todo vice-presidente traz à mente do presidente a sua mortalidade política. Ou a sua mortalidade física mesmo. Como comentou George W.H. Bush (vice de Ronald Reagan) em tom semi-ácido ao ser informado do falecimento de um chefe de Estado estrangeiro, “You die, I fly”( "Você morre, eu levanto voo"). Referia-se à função do vice de assistir a funerais oficiais de segunda classe.

A exceção à regra foi o duo Obama/Biden, cuja relação tanto pessoal como de confiança institucional cimentou-se com o tempo. Quase não se conheciam ao assumirem os cargos, e como Biden fora um dos concorrentes derrotados para a indicação democrata, o entrosamento inicial não foi suave. Segundo relato de Ron Klain, chefe de gabinete de Biden, Obama definiu o papel de cada um na Casa Branca nos seguintes termos: “Esta é a minha casa, Joe, e estas são as minhas coisas. Tenho grande interesse em seus pontos de vista, gosto de seus argumentos e quero que se sinta feliz aqui. Mas você é um hóspede na minha casa”. O grande diferencial neste caso foi a confiança mútua de lealdade, habitual centro nevrálgico de crises entre titular e suplente.

Em café da manhã com jornalistas esta semana, o presidente Jair Bolsonaro recorreu à surrada comparação das dificuldades de governança a um casamento. E acrescentou, não se sabe se em referência a Luís XIV, que “vice é sempre uma sombra e, às vezes, não se guia de acordo com o sol”. Só que na outra ponta da equação está um ocupante de cargo que não pode ser demitido, e aprecia o papel de indecifrável.

Em condições normais de temperatura democrática, ensina a autora de “First in Line”, o mais difícil para um vice em exercício é concorrer e vencer uma eleição para presidente quando expira o mandato do titular. Dos 14 que chegaram à Casa Branca em mais de 200 anos de história dos Estados Unidos, apenas 4 conseguiram essa passagem direta através das urnas — os demais assumiram o poder por morte ou renúncia do ocupante do cargo, ou foram eleitos quando já não eram mais vices. No Brasil, não há caso de vice em exercício que tenha obtido o aval do presidente a quem serve para sair candidato, e ser seu sucessor.

No fundo, a job description de um vice cabe na definição sumária do historiador Arthur Schlesinger Jr: “Um cargo de frustração espetacular e, a meu ver, incurável”. Para presidentes inseguros com filhos vigilantes, um perigo.

Brasil transparente


Um delírio ambiental

Não tem risco de dar certo a intervenção policial-militar do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), com a nomeação de um coronel, dois tenentes-coronéis e dois majores da Polícia Militar de São Paulo para comandar a instituição. A transformação do tema da sustentabilidade num caso de polícia, por capricho pessoal do ministro, não tem precedentes na história das políticas públicas ambientais do país, inauguradas no governo José Sarney, quando foi lançado o programa Nossa Natureza, do qual resultou a fusão de vários órgãos e a criação do Ibama.


Nada contra os militares individualmente, até porque são homens que atuaram intensamente no policiamento florestal. Entretanto, a área exige interdisciplinaridade para uma boa gestão, o que a formação policial simplesmente não garante, embora seja importante para combater os crimes ambientais. Como diria o falecido astrofísico norte-americano Carl Sagan, é o tipo de decisão que somente pode ser atribuída ao “analfabetismo científico”, que está em alta em razão dos conceitos estapafúrdios do presidente Donald Trump, dos Estados Unidos, com repercussão mundial desde a saída do governo norte-americano do Acordo de Paris.

A propósito de um comentário de Platão sobre o ensino de matemática às crianças do Egito Antigo, Sagan dizia que a ignorância em ciência e matemática nos dias atuais é muito mais danosa do que em qualquer outra época. A raiz dos problemas ambientais brasileiros é uma cultura atrasada, que estimula e protege agressões ao meio ambiente, muitas vezes insanáveis, tanto no meio urbano como no rural. É por isso que muitos ignoram e negam o aquecimento global, a diminuição da camada de ozônio, a poluição do ar, o lixo tóxico e radioativo, a chuva ácida, a erosão da camada superior do solo e o desflorestamento da Amazônia.

É óbvio que a linha adotada pelo governo em relação aos problemas ambientais provocará novos desastres, como os já ocorridos em razão de ações governamentais realizadas na marra, contra pareceres originais dos órgãos ambientais, como é o caso da Usina de Belo Monte, no Pará. Sem falar das licenças ambientais, da fiscalização e do controle que deveriam ter evitado as tragédias de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, nas bacias do Rio Doce e São Francisco, respectivamente. A agenda ambiental do governo está com sinal trocado; em vez da busca de soluções em base científicas, a opção é pela truculência administrativa contra pesquisadores e cientistas.

Há inúmeros exemplos históricos de resultados desastrosos em consequência de políticas que, por razões ideológicas e religiosas, trataram a ciência como caso de polícia, como a perseguição do Colégio de Roma aos matemáticos italianos, porque consideravam uma heresia o cálculo infinitesimal, que foi fundamental para o desenvolvimento da Ciência e a Revolução Industrial na Inglaterra. O mesmo aconteceu com a medicina europeia na Idade Média, com a perseguição aos médicos seculares e o desprezo pela cultura judaica e islâmica por parte da Inquisição espanhola. O fundamentalismo ideológico preside decisões como a tomada na intervenção policial-militar no ICMBio.

Bolsonaro, trapalhão com bilhões e xerife sem noção

Trezentos ou quatrocentos bilhões de reais – quem se importa com isso? Em mais uma trapalhada bilionária, o presidente Jair Bolsonaro abriu uma espécie de liquidação de outono-inverno e antecipou o desconto para a negociação da reforma da Previdência. Na mesma ocasião, um café com a imprensa, ele rejeitou a ideia – jamais proposta – de se transformar o Brasil num país de turismo gay. Poderá ficar à vontade, acrescentou, quem “quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher”. Estará pensando em alguma nova regulamentação federal para motéis? Ainda no café, ele tentou disfarçar a relação complicada com o vicepresidente, Hamilton Mourão, frequentemente atacado por seus filhos. Não convenceu, obviamente, até porque nunca aceitou a ideia de enquadrar seus herdeiros e mandá-los deixar de se meter nos assuntos do Palácio do Planalto.

A trapalhada com maior repercussão foi a referência ao efeito fiscal da reforma. O ministro da Economia, segundo o presidente Bolsonaro, aceitará um ganho de apenas R$ 800 bilhões em dez anos, mas nada abaixo disso. Não precisava e muito menos devia fazer essa declaração. A negociação mal começou e a comissão especial ainda vai iniciar seu trabalho. Mas o presidente já disse até onde os parlamentares poderão desidratar o projeto – até R$ 400 bilhões, se for tomada como ponto inicial a meta de US$ 1,2 trilhão recém-anunciada pela equipe econômica.

No mesmo dia o presidente ganhou destaque por mais uma façanha incomum: mandou o Banco do Brasil suspender uma campanha publicitária e demitir do posto o diretor de Marketing. Foi uma nova intervenção numa estatal de capital aberto. Desta vez, a intromissão foi obviamente motivada por preconceito e por sua bem conhecida homofobia, sem a mínima fundamentação técnica. A campanha, centrada na diversidade, era parte de uma estratégia de aproximação do público jovem. Publicidade é assunto profissional, mas um presidente iluminado por Deus e empenhado na defesa da moralidade e no combate ao marxismo cultural está acima dessas ninharias. A propósito, ainda no café com a imprensa ele se declarou, novamente, aliado do presidente Trump. Poderia ter dito “alinhado”.

Antes de intervir no Banco do Brasil, o presidente Bolsonaro já se havia intrometido na administração da Petrobrás, e por motivação mais prosaica: atender a exigências de caminhoneiros, aqueles mesmos apoiados por ele, ainda candidato, quando bloquearam estradas, cometeram violências e impuseram enorme perda a empresas e consumidores.

Ao invadir o comando da maior estatal brasileira, ele impôs à Petrobrás uma perda de R$ 32,4 bilhões em seu valor de mercado. Esse efeito foi produzido com um simples e baratíssimo telefonema. Bastou chamar um diretor da empresa e mandá-lo abandonar, ao menos por alguns dias, o então recém-anunciado reajuste de preço do diesel. Errou perigosamente, naquela ocasião, quem imaginou ter o presidente mostrado toda a sua capacidade de comprometer bilhões. O presidente da Petrobrás, assim como o do Banco do Brasil, aceitou com aparente alegria a intromissão do presidente da República. Qual será a reação se ele quiser ditar a política de juros do Banco Central?

Mas convém voltar às trapalhadas do café com jornalistas, quando o presidente falou sem pensar – ou pensando segundo seus padrões – sobre os efeitos fiscais da reforma da Previdência. Pela avaliação inicial da equipe econômica, a reforma da Previdência permitiria evitar um gasto de R$ 1,1 trilhão em dez anos. Pela última estimativa, a economia poderá passar um pouco de R$ 1,2 trilhão.

De acordo com a margem de negociação indicada pelo presidente, o desconto máximo poderá ficar em torno de R$ 400 bilhões. Nesse caso, corresponderá a cerca de um terço, ou 33%, do ganho máximo projetado pelos técnicos do Ministério da Economia. Ao admitir essa perda, o presidente antecipouse aos negociadores, complicou seu trabalho e aumentou o risco de empobrecimento da reforma. Depois do café ele pareceu arrepender-se de ter avançado na discussão.

Não existe um “dado mínimo”, corrigiu-se o presidente, na saída. Ele ainda lembrou o valor “em torno de R$ 1 trilhão” citado várias vezes pelo ministro Paulo Guedes. Mas alguma perda ocorrerá no Congresso, admitiu, e será preciso mantêla em nível tolerável.

Quando o presidente Bolsonaro ensaiou essa autocorreção, sua fala sobre o piso de R$ 800 bilhões já havia sido divulgada por agências de notícias, portais da imprensa, rádios e televisões. Esse número predominou, ainda, nas informações publicadas nos jornais no dia seguinte e nas programações matinais de notícias. A trapalhada era sem conserto.

“Se Bolsonaro falar menos sobre a reforma até ela ser aprovada, vai ajudar bastante”, disse à Rádio Eldorado o recém-escolhido presidente da comissão especial formada para analisar a proposta, deputado Marcelo Ramos (PR-AM). “Cada vez que Bolsonaro fala sobre a reforma, retira alguma coisa.” Com isso ele dificulta o trabalho da equipe econômica, acrescentou o deputado. Essa equipe, segundo ele, é uma exceção no governo federal, por ter “uma visão clara de projetos e propostas para o Brasil”.

A avaliação do deputado é ainda um tanto generosa. De fato, o governo, excluído o time econômico, tem sido incapaz de apresentar ideias parecidas com algum plano para o País. Mas poderia apresentar? O presidente Bolsonaro fala ocasionalmente sobre a Previdência, quando é pressionado para mostrar algum interesse, mas pouco se ocupa de suas funções. Gasta mais tempo com exibições de homofobia e de moralismo, interfere na gestão de estatais, faz desaforos a parceiros comerciais importantes e dá vexames internacionais, como quando atribuiu à esquerda as barbaridades nazistas.

Já completando quatro meses de mandato, parece ainda longe de entender a função presidencial e o significado de governar. Entenderá, algum dia?

Múltipla escolha

As autoridades brasileiras ou são ignorantes, ou imbecis, ou manipuladoras
Régine Robin, historiado do nazismo na Universidade do Quebec

Cultura depende do afeto e do acesso para não esmorecer

Não sei se alguém lê ainda o romance “Salomé”, que Menotti Del Picchia publicou em 1940. Embora desigual, tem momentos fortes. Lembrei-me dele por causa de uma passagem acalorada. Alguém exclama: “Não compreendem o século. Há muita coisa que mudou. Isso entra pelos olhos. Querem que o operário, ao voltar da usina, ponha-se a ouvir a morte de Isolda?”.

Outro personagem retruca: “Então não haveria mais lugar para os requintados da sensibilidade? Tudo que a vida tem de mais profundo e mais belo terá realmente morrido?”.

A conclusão melancólica é que sobrarão poucos e que esses poucos serão acossados: “Vamos ser perseguidos como os cristãos sob Nero... Viveremos em catacumbas...”.


Esse mesmo sentimento tornou-se mais tarde o tema do poderoso “Fahrenheit 451”, que Ray Bradbury publicou em 1953 e que François Truffaut transformou em uma de suas obras-primas no ano de 1966.

Situando o debate de “Salomé” entre administradores de uma rádio, Menotti Del Picchia traz, de modo indireto, o problema da difusão cultural. Contra as catacumbas, talvez haja um recurso: levar a cultura às “massas”.

Hoje, a cultura é atacada de modo frontal: cortes de verbas, desdém do poder público, formação escolar precária. Isso faz com que ela tenda a se restringir, mais e mais, ao grupinho das catacumbas.

Essa forma de agressão, porém, tem ao menos a característica de ser clara e, com efeitos maiores ou menores, pode ser objeto de revides. Há pouco, vimos como as ameaças contra o projeto Guri provocaram um forte protesto tanto em redes sociais como em manifestação de rua. Eles forçaram o governo do estado de São Paulo a voltar atrás.

Mas há outro tipo de agressão, mais perigoso porque insidioso e deletério. É possível chamá-lo de demagogia cultural. Obras parecem difíceis, complexas. O projeto é, então, facilitá-las.

Há belos modos de fazê-lo e pessoas capazes disso. Sem cuidado, porém, descamba-se e desnaturam-se as obras culturais a ponto de destruí-las.

Vi um cartum no qual o primeiro violino de um quarteto de cordas, num ensaio, diz a seus companheiros: “Temos que tocar isso de um jeito que possa bombar no Twitter!”.

Excelente se um quarteto de Mozart ou de Beethoven fizer sucesso nas redes sociais. É bem evidente, no entanto, que, se forem distorcidos, perderão sua verdadeira natureza.

Há tempos, eu dei uma palestra para alunos do ensino médio sobre “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Nenhum deles, e era esperado, havia lido esse livro que não é lá muito acessível.

No final, um perguntou se não seria possível reescrever “Os Sertões” de modo simples para todos, de maneira que não se tropeçasse nas palavras bizarras e na ordem retorcida das frases. Minha resposta foi negativa, porque, se fizermos isso, “Os Sertões” deixará de ser a grande obra que é.

O estilo não vem como um aposto arbitrário sobre o conteúdo: ele é um modo próprio de pensamento, sem falar na força e na beleza que contém. Forma uma entidade única com aquilo que narra.

Lembra aquela história, não sei se verdadeira, mas muito boa, do editor norte-americano que, diante das enormes dificuldades do tradutor com a linguagem de Guimarães Rosa em “Grande Sertão: Veredas”, propôs que alguém passasse o texto para um português claro e neutro, fácil de ser transposto para o inglês.

A questão, portanto, é: como divulgar a cultura para o maior número de pessoas sem desnaturá-la? Alguém pode dar um tratamento de rock para a morte de Isolda. O resultado será bom ou ruim, conforme o talento do músico, mas Wagner não estará mais presente, e quem ouvir essa versão passará longe da obra original.

As artes plásticas também sofrem com isso. Muitas vezes, exposições são concebidas com estratégias destinadas a criar efeitos na mídia e no público. O marketing e muitos profissionais da comunicação, com frequência indiferentes aos fenômenos da cultura, encarregam-se desses processos corruptores.

A cultura, quando não se nutre de convicções empenhadas, de crítica, de rigor e sinceridade, quando não é posta no centro, esmorece.

Tenho para mim que são essenciais duas coisas.

A primeira é permitir o máximo possível e ao maior número de pessoas o acesso às obras culturais. Esse é um direito que deveria ser garantido a todos e uma obrigação do poder público. A segunda é tratá-las com afeto verdadeiro e com respeito. Só assim se cria o contágio que se ramifica e se amplia. Acesso e contágio; não creio que haja outras saídas.

Paisagem brasileira

Praia do Hospício, Araruama (RJ), Carlos Augusto

Chimpanzé, Maquiavel e Gandhi

A democracia é um jogo de cooperação e oposição. No certame de cooperação, as regras são a persuasão, a negociação, os acordos, a busca de espaços de consenso. Já no jogo de oposição, procura-se medir forças, confrontar o adversário, provocar tensões, impor a vontade pela força. Ultimamente, o jogo das oposições não tem sido bem jogado, tanto em função da derrota por elas sofrida no último pleito como pela reclusão do seu principal jogador.

Mas, no Brasil, as manobras divisionistas acabam se superpondo às táticas de cooperação. Veja-se o governo Bolsonaro. Pela vitória obtida por ele, as reformas deveriam estar em situação adiantada. Mas caminham devagar, quase parando.


E não se pense que esse andar se deve à oposição, aos chamados partidos de esquerda, PSOL, PT, PSB. O confronto mais forte provém de grupos incrustados no próprio governo. Os partidos do centrão, todos com um pé atrás, olham para onde caminha o governo, lutam por espaços de poder e influência.

Pinço a analogia do sociólogo Carlos Matus, em seu ensaio “Estratégias Políticas”. Impera entre nós o “estilo chimpanzé” de fazer política, que se baseia no projeto de poder pessoal, de rivalidade permanente. É assim o chimpanzé. Cada partido quer ser melhor e com mais força que outro. Já o presidente Bolsonaro e seu entorno militar parecem optar pelo “modelo Maquiavel”, onde o personalismo do Príncipe se subordina a um projeto de Estado.

Presenciamos uma luta entre os dois estilos. De um lado, os políticos, inspirados no lema “o poder pelo poder”, usam a arma do voto no Congresso para ampliar territórios. Disparam processos de tensão, ameaçam o governo com retiradas de apoio. Assim, a natureza política se assemelha ao instinto chimpanzé, para quem a luta tem como foco a conservação da própria espécie (“o fim sou eu mesmo”).

Já o presidente está mais para o estilo maquiavélico. Ele não é o projeto – o projeto é o Brasil. Todos os meios devem se adequar ao objetivo: livrar o Brasil das esquerdas, do PT, do comunismo, das forças que atrasam o país. Ele só vê amigos nos aliados militares, nos grupos evangélicos, nos núcleos de direita, nas massas de apoio e nos filhos. Todos os outros são inimigos.

Para governar, a conduta maquiavélica fará concessões ao estilo chimpanzé dos políticos, e estes abocanharão fatias de poder. Já nas margens reina expectativa. Os pobres grudam-se ao Bolsa Família. Cultivam laços de amizade entre si, buscam cooperação. E têm a honestidade como valor. São mais afeitos ao “estilo Gandhi”. Choram a morte dos seus, depositando sua fé no divino, indo às igrejas, rezando, implorando aos céus.

É assim que o país está fatiado: entre chimpanzé, Maquiavel e Gandhi. Os tempos exigem diálogo, elevação dos espíritos, negociação, convivência, um pacto por causas coletivas. Difícil. A onda chimpanzé se alastra.

Mas o Brasil carece muito do estilo Gandhi. Assim, os cidadãos sentiriam mais vergonha de cometer atos ilícitos. O fato é que a sem-vergonhice aplaude o estilo chimpanzé. Sob as bênçãos de Maquiavel.

Inveja da Bolívia

Em 1980, cada brasileiro ganhava, em média, 56% mais do que um peruano. Hoje, a diferença é só de 14%. Neste período, todos os ex-presidentes do Peru foram presos, estão foragidos ou se suicidaram para evitar a prisão por crimes de corrupção.

Em 1980, o brasileiro ganhava, em média, 79% mais do que o colombiano. Hoje, a diferença é só de 7%. Neste período, a Colômbia foi abalada por uma duríssima guerra contra o tráfico de drogas e o terrorismo.

Estes dois exemplos deixam claro pontos importantes. O Brasil não viveu apenas uma década perdida. Há quatro décadas nossa economia patina, com desempenho pior até mesmo que nossos vizinhos latino-americanos. Há duas gerações,somos um país submergente.


Além disso, ao contrário do que acham muitos, corrupção e violência não são os únicos problemas fundamentais brasileiros que, se resolvidos, garantirão o sucesso do País. Enfrentá-los, obviamente, é fundamental, mas sem encarar também outros problemas ao menos tão graves quanto, nosso futuro não irá mudar significativamente. Países com problemas de corrupção e violência tão graves ou piores que o Brasil tiveram desempenho econômico bem melhor. Fica claro que há outras áreas também muito importantes nas quais eles têm se saído melhor do que nós.

Sem reverter a incompetência na gestão da economia – que privilegia regulamentações como a recente suspensão do reajuste dos combustíveis, que parece ajudar, mas na realidade criará pobreza — e combater os que se apropriaram do Estado em busca de privilégios — como todos os que recebem benefícios previdenciários maiores que as contribuições que conseguem bancar –, o Brasil continuará condenado ao subdesenvolvimento.

Sem reduzirmos substancialmente o tamanho do Estado, seu peso sobre o setor privado e melhorarmos substancialmente nossa educação básica, em breve, nós brasileiros ficaremos para trás de praticamente todos nossos primos latino-americanos em termos de renda per capita. Chilenos, uruguaios, mexicanos e argentinos já ganham mais do que nós. Colombianos e peruanos devem nos ultrapassar nos próximos anos, paraguaios e equatorianos, na próxima década, assim como os bolivianos daqui menos de 20 anos, se mantidas as tendências. Inveja da Bolívia?! É este o futuro que queremos para nossos filhos e netos?

O oposicionismo retórico e os democratas

Em política, quem está contra não é necessariamente oposição. Pode bloquear um adversário, dificultar sua ação, mas não organizar ou fornecer diretrizes à sociedade. Estigmatiza e produz atrito, mas não demarca um campo de luta.

Faz tempo que estamos sem oposição. Durante os anos petistas, o domínio do governo foi tão intenso que paralisou o PSDB e tudo o que se contrapunha ao PT. Havia um só bloco, por mais que existisse a sensação de que um bloco alternativo sobrevivia. No período FHC o PT foi a voz da contestação intransigente, mas não teve poder de fogo para direcionar os cidadãos: limitou-se a mobilizá-los em torno de cláusulas genéricas que não continham uma proposição capaz de suportar chuvas e trovoadas. Venceu em 2002 graças à fadiga de material dos tucanos. Quando Dilma foi levada ao impeachment, a oposição veio das ruas, de modo desorganizado e sem saber o que pôr no lugar. Foi essa oposição caótica que elegeu Bolsonaro.

Oposição mesmo – com ideias claras, força magnética, capacidade de articulação e lideranças plurais efetivas – só houve na fase final da luta contra a ditadura, entre 1978 e 1985, quando o MDB foi o mar aberto em que desaguou a ampla frente democrática que dissolveu a credibilidade do regime autoritário e preparou o caminho para a volta da democracia.


Dado o estado calamitoso da política nacional e do governo Bolsonaro, deveriam estar todos buscando empreender uma ação que recomponha a sociedade e o Estado, dando um eixo aos cidadãos. Será difícil confrontar a onda bolsonarista – que é “societal”, ideológica e digital, desdobrando-se numa obra de intensa deseducação política – sem uma oposição democrática consistente, ao mesmo tempo serena, firme e contundente.

Percebendo que falta articulação, lideranças de esquerda falam em criar uma “Unidade Progressista” que arregimente os que são contra Bolsonaro e mostre que há um campo de forças alternativo com capacidade de interpelação. A ideia, porém, esbarra num vício recorrente da política brasileira mais à esquerda: a de só olhar para o próprio umbigo, excluindo segmentos que poderiam dar à frente pretendida uma envergadura especial. Em vez de trabalhar para unir os democratas, a “Unidade” dirige-se somente aos “progressistas”, sem deixar claro o que entende por isso. Ainda que seus propositores digam o contrário, a manobra visa a fornecer oxigênio ao PT e a seus satélites, se possível subalternizando lideranças como Marina Silva e Ciro Gomes. Sua meta é adquirir competitividade para enfrentar as eleições municipais de 2020, mais que contribuir para a formação de um arco de forças que se oponha ao governo atual.

Só pode haver oposição se houver visão política e programa de atuação com claros princípios éticos, morais, teóricos, que expliquem a realidade aos cidadãos e os auxiliem a interpretar as opções que se tem pela frente, mostrando que há como escapar da tragédia que ameaça o Estado Democrático de Direito, a articulação cívica da sociedade, as instituições políticas e a própria estrutura da economia. Como a tarefa é enorme, não será viabilizada de forma seletiva, com vetos e exclusões, ou com foco concentrado em “movimentos sociais” e nichos identitários.

Sem tal inflexão, ter-se-á esperneio e cálculo eleitoral, mas pouca eficácia e organização política.

Parte expressiva do dilema atual é que não há uma oposição ao governo Bolsonaro. Quando muito, há mal-estar e resistência. A medíocre base governista não sabe o que quer e mal consegue defender o governo, que se queima com o fogo amigo. O “centrão” não se opõe, mas se reposiciona e busca obter vantagens. Desgasta o governo sem se apresentar como opção a ele. Os oposicionistas mais à esquerda comemoram quando o governo mostra desarticulação e recua, como no caso das discussões sobre a reforma da Previdência. Aplaudem quando os governistas atiram nos próprios pés. Levam ao extremo o direito de obstruir votações e barrar uma reforma que julgam errada. Valem-se do jogo regimental e da agitação, como faz toda oposição, denunciando as injustiças e pondo-se em defesa do povo pobre.

Em nenhum momento, porém, oferecem uma visão alternativa da Previdência, não explicam a real situação da área, se há ou não privilégios a serem corrigidos, se a crise existe ou não, resumem todo o problema a um expediente “neoliberal” para sacrificar os mais frágeis.

É um oposicionismo retórico, inócuo, que vive da estridência e gira em círculos, sem sair do lugar. Ele amplia a confusão nacional, em vez de reduzi-la.

Cabe aos democratas, de centro e de esquerda, liberais e socialistas, agir para que se saia dessa agonia. A derrota da democracia em 2018 se deveu ao aguçamento das polarizações e à diluição dos consensos que poderiam direcionar a sociedade. Polos extremados pouco farão para promover as recomposições necessárias e desenhar uma agenda futura sustentável.

Quanto mais tempo levarem os democratas para romper a letargia que os tem paralisado, pior ficará. Eles estão obrigados a cavar fundo, reconhecer erros, compreender os efeitos políticos e culturais da globalização, da revolução tecnológica e da conversão “líquida” da vida. Devem trocar a retórica combativa, militante, indignada, mas romântica e ingênua, pelo duro amassar de barro da política realista. Precisam de coragem para ir além da terra conhecida, partindo dela para abrir novos horizontes e resgatar os náufragos da vida.

A obra da redemocratização está sendo dilapidada. Chegamos a um ponto em que nos falta o fundamental: unidade política, consensos democráticos, responsabilidade cívica e boas estruturas de ação (partidos).

Não é um problema só de excesso de autoritarismo, despreparo e reacionarismo grosseiro, essas pragas que corroem a sociedade. Também estamos sendo vitimados pela escassez de coordenação democrática.

Astronomia

Não, panaca,
aqui não é o olimpo,
é a cloaca.
Raul Drewmock 

A corte do bobo

Os soberanos renascentistas empregavam um profissional encarregado de entreter os cortesãos e, antes de tudo, a si mesmos: o bobo da corte. A entourage bolsonarista tem um personagem assim, que é Olavo de Carvalho. Mas, com uma diferença: por aqui, a corte é que presta serviço ao bobo.

Nas cortes do passado, recrutavam-se bobos no próprio círculo da nobreza, entre jovens com deficiência mental. Mais comumente, eles eram pinçados entre comediantes que cantavam ou dançavam em grupos de saltimbancos. Salvo engano, Olavo enquadra-se no segundo caso.

Depois de tentar a sorte como astrólogo e islamita, ele vestiu a fantasia de filósofo e passou a exibir truques intelectuais primários no palco itinerante da internet. O ofício de comediante intelectual propiciou-lhe uma carreira precária no diversificado mercado da autoajuda —até que, miraculosamente, o colapso do sistema político brasileiro degenerou no governo dos ignorantes da extrema direita. Daí, ele virou um bobo singular: o guru de uma corte abobalhada.



Os bobos eram contratados para cometer equívocos divertidos. Nesse ponto, Olavo, o bobo de plantão, é fiel à tradição. Segundo o que ele qualifica como uma “tese histórica irrefutável”, os militares brasileiros entregaram o país ao comunismo. O interessante, aqui, é que não há, entre pessoas medianamente informadas, nem mesmo um debate histórico relevante sobre o tema.

O golpe de 1964 não salvou o país da ascensão comunista pelo simples fato de que a hipótese inexistia: Jango e os seus, populistas da cepa varguista, não nutriam qualquer simpatia pelo comunismo. Os comunistas, cindidos em dois partidos rivais, eram colinas periféricas na paisagem nacional. Duas décadas depois, na hora da transição democrática, a esquerda aglutinou-se no PT, que de socialista só tem trechos esparsos de resoluções escritas para enganar trouxas.

Golbery do Couto e Silva tinha razão, se é verídica a versão de que enxergava em Lula o coveiro da esquerda radical no Brasil. Mas, ainda que divertida, a “tese histórica irrefutável” de Olavo é um equívoco proposital de um profissional da comédia. O bobo que nada tem de bobo formulou uma galhofa destinada a ser levada a sério por seus devotos estúpidos da corte bolsonarista, entre os quais contam-se o presidente e seus rebentos.

No “Rei Lear”, o bobo desempenha papéis cruciais. Honesto, completamente leal, ele vai muito além de seu dever de entreter, agindo quase como superego do rei. Depois do injusto banimento de Cordelia, o bobo assume a função da única filha íntegra do rei, protegendo Lear e, por meio da ironia e do sarcasmo, alertando-o sobre seus impulsos autodestrutivos.

Na corte bolsonarista, tudo se passa ao inverso. Leal apenas a si mesmo, o bobo sabota incessantemente o rei, estimulando seus piores instintos e semeando perenes intrigas palacianas. O bobo de Lear não teme dizer a verdade desinteressada; o bobo de Bolsonaro só profere mentiras interessadas. Nesse país tão pouco shakespeariano, a corte presta vassalagem a um bobo que não almeja o triunfo do rei, mas unicamente seu triunfo pessoal.

“Bobos frequentemente provam-se profetas”, diz Regan, a segunda filha de Lear, a Goneril, sua irmã mais velha. Olavo errou em todas as suas profecias, mas esforça-se para acertar na mais recente: a implosão do governo Bolsonaro “em seis meses”. O bobo shakespeariano, um sábio cético que vira a procissão inteira de vilezas humanas, ria da afetada pretensão de majestade de Lear. Entretanto, inarredável na sua decência, jamais o abandonou, acompanhando-o na trajetória da humilhação, rumo à loucura. Já o bobo bolsonarista, um malcriado untuoso, adula seu rei para iludi-lo, conduzindo-o à beira do precipício.

“Rei Lear” é a mais sublime tragédia da literatura. A nossa é uma farsa de terceira. Mas não é ficção.