Acostumem-se, e também o ministro Paulo Guedes, da Economia, e outros ao seu redor que insistem em se preocupar com déficit fiscal e teto de gastos, coisas capazes de tirar o presidente Jair Bolsonaro do sério logo no momento em que ele está mais fraco.
Daqui para frente vai ser assim: gaste-se o que for permitido e o que não for para reeleger o ex-capitão ameaçado de aposentar-se antes do tempo. Seria o primeiro presidente da República, desde a introdução da reeleição por aqui, a só governar por quatro anos.
O programa Casa Verde e Amarela, substituto do Minha Casa Minha Vida, não decolou? A entrega de novas casas está abaixo da média dos últimos anos, e até agora zero moradia foi regularizada ou alvo de reformas? E daí? O que isso importa?
Sigam o dinheiro! E ele irá para uma nova linha de financiamento de casas com juros baixos voltada exclusivamente para policiais e bombeiros, base de apoio do presidente, que quer porque quer, só não se sabe para fazer o quê, reeleger-se no ano que vem.
O novo programa, batizado de Habite Seguro, terá R$ 100 milhões do Fundo Nacional de Segurança Pública. Serão contemplados policiais federais, rodoviários federais, agentes penitenciários, peritos, papiloscopistas e guardas municipais, entre outros.
As condições vantajosas, que incluem desconto no valor de contratação do financiamento e no quanto é preciso dar de entrada para o empréstimo, não serão estendidas a outras categorias. O programa foi lançado por Bolsonaro em cerimônia ontem à tarde.
“Entendemos que [o programa] pode, sim, atingir grande parte deste efetivo da segurança, que arrisca a sua vida em defesa da nossa vida e do nosso patrimônio”, disse ele. Poderia ter acrescentado: em defesa também da sua reeleição em 2022.
Em reunião ministerial em abril do ano passado, Guedes não disse que chegara a hora de fazer “o discurso da desigualdade e gastar mais para eleger o presidente”? Aguente o tranco. Haverá mais inflação. E daí? Passada a eleição, será feito um duro ajuste fiscal.
O futuro é a única propriedade que os senhores concedem de boa vontade aos escravos
Albert Camus
Uma simples interpretação sobre o comportamento dos instintos básicos do ser humano no campo da política induz à conclusão: a reeleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República dependerá do sucesso do eleitor em sua luta pela sobrevivência.
Implica, portanto, considerar os dois fatores básicos responsáveis pela conservação do indivíduo; o impulso combativo, que leva a pessoa a batalhar pela vida, enfrentando ameaças e buscando os meios mais adequados para resistir às intempéries, e o impulso nutritivo.
Este último responde pelas necessidades fisiológicas de alimentação, sem a qual o ser humano é condenado à inanição. Pois bem, postas as duas alavancas de sobrevivência, puxemos as duas frentes que balizam a situação do governo Bolsonaro: a pandemia, que exibe um rastro da má gestão, com quase 600 mil pessoas mortas no país e mais de 20 milhões de contaminados pelo coronavírus; e a economia, cuja fraqueza envolve o eleitor na seguinte equação: “bo+ba+co+ca” —ou seja, “bolso cheio”, “barriga satisfeita”, “coração agradecido” e “cabeça” propensa a votar em quem proporcionou a equação. A recíproca, barriga roncando de fome, levará ao desastre político do protagonista.
Essa é a cruz e a caldeirinha que pairam sobre os protagonistas da política, conforme atestam as experiências realizadas pela ciência desde os tempos do fisiologista russo Ivan Pavlov (1849-1936). Ao analisar as reações do comportamento, Pavlov se valeu do exemplo da ameba para explicar os reflexos do ser humano. A ameba foge do perigo, absorve alimentos, multiplica-se e forma quistos, dentro dos quais se propaga em um enxame de pequenas amebas.
As pessoas, como as amebas, procuram evitar o perigo e preservar sua espécie. É o escudo do instinto combativo. Mas o indivíduo, para se conservar, precisa garantir a sobrevivência do corpo, valendo-se do instinto alimentar.
A maior ameaça à vida dos brasileiros tem sido a pandemia de Covid-19, cuja variante delta ainda é uma interrogação ante a iminência de voltar a contaminar em massa a população. Por mais que o governo tente se desvencilhar dos laços de má gestão impressa na condução da crise, e mesmo com a vacinação em massa prevista para fins deste ano, ficará com essa marca na imagem. E certamente o eleitor irá às urnas em outubro de 2022 na companhia desse diabinho que fustigou sua vida e a de membros de sua família.
O outro conselheiro e influenciador de decisões será o que chamamos de “bo+ba+co+ca”. As análises das últimas semanas mostram que as estacas da economia estão frouxas; que o crescimento caminha a passos de tartaruga; que o nosso maior comprador de commodities, a China, entra em ritmo de desaceleração; e que o PIB mundial emite sinais de crescimento aquém das projeções. O governo brasileiro fará das tripas coração para adensar o Auxílio Brasil com um volume capaz de atrair o rebanho faminto por capim.
Ora, mas a queda de Bolsonaro nas pesquisas de avaliação do governo mostram que, mesmo com R$ 300, o presidente não conseguiu segurar a barra. Fique essa hipótese em aberto, porquanto o “senhor das circunstâncias” —e só ele— conseguirá saber a quantas andará o humor do homem das ruas lá pelo segundo semestre do próximo ano. Nessa frente do populismo, tudo será possível. Bolsas, auxílio emergencial, adjutórios integram os meios de cooptação das massas.
Por último, uma palavrinha sobre o nosso temperamento. Na divisão hipocrática dos temperamentos (Hipócrates, médico da Grécia antiga, 460-377 A.C.), há os coléricos, em que a excitação prevalece sobre a faculdade de inibição; os equilibrados, que podem ter reações rápidas e uma excitação igual à inibição —e, neste caso, são considerados sanguíneos, com reações ágeis, enquanto os indivíduos com reações lentas são considerados fleumáticos, serenos, impassíveis—; e, por último, os tipos fracos, os melancólicos, que exibem a preponderância da inibição sobre a excitação. Formam, segundo o microbiologista e ativista russo Serge Tchakhotine (1883-1973), o grande número de indivíduos que constituem as multidões e as massas, mais facilmente influenciáveis ou violáveis.
Perguntinha de pé de página: que temperamento prevalecerá na hora de o eleitor colocar o dedo na urna eletrônica? De nossa parte, achamos que os melancólicos terão diminuído até lá.
Em entrevista concedida a Bob Woodward na Casa Branca, Donald Trump confessou: “Eu boto a raiva para fora. Eu boto a raiva para fora. Sempre gostei. Eu não sei se isso é um ativo ou um passivo, mas seja o que for, eu faço”. Trump exprime o declínio dos valores e das ideias que inspiraram os Estados Unidos na construção da chamada ordem mundial do pós-Guerra. Terminado o conflito, as forças vitoriosas, democráticas e antifascistas trataram de criar instituições destinadas a impedir a repetição da desordem destrutiva que nascera da rivalidade entre as potências e da economia destravada.
Nos idos de 2018, Martin Wolf, editor do Financial Times, denunciou as manobras de Donald Trump para implodir a ordem mundial. “São características destacadas do comportamento de Trump suas invenções, sua autocomiseração e sua prática da intimidação: os outros, inclusive os aliados históricos, estão “zombando de nós” em relação ao clima ou “nos enganando” em relação ao comércio exterior. A União Europeia, argumenta ele, “foi implantada para tirar proveito dos EUA, certo? Não mais... Esse tempo acabou”.
O filósofo Fredric Jameson, no livro “A Cultura do Dinheiro”, advertia no início do milênio: “Os quatro pilares ideológicos, jurídicos e morais do alto capitalismo - constituições, contratos, cidadania e sociedade civil - são, hoje, vadios maltrapilhos, mas sempre lavados, barbeados e vestidos com roupas novas para esconder sua verdadeira situação de penúria”.
O magnífico projeto iluminista-burguês da liberdade, igualdade e fraternidade, avaliado em seus próprios termos e objetivos, está fazendo água diante da alucinante e alucinada competição entre as sociedades e suas lideranças para mergulhar o planeta nos esgotos da barbárie.
Não podemos colher outro ensinamento das imprecações agressivas de Jair Bolsonaro contra os ministros do STF. Ao apontar sua garrucha velha e enferrujada para Alexandre de Moraes ou Luis Roberto Barroso, Bolsonaro não pretende atingir as pessoas dos ministros, mas, sim, a instituição STF. No mesmo diapasão, seus fanáticos, ignaros e ressentidos apoiadores pretendem destruir as instituições que acompanharam a formação do Estado Moderno ao longo de séculos, no propósito de substituí-lo pelas regras das sociedades das cavernas.
A civilização ocidental, disse Gandhi, teria sido uma boa ideia. Imaginei, santa ingenuidade, que as batalhas do século XX, além do avanço dos direitos sociais e econômicos, tivessem finalmente estendido os direitos civis e políticos, conquistas das “democracias burguesas”, a todos os cidadãos. Mas talvez estejamos numa empreitada verdadeiramente subversiva em seu paradoxo: a construção da República dos Bárbaros. Uma novidade política engendrada nos porões da inventividade contemporânea, regime em que as garantias republicanas recuam diante dos esgares da máquina movida pelo narcisismo dos ressentidos.
Esses deserdados da civilidade simulam retidão moral para praticar as brutalidades dos homens de bem. Os direitos individuais e os valores da modernidade são tragados no redemoinho do moralismo particularista e exibicionista dos amorais. Trump e Bolsonaro exibiram de forma contundente o papel do ultraje pessoal na avacalhação do debate público. A ofensa pessoal desqualificadora usada como argumento e a resposta no mesmo tom são instrumentos da brutalização das consciências.
O expediente de satanizar o adversário revela indigência mental e despreparo para a convivência democrática. É, portanto, saudável exorcizar as tentações do maniqueísmo, o bem contra o mal.
Os bárbaros do teclado repercutem nas redes sociais os impropérios dos líderes truculentos. Manejam com desembaraço a técnica das oposições binárias, método dominante nas ações e interações entre os participantes das redes. Nos comentários da internet, vai “de vento em popa” o que Herbert Marcuse chamou de “automatização psíquica” dos indivíduos. Os processos conscientes são substituídos por reações imediatas, simplificadoras e simplistas, quase sempre grosseiras, corpóreas.
Os indivíduos mutilados executam os processos descritos por Franz Neumann, em Behemoth, seu livro clássico sobre o nazismo: “Aquilo contra o que os indivíduos nada podem e que os nega é aquilo em que se convertem”. O que aparece sob a forma farsista de um conflito entre o bem e o mal, está objetivado em estruturas que enclausuram e deformam as subjetividades exaltadas. A indignação individualista, a raiva contra os opositores e os arroubos moralistas são expressões da impotência que, não raro, se metamorfoseia em desvario autoritário.
Donald Trump e seu discípulo Jair Messias são fiéis pastores de seus crentes. São fiéis a seus fiéis. Para um contingente parrudo de americanos e brasileiros, não importam os deslizes de seus Deuses e Messias. Importa, sim, que os Escolhidos insistam e persistam na afirmação das crenças, ideologias, visões do mundo, valores que refletem os ressentimentos dos súditos maltratados pelas frustrações e misérias da vida.
Diante das misérias da vida e de uma vida de misérias, as vítimas dos deuses mundanos buscam refúgio no Incompreensível. Nos tempos de cólera, elas fogem das dúvidas e angústias que as atormentam. Adaptadas, conformadas, até mesmo confortadas e felizes, preferem aceitar que sua existência é apenas uma permissão dos deuses e de seus procuradores na Terra.
Nos espaços fabricados pelas Novas Crenças não é possível manter conversações, porque neles a norma não é a argumentação, mas o exercício da animosidade sob todos os seus disfarces, a prática desbragada da agressividade a propósito de tudo e de todos, presentes ou ausentes, amigos ou inimigos.
As redes sociais, prometidas como o espaço do movimento livre das ideias e das opiniões, se transformaram num calabouço policialesco em que a crítica é substituída pela vigilância. A vigilância exige convicções esféricas, maciças, impenetráveis, perfeitas. A vigilância deve adquirir aquela solidez própria da turba enfurecida, disposta ao linchamento. Não se trata de compreender o outro, mas de vigiá-lo. “Estranho ideal policialesco, o de ser a má consciência de alguém”, diz o filósofo Gilles Deleuze, também suspeito de patrocinar o marxismo cultural.