domingo, 28 de abril de 2019

Cultura depende do afeto e do acesso para não esmorecer

Não sei se alguém lê ainda o romance “Salomé”, que Menotti Del Picchia publicou em 1940. Embora desigual, tem momentos fortes. Lembrei-me dele por causa de uma passagem acalorada. Alguém exclama: “Não compreendem o século. Há muita coisa que mudou. Isso entra pelos olhos. Querem que o operário, ao voltar da usina, ponha-se a ouvir a morte de Isolda?”.

Outro personagem retruca: “Então não haveria mais lugar para os requintados da sensibilidade? Tudo que a vida tem de mais profundo e mais belo terá realmente morrido?”.

A conclusão melancólica é que sobrarão poucos e que esses poucos serão acossados: “Vamos ser perseguidos como os cristãos sob Nero... Viveremos em catacumbas...”.


Esse mesmo sentimento tornou-se mais tarde o tema do poderoso “Fahrenheit 451”, que Ray Bradbury publicou em 1953 e que François Truffaut transformou em uma de suas obras-primas no ano de 1966.

Situando o debate de “Salomé” entre administradores de uma rádio, Menotti Del Picchia traz, de modo indireto, o problema da difusão cultural. Contra as catacumbas, talvez haja um recurso: levar a cultura às “massas”.

Hoje, a cultura é atacada de modo frontal: cortes de verbas, desdém do poder público, formação escolar precária. Isso faz com que ela tenda a se restringir, mais e mais, ao grupinho das catacumbas.

Essa forma de agressão, porém, tem ao menos a característica de ser clara e, com efeitos maiores ou menores, pode ser objeto de revides. Há pouco, vimos como as ameaças contra o projeto Guri provocaram um forte protesto tanto em redes sociais como em manifestação de rua. Eles forçaram o governo do estado de São Paulo a voltar atrás.

Mas há outro tipo de agressão, mais perigoso porque insidioso e deletério. É possível chamá-lo de demagogia cultural. Obras parecem difíceis, complexas. O projeto é, então, facilitá-las.

Há belos modos de fazê-lo e pessoas capazes disso. Sem cuidado, porém, descamba-se e desnaturam-se as obras culturais a ponto de destruí-las.

Vi um cartum no qual o primeiro violino de um quarteto de cordas, num ensaio, diz a seus companheiros: “Temos que tocar isso de um jeito que possa bombar no Twitter!”.

Excelente se um quarteto de Mozart ou de Beethoven fizer sucesso nas redes sociais. É bem evidente, no entanto, que, se forem distorcidos, perderão sua verdadeira natureza.

Há tempos, eu dei uma palestra para alunos do ensino médio sobre “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Nenhum deles, e era esperado, havia lido esse livro que não é lá muito acessível.

No final, um perguntou se não seria possível reescrever “Os Sertões” de modo simples para todos, de maneira que não se tropeçasse nas palavras bizarras e na ordem retorcida das frases. Minha resposta foi negativa, porque, se fizermos isso, “Os Sertões” deixará de ser a grande obra que é.

O estilo não vem como um aposto arbitrário sobre o conteúdo: ele é um modo próprio de pensamento, sem falar na força e na beleza que contém. Forma uma entidade única com aquilo que narra.

Lembra aquela história, não sei se verdadeira, mas muito boa, do editor norte-americano que, diante das enormes dificuldades do tradutor com a linguagem de Guimarães Rosa em “Grande Sertão: Veredas”, propôs que alguém passasse o texto para um português claro e neutro, fácil de ser transposto para o inglês.

A questão, portanto, é: como divulgar a cultura para o maior número de pessoas sem desnaturá-la? Alguém pode dar um tratamento de rock para a morte de Isolda. O resultado será bom ou ruim, conforme o talento do músico, mas Wagner não estará mais presente, e quem ouvir essa versão passará longe da obra original.

As artes plásticas também sofrem com isso. Muitas vezes, exposições são concebidas com estratégias destinadas a criar efeitos na mídia e no público. O marketing e muitos profissionais da comunicação, com frequência indiferentes aos fenômenos da cultura, encarregam-se desses processos corruptores.

A cultura, quando não se nutre de convicções empenhadas, de crítica, de rigor e sinceridade, quando não é posta no centro, esmorece.

Tenho para mim que são essenciais duas coisas.

A primeira é permitir o máximo possível e ao maior número de pessoas o acesso às obras culturais. Esse é um direito que deveria ser garantido a todos e uma obrigação do poder público. A segunda é tratá-las com afeto verdadeiro e com respeito. Só assim se cria o contágio que se ramifica e se amplia. Acesso e contágio; não creio que haja outras saídas.

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