domingo, 2 de dezembro de 2018

Que a realidade eduque Bolsonaro

O general Juan Domingo Perón (1895-1974), três vezes presidente da Argentina, sempre por meio de eleição direta, produziu uma coleção de frases interessantes. Destaco uma: “A realidade é a única verdade”.

Torço para que a realidade aos poucos eduque Jair Bolsonaro para as verdades do mundo, para além de seus preconceitos, paixões e desinformação.

A primeira aula foi dada pelo Egito, que não chega a ser um dos países mais poderosos do mundo, ao cancelar viagem do atual chanceler, Aloysio Nunes Ferreira Filho, como represália pelo anúncio de Bolsonaro de que transferiria a embaixada brasileira para Jerusalém.

O impulso do presidente eleito ignora realidades. Primeira realidade: os países muçulmanos são grandes importadores de proteína animal do Brasil e poderiam ficar furiosos com a transferência da embaixada.

Logo, qualquer pessoa que pensasse antes de falar se perguntaria: o que o Brasil ganha com a mudança? Nada, a não ser, eventualmente, um afago de Donald Trump, o que não é nem remotamente suficiente para amenizar os problemas do Brasil.

Se é ruim para os negócios com os árabes mudar a embaixada para Jerusalém, mantê-la em Tel Aviv não atrapalha os negócios com Israel. Tanto não atrapalha que um dos raros acordos de livre comércio que o Mercosul tem é justamente com Israel, firmado em 2010 (governo Lula, portanto), que jamais pensou em instalar a embaixada em Jerusalém.

Agora, veio uma segunda lição: Emmanuel Macron, o presidente francês, disse, ao chegar a Buenos Aires: “Não sou a favor de que se assinem acordos comerciais com potências que não respeitem o Acordo de Paris”.

É uma alusão ao acordo entre o Mercosul e a União Europeia, uma negociação que se arrasta há uns 20 anos.

Como se sabe, em outro momento de falar sem medir consequências, Bolsonaro ameaçou retirar o Brasil do Acordo de Paris, o mais sólido movimento para conter a mudança climática em nível tolerável.

O que o Brasil ganharia se de fato saísse do acordo? Nada, a não ser o desprezo dos 174 países que o assinaram e que são praticamente todos os do mundo (agora com a exceção dos Estados Unidos de Trump).

Ganhariam apenas os fanáticos que negam que haja uma ameaçadora mudança climática. De novo, agradaria Trump que despreza até estudos científicos do seu próprio governo.

Treze agências federais do governo americano emitiram há dias um relatório em que diziam que, a menos que sejam dados passos significativos para controlar o aquecimento global, o dano provocado nos Estados Unidos cortará 10% da economia americana até o fim do século.

A menos que Bolsonaro e os fanáticos em torno dele achem que todos os cientistas são perigosos comunistas, o mais prudente é trabalhar com todos os países possíveis para mitigar os efeitos da mudança climática.

A cooperação internacional e multilateral é essencial para um país como o Brasil. Pendurar-se na perspectiva de alinhamento automático com os EUA —o que Bolsonaro rejeitou dias atrás— é um caminho que não foi seguido nem pela ditadura brasileira, que o presidente eleito acaricia e que se instalou com apoio americano.

A realidade é mais complexa que ideias simplistas.

Brasil bonzinho


Com certeza, não há nada tão vergonhoso quanto a Suprema Corte brasileira

Entre os projetos que estão em estudos pela equipe do futuro ministro da Justiça e da Segurança, Sérgio Moro, precisa constar a mudança dos critérios para nomeação de magistrados. A Ordem dos Advogados do Brasil pode protestar à vontade, mas não é possível continuar com essa prática de nomear livremente um quinto dos juízes dos tribunais, porque a simples exigência de “conduta ilibada e notório saber” é uma balela.

O critério de escolha quase sempre é essencialmente político e fisiológico, com pitadas de mera afetividade, conforme ficou provado nas indicações das filhas de dois ministros do Supremo, Marco Aurélio Mello e Luiz Fux. Num país em que nepotismo é proibido, não teria sido muito mais correto se elas tivessem estudado e se submetido a concurso para se tornarem magistradas? Creio que sim.

A desabonadora realidade é que no Brasil o ideal da meritocracia é apenas uma utopia que jamais se concretiza. A prática em vigor continua sendo o fisiologismo, pois o grandioso sonho de Getúlio Vargas, ao criar o DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público), parece ter morrido junto com ele, com uma bala no peito.

Devido à existência do quinto constitucional, não é apenas o Supremo que fica composto por falsos magistrados, que se tornam eternos devedores dos políticos que os nomearam. Os outros tribunais também abrigam juízes de fancaria, como o ex-advogado Rogerio Favreto, que protagonizou aquela jogada ridícula para soltar Lula em seu plantão de fim de semana no Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Favreto era filiado ao PT e trabalhou na Casa Civil dos governos petistas, antes de ser premiado com o cargo vitalício de desembargador federal.

Essas distorções do sistema transformam a Justiça brasileira numa peça de ficção, a ponto de um criminoso reincidente como José Dirceu ter sido solto por um habeas corpus que seus advogados sequer impetraram. Ou seja, foi libertado por ato voluntário de Dias Toffoli, que é seu amigo pessoal e seu ex-empregado. Essa sumidade chamada Toffoli mandou soltar “de ofício” o velho amigo, sob argumento de que o Superior Tribunal Federal poderia rever a condenação dele em grau de recurso…

Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes aplaudiram esse argumento fake e Dirceu foi então libertado em nome da Justiça, vejam a que ponto chega a desfaçatez dessa gente.

Nesta quinta-feira, houve mais uma vergonhosa sessão do Supremo, em que os ministros “garantistas” se esmeraram em buscar argumentos para favorecer uma súcia de corruptos que o ainda presidente Michel Temer tenta proteger. Como lembrou em boa hora o jurista Jorge Béja, o indulto de Temer jamais poderia ser aceito pelo STF, por ser absolutamente amoral.

Os ministros do Supremo, em sua maioria, estão pouco se importando com a moral e os interesses nacionais. Esta é a nosso dolorosa. Ainda bem que o ministro Luiz Fux interveio, pediu vista e adiou o novo vexame. Quem sabe os juízes do Supremo têm um ataque de bom senso e conseguem mudar de ideia??? Mas é claro que não. Nem a Velhinha de Taubaté acredita que o Supremo faça alguma coisa que preste.

Entre a política e a religião

A forte presença religiosa no governo Bolsonaro estimula a abertura de um diálogo entre política e religião, na verdade, uma tentativa de examinar esse constante intercâmbio de duas dimensões diferentes de abordagem de nossos problemas. Durante a campanha, Bolsonaro usou muitas vezes o verso bíblico de João: “Conhecei a verdade e a verdade vos libertará”.

Aplicado às circunstâncias eleitorais, funcionou: conhecer a verdade sobre o sistema político, os erros do PT, e escolher um caminho alternativo pelo voto. Mas esse mesmo verso de João aplicado à complexidade do governo perde um pouco sua substância política. Creio que muitas vezes será preciso tomar decisões sem conhecer toda a verdade. E mesmo quando a alcançamos, é uma verdade provisória contestada.

A palavra salvação em política é ambígua e leva, de modo geral, a uma desconfiança. Ela se instalou como um contrabando na religião laica do marxismo, que definiu o sujeito da salvação: a classe operária. O problema é que a classe operária, na teoria revolucionária, precisava organizar seu exército para nos salvar. E nos colocava diante de um novo dilema: quem nos salvará dos salvadores?

A salvação pelo mercado, a exportação do livre-comércio e a democracia liberal provocaram alguns desastres. E isso é visto com resistência em muitos pontos do mundo, onde o nacionalismo ressurge.

Agora a presença religiosa é direta: esteve presente na escolha do novo ministro da Educação. Ao anunciar o nome de Ricardo Vélez Rodríguez, a opção de Bolsonaro foi interpretada por alguns articulistas como algo coerente, uma decorrência lógica de suas propostas de campanha. Não estou tão seguro de que tenha sido uma escolha tão linear. Bolsonaro visitou a Coreia do Sul e lá deve ter ouvido falar de outras experiências inovadoras de educação no mundo.

Durante algum tempo manteve diálogo com um setor mais técnico e, segundo a imprensa, chegou a considerar o nome do Instituto Ayrton Senna. Imagino que o diagnóstico que recebeu não ponha a questão dos valores como o problema principal de nossa educação, mas sim a baixa qualidade.

Claro que a existência de um viés ideológico nos fóruns que definem a política educacional e universidades é sempre mencionado como problema. Mas não conseguem explicar por que nos últimos 30 anos verbas e vagas foram fortemente ampliadas sem repercussão positiva no aumento da produtividade nacional.

Nesse contexto, uma aproximação maior com a ciência e a tecnologia seria indicação preciosa. O novo ministro afirmou que é necessário combater o cientificismo. Não elaborou sobre o conceito.

Há várias maneiras de interpretar o seu propósito. Uma, mais sofisticada, combate uma visão religiosa da ciência, uma nova ideia de salvação. Ou será que é uma referência à origem da vida humana como o resultado de alianças das bactérias e uma passagem pelos macacos?

Nesse caso, o debate lembrara um excelente filme americano do século passado, O Vento Será Tua Herança. É baseado na história verdadeira de um professor julgado por ensinar a teoria de Darwin nas escolas. O jovem professor é interpretado por Gene Kelly e o defensor do criacionismo, por Spencer Tracy. O debate é muito interessante. Tracy, como defensor das ideias tradicionais, é brilhante. Essa é uma das qualidades do filme, pois não ironiza nem transforma a visão religiosa numa caricatura. Aliás, essa seria uma tática desastrosa, como já foi na campanha. Se a política quiser dialogar com a religião, não precisa, em momento nenhum, desrespeitá-la.

Bolsonaro fez uma escolha fiel aos evangélicos, ele mesmo batizado no Rio Jordão. Mas fez a melhor escolha em termos de governar o Brasil nesta quadra complexa?

Existe uma tensão clara entre os apoiadores de Bolsonaro na abordagem do problema que considera principal: a predominância da esquerda na educação Os mais lúcidos consideram que isso é uma luta de ideias e deve ser travada nesse plano. Outros preferem um decreto, com a Escola sem Partido.

Deus está presente na política externa. Não é algo distante dos sentimentos do povo brasileiro. Mas uma política externa, ao tentar interpretar os sentimentos do povo, precisa escolher, entre muitos, os que queremos transmitir ao mundo. Até agora escolhemos a paz, o esforço pela solução política dos conflitos. Isso não tem um sentido missionário, não queremos transmitir outra crença além da necessidade de harmonia, cooperação.

Erramos na escolha? Não foi ela que enfraqueceu nosso papel no exterior, e sim as investidas missionárias do PT na sua visão da ampliar o domínio da esquerda na continente. E, pior ainda, ao lado da Odebrecht, com dólares na mão, golpeando os processos democráticos locais.

Antes de Bolsonaro não pensávamos tanto em oposição Ocidente-Oriente. Claro que não ignoramos o avanço da China, sua ascensão como potência mundial. Pra mim, o Oriente é maior que a China.

Por que levar nosso Deus ao Japão, à Índia, ao Paquistão, ou salvar um budista de si próprio?

O caso da China tem de ser visto com frieza. Oito presidentes americanos acreditaram que, entrando na rota do capitalismo, a China iria transformar-se numa democracia liberal. Foram eles, os americanos, os grandes parceiros do crescimento chinês. Seremos nós, agora, que vamos achar a saída para suas expectativas frustradas?

Mesmo com uma visão negativa de seu sistema político, a China não pode ser substituída completamente pelos americanos em nossas transações econômicas. Até porque, apesar dos acenos, a política de Trump, America First, é contraditória com essa expectativa.

De qualquer maneira, são apenas suposições. O ideal seria os ministros seguirem o caminho de Sergio Moro: entrevista coletiva. Isso nos liberaria de interpretar blogs, frases sem um contexto e do risco de deformar o pensamento do outro.

É normal!

Estamos vivendo a anormalidade normalizada. Em Canudos tudo tinha ficado vulgar e normal, as pessoas se matando, a barbárie naturalizada. Os alemães achavam que tudo estava normal enquanto o nazismo acontecia. Hoje estamos vivendo assim
Ignácio de Loyola Brandão

Pensamento do Dia


Mudanças climáticas são maior ameaça à saúde deste século

As mudanças climáticas são a maior ameaça à saúde do século 21, e milhões de pessoas já vêm sofrendo suas consequências mundo afora nas últimas duas décadas, alertaram cientistas e profissionais da área da saúde.

Num relatório publicado na revista científica The Lancet nesta quarta-feira (28/11), eles afirmam que os efeitos das mudanças climáticas – de ondas de calor e tempestades mais intensas a enchentes e incêndios – ameaçam sobrecarregar sistemas de saúde pelo mundo.


O estudo, intitulado The Lancet Countdown on Health and Climate Change (Contagem regressiva sobre saúde e mudanças climáticas), envolveu a ONU, agências intergovernamentais e 27 instituições acadêmicas, abrangendo disciplinas que vão de saúde a engenharia e ecologia.

"Um clima num processo acelerado de mudança tem implicações terríveis para todos os aspectos da vida humana, expondo populações vulneráveis a extremos climáticos, alterando padrões de doenças infecciosas e comprometendo a segurança alimentar, a água potável e o ar limpo", alerta o relatório.

Tempestades e enchentes, por exemplo, não causam apenas ferimentos diretos e mortes, mas também podem provocar o fechamento de hospitais e desencadear surtos de doenças e problemas mentais de longo prazo para aqueles que perdem suas casas.

Incêndios florestais, por sua vez, deixam pessoas feridas e desabrigadas, mas também pioram dramaticamente a qualidade do ar em amplas áreas. Os recentes incêndios na Califórnia, impulsionados pela estiagem, deixaram não apenas mais de 80 mortos, mas também poluíram o ar até o estado de Massachusetts, diz Gina McCarthy, da escola de saúde pública de Harvard.

Além disso, temperaturas mais elevadas ligadas às mudanças climáticas estão aumentado o potencial alcance de doenças transmitidas por mosquitos, como a dengue. O clima mais quente também pode aumentar a resistência de micróbios a antibióticos.

Temperaturas mais altas também parecem estar afetando as colheitas mundo afora, diz o relatório. E o aumento dos níveis de CO2 na atmosfera reduz os nutrientes presentes em cereais, aumentando o risco de desnutrição mesmo para os que têm o suficiente para comer, afirma Kristie Ebie, professora de saúde global na Universidade de Washington.

Os efeitos do aquecimento global são mais graves para os mais velhos e os que vivem em cidades, as quais retêm calor e podem ser mais quentes que áreas ao redor, aponta o relatório.

A Europa e a região do Mediterrâneo Oriental, por exemplo, são mais vulneráveis do que a África e o Sudeste Asiático, pois concentram mais pessoas idosas em cidades densamente povoadas, afirmaram os especialistas.

Em comparação com o ano de 2000, 157 milhões de pessoas adicionais em situação vulnerável foram expostas a ondas de calor em 2017. O clima mais quente também levou à perda de 153 bilhões de horas de trabalho no ano passado, um salto de 60% em relação a 2000.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que, entre 2030 e 2050, as mudanças climáticas possam causar 250 mil mortes adicionais por ano em consequência de diarreia, malária, desnutrição e estresse por calor.

"Tendências de impactos das mudanças climáticas revelam um risco elevado e inaceitável à saúde, agora e no futuro", afirmou Hilary Graham, professora da Universidade de York, no Reino Unido, e coautora do estudo publicado na The Lancet.

"A falta de progresso na redução de emissões e no estabelecimento de capacidade de adaptação ameaça tanto vidas humanas quanto a viabilidade dos sistemas de saúde nacionais dos quais elas dependem", conclui o relatório, que insta todos os setores a fazerem mais para combater as mudanças climáticas.

Gilmar enriquece o capítulo brasileiro da história universal da infâmia

Na sessão do Supremo Tribunal Federal desta quinta-feira, o ministro Gilmar Mendes caprichou na pose de juiz dos juízes para reiterar que enxerga nos brasileiros sem toga um ajuntamento de idiotas. Decidido a justificar o indulto concebido por Michel Temer para livrar da cadeia corruptos de estimação, Gilmar enriqueceu o capítulo brasileiro da história universal da infâmia com dois falatórios capazes de deixar ruborizados até chicaneiros patológicos.

No primeiro, o doutor em tudo avisou que libertar bandidos em louvor do Natal é atribuição privativa do presidente da República, que pode fazer o que quiser. Pode, por exemplo, tratar a pontapés a lei, a ética, a sensatez, a moralidade e a Constituição. O chefe do Executivo, ressalvou Gilmar, “está submetido aos custos políticos da concessão do indulto”. Tradução: os insatisfeitos que votem contra Temer nas próximas eleições. Haja safadeza.

No segundo falatório, o ministro da defesa de culpados tentou contestar a informação divulgada pelos procuradores engajados na força tarefa da Lava Jato: se o texto forjado por Temer permanecer intocado, 22 dos 39 alvos da operação encarcerados no Paraná serão contemplados com o perdão. Depois de qualificar a constatação de “propaganda enganosa e pouco responsável”, Gilmar ampliou seu vasto acervo de tapeações em juridiquês de porta de cadeia.

“Dos 22 ditos beneficiados, 14 são delatores que já estavam livres do cárcere”, disse. “Já estão a salvo, mas por ato do Ministério Público Federal”. Se não sabe a diferença entre indulto e prisão domiciliar, Gilmar não pode ser ministro por excesso de despreparo. Se sabe e finge que não sabe, não merece ser ministro por excesso de cinismo.

Augusto Nunes

Dispensar o real

A minha mãe levou muito a sério aquele slogan dos anos 1970 que há quem atribua a Alexandre O'Neill - "Há sempre um Portugal desconhecido que espera por si" - e todos os domingos nos metia no carro para conhecermos o país, visitando igrejas, monumentos, jardins e museus e brindando-nos no final com um lanche em que provávamos a doçaria típica da região (cavacas nas Caldas, pastéis em Tentúgal). Conheci Santarém muito antes de ser a "Capital do Gótico" e a Capela dos Ossos foi o meu primeiro filme de terror.

As viagens não tinham uma preparação por aí além, mas às vezes a minha avó mostrava-nos uns livros com fotografias para abrir o apetite - e não me recordo de alguma vez ter sentido o mais pequeno receio de me aborrecer de morte com o que aí vinha. Talvez a bandeirinha das gulodices no fim da excursão fosse o segredo do êxito daquelas tardes de conhecimento. E que fosse.

Duas décadas mais tarde, o "Vá para fora cá dentro" já me apanhou com o país bastante bem calcorreado e sem perceber por que motivo tantos portugueses o trocavam por uma viagem de autocarro a dez cidades europeias em 15 dias ou uns banhos de mar em Punta Cana.

Lembrei-me disto recentemente quando, no regresso de uma outra viagem, pude finalmente visitar o Teatro Romano de Mérida (a minha mãe não nos levava além-fronteiras). Junto à bilheteira, um pai português pedia, por favor, aos dois filhos adolescentes que desviassem os olhos do smartphone só por uns segundinhos. Contrariados, lá fizeram o jeito de atentar no progenitor que, de prospecto na mão, explicava que poderiam ver apenas o teatro, mas que ele e a mãe, já que ali estavam, gostariam de visitar também o museu e o Circo Romano que, pelas fotografias, pareciam realmente a não perder. E tentou partilhar as bonitas imagens com aquelas duas almas na tentativa de as convencer.

O tom servil perante a descendência já me tinha intrigado (à minha mãe nunca ocorreu pedir-nos licença para entrar no Mosteiro de Alcobaça ou subir ao Cristo Rei, levava-nos e pronto); mas o pior foi quando um dos rapazes, num tom que deixava transparecer um certo desdém por aqueles pais que ainda se entusiasmavam com umas ruínas, disse que francamente não percebia qual era o objectivo de visitar o teatro ou o circo se tinham acabado de os ver nas fotografias do folheto e havia de certeza montes de vídeos na internet. Adeus, futuro.

Maria do Rosário Pedreira

A trilha

Mude!

Antes de poder mudar o mundo, você precisa compreender que você, você mesmo, é parte dele. Não dá para ficar de fora olhando para dentro
Bernardo Bertolucci

O clima e a soberania do País

Em dezembro de 2015, todos os 195 países membros da ONU chegaram a um acordo legalmente vinculante a respeito da proteção do meio ambiente. Resultado de longas negociações, que culminaram na 21.ª Conferência das Nações Unidas para Mudanças Climáticas (COP-21), o Acordo de Paris representou o compromisso de limitar o aumento médio da temperatura da Terra a 1,5°C até 2100. Em vez de se sujeitar a metas predeterminadas, cada país se comprometeu a elaborar uma estratégia de redução das emissões de carbono, dentro do objetivo comum de reduzir o aumento da temperatura global.

Tendo contribuído ativamente nas tratativas do Acordo de Paris, o Brasil assinou oficialmente o documento em 22 de abril de 2016. Cumprindo os trâmites institucionais, o acordo sobre o clima foi aprovado pelo Congresso Nacional em agosto do mesmo ano, por meio do Decreto Legislativo 140/2016. O Acordo de Paris, a seguir, tornou-se norma vigente do ordenamento jurídico brasileiro, por decreto presidencial.


Dada a importância do tema, é no mínimo imprudente que o presidente eleito Jair Bolsonaro diga que o Brasil deverá abandonar o Acordo de Paris, como se a participação do País no esforço para limitar o aumento médio da temperatura global fosse uma questão pessoal de quem ocupa, no momento, a Presidência da República.

O assunto veio à tona após o Brasil anunciar a retirada de sua candidatura para sediar a COP-25, a ser realizada em 2019. O Brasil representava a América Latina e havia sido escolhido pela região para receber o evento. Num primeiro momento, o governo brasileiro informou que a mudança de planos era motivada por questões orçamentárias. No entanto, logo em seguida, o presidente eleito esclareceu que “houve participação minha nessa decisão”.

Ao explicar por que preferia que a COP-25 não fosse realizada no Brasil, o presidente eleito disse que existe a possibilidade de o País sair do acordo do clima e não queria “anunciar uma possível ruptura dentro do Brasil”.

A retirada da candidatura surpreendeu a comunidade internacional. “Passamos meses debatendo o assunto (sobre o local da COP-25) e, justamente para que tivéssemos tempo, já escolhemos o Brasil há meses para que fosse a única candidatura. Agora, de última hora, Brasília cede ao novo governo e nos deixa na mão”, disse um diplomata latino-americano ao Estado.

Se a desistência do Brasil em sediar a COP-25 já é uma atitude hostil, desalinhada com a tradição diplomática brasileira, o anúncio da possível saída do Acordo de Paris é de enorme gravidade. O compromisso firmado em 2015 tem uma dimensão que vai muito além do período para o qual Jair Bolsonaro foi eleito para ocupar a Presidência da República. É preciso cuidado para tratar de questões que podem provocar prejuízos de longo prazo, alguns deles irreparáveis. Se há exageros em algumas discussões sobre proteção do meio ambiente, que podem eventualmente gerar efeitos sobre a agricultura e a pecuária do País, isso não é motivo para desqualificar todo o debate contemporâneo a respeito das melhores práticas, públicas e privadas, relativas à sustentabilidade do planeta Terra.

Em mais de uma ocasião, Jair Bolsonaro disse que o Acordo de Paris colocava em risco a soberania do Brasil, já que incluiria a criação de uma grande área de preservação ambiental, chamada “Triplo A”, que se estenderia desde os Andes, passando pela Amazônia, até chegar ao Atlântico. O futuro presidente entende equivocadamente o que seja soberania e sua concessão. Prova disso é que, se fincar pé no cumprimento de sua meta de campanha e cumprir todo o ritual de revogação da adesão ao Acordo, o Brasil, de fato, num ato de soberania – aquela que ele diz ter sido vulnerada –, ficará fora do esforço mundial de recuperação do clima. Mas essa, santa ignorância, é uma falsa questão. O texto celebrado em Paris não dispõe sobre a criação da tal faixa de terra. Não convém aos interesses nacionais criar problema onde não existe. E convém aos brasileiros, principalmente às gerações futuras, viver num clima limpo e saudável.

O Rio é a síntese do Brasil

A prisão do governador do Rio, Luiz Fernando Pezão, em pleno exercício do cargo, reveste-se de profundo sentido simbólico.

Resume a política brasileira contemporânea, em que o Estado e suas instituições foram capturados pelo crime organizado. Ele está nos três Poderes. A Lava Jato, uma operação policial, tornou-se, por isso mesmo, estuário das esperanças nacionais. Fato inédito.


Além dos quatro últimos governadores – Garotinho, Rosinha, Sérgio Cabral e Pezão -, estão presos os três últimos presidentes da Assembleia Legislativa fluminense e todo o Tribunal de Contas do Estado (à exceção de uma ministra, nomeada ao tempo em que os outros embarcavam no camburão), além de procuradores e juízes.

O Rio não é exceção; antes, é regra. Nem é a cidade mais violenta do Brasil: no ranking nacional, é a 22ª.

Mas, como cidade-síntese da nacionalidade – foi capital em suas três fases históricas (colônia, império e república) -, é um retrato do país, que tem hoje um ex-presidente (Lula) preso e os dois que o sucederam (Dilma e Temer) já na condição de réus.

O presidente que, dentro de um mês, sai se empenha em conceder um indulto a amigos, políticos que incidiram no crime de corrupção – o mesmo de que é acusado -, com plena recepção do STF (que já contabilizou os seis votos necessários para aprová-lo).

A eleição de Jair Bolsonaro, um deputado que por quase três décadas integrou o chamado baixo clero da Câmara, decorre desse quadro moralmente devastado. Bolsonaro concentrou sua atuação parlamentar, sempre vista como irrelevante, quando não caricatural, na denúncia do crime e da corrupção generalizada.

Fez dessas questões, negligenciadas por todos os governos da chamada Nova República, a bandeira de sua candidatura presidencial vitoriosa. Expressou numa linguagem que alguns consideram tosca o que todos identificam na realidade mais imediata da vida.

As chamadas grandes questões – na economia, na organização do Estado, no campo ideológico – perdem relevância diante do cotidiano infernal que o cidadão enfrenta. E é simples entender: para discuti-las, é preciso estar vivo. E as cidades brasileiras tornaram-se sucursais da Faixa de Gaza. Quem quer investir num lugar assim?

A partir do óbvio, consolidou-se a candidatura Bolsonaro, que, partindo de aliados simplórios, agregou apoios mais graduados e hoje transcende o seu ambiente de origem. O desafio que se impõe é o de transformar o ecossistema político brasileiro. Nada menos. E isso o torna persona non grata de todo o establishment.

Essa, na verdade, foi a promessa que o PT, na sua origem, fazia ao eleitorado. Prometia um mundo novo, livre da corrupção.

No poder, repetiu (e levou ao paroxismo) os erros que sempre denunciou, transformando-se de partido político em “organização criminosa que se apoderou do Estado brasileiro”, nas palavras do ministro Celso de Melo, do STF, quando do julgamento do Mensalão.

A montagem do Ministério, feita às claras – e por isso mesmo tendo suas divergências e contradições expostas ao público -, desafia o chamado presidencialismo de coalizão (ou de cooptação), ao minimizar a consulta aos partidos.

O risco é que derive para o tecnocratismo, que, ao prescindir da política, se distancia também da realidade.
Ruy Fabiano