terça-feira, 23 de setembro de 2025

Da fixação infantil ao gozo contemporâneo

I

Um dos jargões mais marcantes para os millenials do Brasil é “Oh vida, oh céus, oh azar”. Assim se lamentava a hiena que forjou milhões de infâncias hoje adultizadas e feridas. Essa suposta dor encenada no desenho animado não pertencia somente à minha geração: o coitadismo sempre existiu, o vitimismo sempre existirá e o seu trabalho consiste em trocar de roupa. Aquiles se entregou ao próprio sofrimento e se negou a lutar, mesmo sabendo que os companheiros de batalha sofriam na carne uma Ilíada particular, morrendo um a um. Motivo? A perda da escrava Briseida. Raskólnikov matou a agiota que, para ele, representava a ponta mais visível da opressão que sofria, ampliando a barbárie ao sacrificar também a irmã da prestamista. A justificativa do protagonista para as machadadas assassinas está na superioridade que ele, equiparando-se a Napoleão, fantasiava em si mesmo e que o habilitaria para ultrapassar as leis e a moral (soa familiar?). Numa espécie de declaração judicial novelada, Humbert Humbert confessou a sua paixão por Lolita e narrou a própria pedofilia com tamanha autocondescendência que nós, empapados de machismo, chegamos a sentir que a criança realmente seduzia o seu tutor – pobre homem. Bentinho justificava os seus surtos de ciúme contra Capitu com base em sinais insípidos e ambíguos, mas, segundo ele, suficientes para comprovar uma traição. Essa certeza foi fervorosa ao ponto de ele não conseguir se relacionar com o filho que, tinha certeza, também era fruto da suposta deslealdade.


Entre estes e outros personagens há um elemento comum: todos esses homens – não por coincidência – justificam o seu furor homicida, a sua derrota, a sua perversidade ou a sua fraqueza não como resultado da própria intransigência, irresponsabilidade, cegueira ou sede de poder, mas sim como efeito de algo mobilizado fora do Eu. E assim se forjou o vitimismo no Ocidente: um mecanismo psíquico que, no plano coletivo, funcionou e funciona como um lastro da cultura, uma máquina da história, um estado ético e estético que formou homens e mulheres – na ficção e fora dela.

II

A postura vitimista nada mais é do que uma fixação infantil: numa determinada vivência inaugural, a criança sente que foi ferida injustamente e está certa de que tem direito a uma retratação do Outro (eis o que Bentinho repetiu ao longo da vida). Mas a culpa dessa outridade não existe necessariamente e, portanto, esse pedido de desculpas não chegará. Por isso, a criança se ressente contra o mundo e cresce presa à fantasia de matá-lo. Ao longo da existência, essa posição pode se consolidar numa certa interpretação da realidade cujo sintoma é a repetição infinita das sensações de inferioridade e injustiça. A cristalização da autopiedade na vida adulta só é possível porque, enquanto mecanismo de defesa, o vitimismo tem uma arquitetura objetal: depende do outro para se sustentar. O sujeito assim neurotizado acredita não ter a culpa de nada, mas os objetos externos, sim, são seus réus.

Considerando que todo mecanismo de defesa supõe um ganho secundário, o gozo da vítima está na possibilidade de agenciar o falso acolhimento (também objetal), a não responsabilização, a negação da própria incapacidade e – principalmente – a confirmação do sentimento de injustiça. Humbert Humbert o fez com leitores e leitoras ao construir a narrativa de tal maneira a ser percebido como o vulnerável e, portanto, vitimado da história (quando, na realidade, ao contrário da imagem de femme fatale que ele mesmo imprimiu na criança, ela era não a femme, mas a vítima fatal, e ele o algoz calculista e sem escrúpulos); Bentinho também empreendeu essa tentativa ao juntar uma série de ambiguidades que, em conjunto, desenhavam Capitu como traidora. E, para si mesmo, o conjunto dessas “provas” funcionava como uma espécie de consolo. Na Ilíada, são muitas as cenas em que, indireta e implicitamente, Aquiles sentia prazer em ser percebido como homem-sofredor-injustiçado-desonrado diante dos compatriotas que, por obediência, respeitaram a sua retirada suja de birra. Se observamos as representações do vitimismo na literatura da vida contemporânea, temos, por exemplo, as figuras do escritor que fala sobre a impossibilidade da escrita, os dramas da vida pequeno-burguesa, o vira-latismo intelectual ou as lamentações de uma branquitude esquizofrênica que perdeu o seu lugar de privilégio. Mais especificamente no campo das escritas de si, linha editorial em franca primavera, poucas vozes conseguem enunciar a própria história sem apelar para a vitimização. Esse gozo é irresistível, embora na literatura poucas e poucos consigam evitar a sua fatalidade.

III

Considerando que, como a psicanálise bem demonstra, tudo se repete no chão da cultura, os vitimismos ressurgem, hoje, com uma roupagem assustadora: no horizonte do turbotecnomachonazifascimo proposto por Márca Tiburi, pessoas postam o braço agulhado na cama da UTI, abrem uma live para chorar por um problema particular, publicam selfies em lágrimas, culpam (e às vezes matam) a mulher que decidiu romper a relação opressora, se posicionam como vítimas dos signos, do destino, de marte retrógrado – mas nunca de suas próprias ações. Uma observação: respeito e admiro todas as formas de crer (eu mesmo já estive e sigo adepto a muitas delas). O recorte aqui posto diz respeito à ação neurótica – automática e repetitiva – de manipular a montagem dos fatores externos para justificar um problema que poderia ser resolvido com mais responsabilidade e implicação pessoal. Atualizando a postura de Bentinho ou Humbert Humbert, muitas pessoas buscam ouvintes prontos para acreditar na versão enviesada de quem conta. Por sorte, não é difícil perceber que quem fala manipula e distorce em função de motivações conscientes e inconscientes. O gozo narcísico do vitimismo está no ombro amigo do mundo, mas também na facilidade da não confrontação com o próprio contraditório – e com a ação transformadora que ele exige.

No contexto coletivo, que é sempre político, a mobilização do imaginário coitadista está em todos os grupos do espectro, em maior ou menor intensidade. Para nós que estamos do lado de cá da tela, acompanhando os movimentos de aproximação e deriva entre partidos, só nos cabe a pergunta que também devemos aplicar à leitura literária: quem diz o quê e com qual intenção? A postura vitimista de Bolsonaro encontra símiles em Trump, Milei, Bukele, Abascal, Le Pen, Orbán e tantos outros que recitam o mesmo roteiro e interpretam uma mesma cena: manipular a lei democrática a favor de interesses antidemocráticos. É o puro cinismo que não se viu, por exemplo, quando prenderam Lula. Embora movido por uma paixão autocomplacente vez ou outra, ele não enviou os seus filhos à Rússia ou à China para articular chantagens econômicas contra o Brasil. No caso de Dilma Rousseff, pese a sua tão criticada inabilidade para o diálogo, o coitadismo de Estado não foi em nenhum momento a postura da ex-Presidenta. O que ela fez não foi falar de si, do que sofreu ou do quanto a política foi e é injusta com ela. Sem personalizar as ações, discursos e debates, Dilma optou por chamar a atenção para as manchas na História brasileira, para a gravidade do retorno a uma autocracia militar, para o perigo da saúde democrática. Quando alguém disser que políticos são todos iguais, é importante lembrar o grau de vitimismo agenciado e enunciado (ou não) por cada um.

Infelizmente, o capital político se fortalece com a mobilização bem-intencionada dos afetos das massas e com a confusão – arquitetada – entre vítima e herói. Daí surgem os falsos mártires. Enquanto a dinâmica do vitimismo individual tem como base a inferioridade não elaborada e a consequente queixa projetiva, no campo coletivo as figuras políticas se entendem superiores, mas aproveitam as facadas na barriga e os tiros na orelha para fingir uma fragilidade heroica. Com isso, alcançam os afetos individuais para, no final, transformá-los em votos.

Se a vitimização produzisse energia, seríamos um planeta autossuficiente para sempre. Mas não. Pelo contrário, o que o coitadismo faz é sugar o vigor de todos nós e, no campo coletivo, esculpir messias “pobrezinhos”.

Independência

Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo.

Machado de Assis

Anistia, Dosimetria e a Varinha do Paulinho

Eu fico me sentindo no boteco da esquina, comendo um pastel de pato no tucupi e tentando entender a diferença entre anistia e dosimetria. Do outro lado da mesa, o Super Paulinho da Força, daqueles políticos que adoram uma assembleia brigada, tentando explicar que as duas coisas são a mesma. O nosso problema, e de quem aprendeu a ler e escrever, nem estudou história com o Peninha, é que não são, nem brincando, a mesma coisa. Mas, como no Brasil a lógica política às vezes parece uma marchinha de carnaval tocada em ritmo de bolero, a confusão faz muito sentido.

Anistia é o perdão coletivo: “meu amigo, esquece o que aconteceu, bola pra frente, vida nova”. É como quando a professora Adelaide, do ensino médio, decidisse perdoar a bagunça da turma e não descontar ponto na prova seguinte. Já dosimetria é o contrário: não é esquecer o crime, mas medir a força da paulada. “Você errou, mas vamos ver se foi só um tropeço ou um salto olímpico na ilegalidade”. É como o dosador que deu dezessete anos para a terrorista armada de baton e lápis de sobrancelha.


Pô, Paulinho! Deixa o povo brasileiro seguir em paz! Nós não sabemos viver no meio dessa intriga, em que hoje convivemos, e que vocês estão acostumados. Refresca o Mercado! Isso não pode terminar bem. Estamos nos atolando na Lei de Murphy.

A graça é que, no palco da política nacional, querem fazer o público acreditar que as duas palavras são irmãs gêmeas, pigópagas, como dizia o Senador Evandro Carreira. Ao ser indagado pelo termo, o genial Evandro dizia: São as gêmeas unidas pelo bumbum. Só que não são. Uma tira a pena inteira (anistia), a outra mede o tamanho dela (dosimetria). Coisas que só o Presidente Temer conseguiria fazer.

O Paulinho da Força, sempre hábil em transformar debates jurídicos em slogans fáceis, resolveu aproximar as duas palavras como quem aproxima primos de quarto grau. A anistia que ele tanto deseja é como apagar a lousa da escola: “não importa quem escreveu, nem o palavrão que ficou marcado, passa o apagador e finge que nada houve”. Já a dosimetria é mais sisuda: não apaga nada, mas calcula a pena — 5 anos, 17 anos, ou 43, como anda ameaçando o Supremo nos casos de golpe. E lá vem o “gópi” mais burro e difícil de se entender.

Só que o brasileiro médio, esse sobrevivente que encara boletos, trânsito e fila no SUS, quando escuta “dosimetria” pensa logo em coisa pesada. A palavra tem gosto de laboratório soviético. Parece nome de manual de tortura da KGB. Se disserem que “a dosimetria será rigorosa”, o povo já imagina Stalin fazendo a contagem, Hitler batendo o carimbo e Mao Zedong servindo chá de pólvora para acompanhar umas bolachinhas.

Amigo leitor, dosimetria não é a Papuda nem paredão de fuzilamento. É só a fase do julgamento em que os juízes calculam a pena. Leva em conta o crime, as circunstâncias, a intenção e até se o réu foi educado ou malcriado no tribunal. É o momento em que o magistrado coloca no liquidificador da Justiça todos os ingredientes: culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, motivos e consequências. No fim, sai a sentença: pena mais branda ou mais dura. As penas estão do tamanho do tempo de vida estimado para os que fazem a atual dosimetria. Para quando os dosadores saírem do sistema e os condenados saírem da vida.

Já a anistia é o ato político que diz: “apesar de você, o Brasil há de ser, vai virar a página”. No Brasil, tivemos anistia famosa em 1979, perdoando crimes políticos de militares e opositores. Atos, com morte pelo meio, foram esquecidos. Foi vontade e pacto nacional, não cálculo de pena. A anistia é uma borracha, a dosimetria é uma régua com oito buracos para chupar.

Aos brasileirinhos e leigos, o recado é simples:

Anistia = perdão coletivo, decisão política.


Dosimetria = cálculo da pena, decisão jurídica. Só o Temer sabe.

A diferença é enorme, mas o discurso é Malasarte. Paulinho tenta nos fazer acreditar que a régua da Justiça é a mesma coisa que a borracha da política. E se o brasileiro não ficar atento, pode acabar acreditando que Stalin, Hitler e Mao Zedong eram apenas chefes do Conselho Tutelar.

Paulinho, não permita que estendam os benefícios da Lei Magnitsky para o nosso presidente e família. Isso ficará muito difícil para o mercado entender. Os doidos de lá, são doidos há séculos. Os nossos, cheios de talento, saíram recentemente da Escolinha.

Tentativa de golpe de 2023 não acabou

As grandes manifestações de 2013 representaram o prelúdio da narrativa social pelo pedido de tutela militar sobre o poder presente em todas as manifestações da extrema direita no Brasil. O fetiche por um governo militar não é recente. Para lembrar, com o fim da monarquia, entre 1889 e 1894, o país foi dominado por setores militares. Desde a independência de Portugal, (1822) até 1964, ocorreram 9 golpes de Estado e 23 tentativas de interrompem o curso normal do poder político regido por leis. A luta pelo poder a partir da ruptura da ordem instituída é uma ideia com padrão histórico e está presente, ainda hoje, como nos lembra o filósofo Newton Bignotto na obra Golpe de Estado: a história de uma ideia.

Em 2014, um ano após os atos, Dilma Rousseff foi reeleita para mais quatro anos como presidenta da república. Contudo, Aécio Neves (PSDB/MG) não reconheceu a derrota e incitou a narrativa da Lava Jato de que o governo do PT era uma “organização criminosa”. A narrativa fazia parte do roteiro do golpe institucional que culminou no impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, e fora patrocinado pelo vice-presidente Michel Temer (MDB/SP), pelo presidente da Câmara Federal Eduardo Cunha (MDB/RJ), setores econômicos, militares, sistema de justiça e os grandes veículos da comunicação.


O golpe institucional de 2016, contra o governo da presidenta Dilma Rousseff, no entanto, fazia parte de uma estratégia mais ampla. Visava o fim do ciclo vertiginoso de democracia na América Latina. Ele interrompeu o desenho geopolítico a partir do Sul Global, desmontando o Mercosul, a Unasul, inviabilizando a Celac – Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos – e comprometendo fortemente os BRICS e o Banco do Sul. Além disso, anulou a construção de uma política soberana de exploração do pré-sal e a busca por uma transição ecológica no Brasil, financiada com os recursos do petróleo.

Como lembra Christian dos Reis, sociólogo e amigo, “o jogo é jogado e o peixe é pescado”. O pescador experiente sabe que é preciso conhecer o comportamento dos peixes que nadam solitários ou em cardumes, compreende as águas e as marés e cultiva o hábito da paciência. Por fim, tanto o resultado do jogo quanto o sabor do peixe, não se conhece de antemão.

Com Temer no poder, o segundo lance do jogo foi colocado em prática. Lula, líder nas pesquisas, foi condenado e preso. Impedido de concorrer à presidência, ele passou o bastão a Fernando Haddad (PT/SP) e Manuela D’Ávila (PCdoB/RS). Bolsonaro foi eleito no segundo turno. Os quatro anos seguintes são indescritíveis, tanto pelo desgoverno quanto pela pandemia em si, com centenas de milhares de mortes no Brasil.

O desgoverno Bolsonaro terceirizou o orçamento da União ao Congresso Nacional e, de forma sorrateira e silenciosa, sem que nos déssemos conta, alterou profundamente o sistema político brasileiro. Isso afetou, em particular, o sistema de freios e contrapesos na relação entre os poderes. O escandaloso “orçamento secreto”, um movimento tático do golpe, fraturou o presidencialismo de coalizão.

Para explicar melhor: anteriormente, deputados federais e senadores precisavam compor com o Poder Executivo para promover obras, serviços e políticas públicas nos estados, uma vez que o Poder Executivo detinha o controle sobre o Orçamento da União. Por sua vez, o Poder Executivo necessitava dos votos das bancadas para aprovar projetos de seu programa de governo. Havia, então, uma composição de interesses legítimos: um de governar, outro de levar para suas bases bens e serviços do governo federal. Atualmente, um deputado federal tem mais recursos disponíveis a partir das emendas ao orçamento, incluindo o “orçamento secreto”, do que muitos ministros de Estado. Essa jogada, promovida por Arthur Lira (Progressista/AL), alterou o padrão de pesos e contrapesos entre Executivo e Legislativo.

Lembra-se da paciência do pescador? Festejado pela mídia, pelo agronegócio e por clubes militares, o ex-juiz federal Sergio Moro abandonou a magistratura para se tornar ministro de Estado no governo Bolsonaro. Ele foi considerado juiz imparcial nas ações da Lava Jato que condenaram o presidente Lula e todas as suas ações, contra o presidente, foram posteriormente extintas.

Lula sai da prisão injusta. Apaixonado por Janja, casou-se e tornou-se novamente candidato à presidência da república pelo PT. Foi eleito (2022) por uma margem de votos apertada, menos de 3 milhões de votos. A vitória mais grandiosa de todos os tempos.

Mas, lembre-se: jogo é jogado, peixe é pescado. Inconsolados com a derrota, apoiadores de Bolsonaro realizaram mais de dois meses de acampamentos em frente aos quartéis em todo o Brasil, pedindo uma intervenção militar. Em janeiro de 2023 foram a Brasília. Praticaram atos de incitação ao golpe contra o poder instituído. Destruíram símbolos nacionais, depredaram patrimônio da União tanto no Congresso quanto no STF, cometeram violência contra servidores públicos e, tudo indica, visavam colocar em prática o plano “Punhal verde e amarelo” para matar o Presidente da República, o vice-presidente e ministros da Suprema Corte. Os golpistas, por fim, esperavam do Executivo, do Congresso Nacional e do STF uma rendição. E, neste caso, vejam vocês, por muito pouco, o arco-íris muda de cor e a rosa nunca mais desabrocha.

No dia seguinte à tentativa de golpe, em 9 de janeiro de 2023, a resposta veio. Um cordão humano, patrocinado pelo presidente Lula, caminhou em direção ao STF, reunindo ministros, presidentes da Câmara e do Senado, e os 27 governadores – inclusive os mais bolsonaristas, como Zema (Novo/MG), Tarcísio (Republicanos/SP) e Jorginho Mello (PL/SC), estavam presentes no ato em defesa da democracia. Dias depois, em 27 de janeiro de 2023, em um novo encontro com governadores, o governo divulga a carta pela democracia onde se lê: “A democracia é um valor inegociável”.

Mais de dois anos após o 8 de janeiro de 2023], 898 pessoas foram responsabilizadas pelos atos golpistas. Dessas, 371 foram condenadas, enquanto outras 527 admitiram a prática de crimes menos graves e firmaram acordo com o Ministério Público Federal (MPF). Entre as condenações, 225 resultaram em 17 anos e 6 meses de prisão, com base em provas classificadas como graves. As outras 146 foram condenadas por incitação e associação criminosa (abolição do Estado Democrático de Direito), consideradas crimes simples. Os condenados devem usar tornozeleira eletrônica por um ano, pagar multa, prestar 225 horas de serviços à comunidade e participar de um curso presencial sobre democracia[11] – adoraria ver!

O ex-presidente Jair Bolsonaro foi condenado em julgamento no STF, em 11 de setembro de 2025, a 27 anos e três meses de prisão. Ele já estava inelegível por 8 anos devido a outra condenação. Aguardam julgamento outros 23 réus pela tentativa de golpe contra a democracia, incluindo militares de alta patente.

O governo Lula 3 recolocou o Brasil, de forma soberana, como um importante player na geopolítica global. Atualmente, somos a 8ª economia mundial, estamos entre os 5 países com maior crescimento do PIB, ocupamos a 6ª posição em produção diária de Petróleo e nossa balança comercial, no 3º trimestre de 2025, registrou superávit, mesmo diante da agressão das tarifas do governo Trump. Internamente, temos a menor taxa de desemprego da série histórica (5,8%) e, novamente, sob o governo do PT, o país deixou o mapa da fome.

“Mas a tentativa de golpe não terminou ainda, você não tinha notado?” Na Câmara Federal, duas manobras foram aceitas pelo presidente Hugo Motta (Republicano/PB): a primeira, foi a aprovação, em tempo recorde de dois turnos, da Emenda Constitucional chamada PEC da blindagem, que impede a investigação, prisão e condenação de parlamentares do Congresso Nacional. Caso seja promulgada, deputados federais poderão tramar golpes de Estado à luz do dia, além de crimes hediondos. Incrível, não é? Oxalá, o Senado não dê asas a doido. A segunda manobra é um incentivo para golpistas: a tal anistia. Ampla ou restrita? Não importa! A tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 começou na anistia dada aos militares golpistas em 1979. A constante sabotagem das forças armadas à Comissão da Verdade sobre os crimes do regime militar é só mais uma face da violência. A sequência de golpes de Estado vem acompanhada de impunidade.

Os grandes jogadores do Capital global estão em ação neste momento, sim, neste exato momento enquanto você lê este artigo, caso tenha chegado até aqui. Alguns controlam mercados e transações globais, como as big techs, livres de regulamentação. Outros desestabilizam democracias, destituem governos, promovem guerras, crises humanitárias e genocídio, a exemplo do governo de Benjamin Netanyahu (Israel) contra o povo palestino. As sanções do governo Trump, parte do jogo do Capital, visam reduzir a velocidade do comércio mundial e da corrida tecnológica (especialmente da China) embaralhando as cartas e redesenhando fluxos de transações. Contra o Brasil, as tarifas representam um ingrediente de apoio ao permanente clima de golpe contra a democracia. Em 1964, o governo americano realizou a Operação Brother Sam, apoiando o golpe militar com um porta-aviões. Atualmente, impõe tarifas maiores ao Brasil, tentando desestabilizar o governo democrático, mas, sem sucesso.

Vivemos em um clima de permanente instabilidade democrática. A corrida armamentista global também coloca em pauta a guerra fria e o retorno do autoritarismo na América Latina conforme alertado pelo Itamaraty na Organização dos Estados Americanos e evidenciado pela presença de navios de guerra dos Estados Unidos na costa da vizinha Venezuela.

A hora é agora!

Neste domingo, 21 de setembro 2025, foi o preludio da nova primavera da democracia. Grandes manifestações tomaram as ruas em todo o Brasil contra a PEC da blindagem e contra a anistia a golpistas. A bandeira verde amarela foi resgatada na luta pela soberania e o poder popular. As mobilizações nas ruas, nas redes sociais, na organização de base nos territórios, devem seguir até que seja alterada, nas eleições de 2026, a composição do Congresso Nacional e garantida a reeleição do presidente Lula. Estas são as condições para a manutenção da soberania e da democracia no país.

Para além de uma derrota jurídica e eleitoral, deve ser imposta uma derrota moral aos que semeiam o ódio e a ideia de golpe contra a democracia. Sem anistia, sem acordos, sem retrocessos, sem dar a outra face ao tapa, chega! IMPUNIDADE E ANISTIA, NUNCA MAIS!

Que venham as flores de um novo tempo!

Adeus sob fogo: o deslocamento sem fim do norte de Gaza

Mais uma vez, fomos forçados a deixar o norte de Gaza sob uma tempestade implacável de bombardeios, medo e destruição, iniciando mais um deslocamento carregado de exaustão e perdas, desta vez em direção a Al-Mawasi, em Khan Yunis.

Ali, no local que a ocupação alegava ser "seguro", com acesso a água, medicamentos e necessidades humanitárias básicas, encontramos apenas terras inundadas de famílias deslocadas, rostos cansados ​​e dor recorrente. Al-Mawasi não era um refúgio, apenas mais uma parada em uma longa jornada de sofrimento, onde a vida não é verdadeiramente vivida, mas apenas suportada.

Nossa alegria ao tocar as paredes de nossa casa novamente não durou muito. Era a mesma casa que havia sido atingida por projéteis israelenses durante o cessar-fogo. Retornamos carregados de esperança, tentando com nossas mãos e corações cansados ​​limpar os escombros, tirar o pó das memórias, trazer de volta um traço do antigo pulsar da casa.


Acreditávamos que o amor bastaria para permanecermos — que nos apegarmos ao nosso lar, mesmo com todas as suas feridas, era o mínimo que podíamos fazer. Como família, fizemos uma promessa: não iríamos embora, ficaríamos enquanto tivéssemos fôlego em nossos corpos.

Mas a ocupação, com sua violência e arrogância, nos privou até mesmo desse direito. E, mais uma vez, não nos restou nada além da amargura da partida forçada.

No bairro de Sheikh Radwan, ficamos presos sob o fogo de drones quadricópteros. Eles bombardeavam e perseguiam cada movimento, tornando impossível abrir a porta ou mesmo olhar pela janela. Vivemos noites intermináveis ​​de terror, ouvindo o zumbido constante acima de nossas cabeças, contando os segundos até o próximo míssil atingir.

Em seguida, a ocupação instalou uma posição de atiradores de elite com guindastes a leste do bairro, mirando em qualquer um que se movimentasse pelas ruas. Era como se tivessem nos cercado com uma cerca de fogo, sufocando nossas vidas, apertando o cerco ao nosso redor e nos forçando mais uma vez à deportação.

Os últimos dias antes da nossa partida foram como os horrores do Dia do Juízo Final. Muitos dos nossos vizinhos receberam avisos de evacuação, seguidos por bombardeios devastadores. O cheiro de pólvora e fumaça ainda persiste no meu nariz até hoje, e continuo com dificuldade para respirar devido à intensidade do que suportamos. Ficamos sem água e comida; os mercados estavam fechados; até as barracas de rua se tornaram alvos de bombas lançadas por aviões à noite. Não tivemos escolha a não ser fugir para o sul para escapar da morte certa.

A jornada de deslocamento foi árdua em todos os detalhes. Meus pais idosos, sobrecarregados por doenças crônicas, não conseguiram suportar a longa jornada. Carregamos suas preocupações em nossos corações antes de carregá-los em nossos braços. Nossa viagem do norte ao sul levou quase seis horas sob um sol escaldante, pela Estrada Rashid, que a ocupação designou como rota de evacuação.

No caminho, presenciamos uma cena que jamais será apagada da memória: uma barraca na praia desmontada diante dos nossos olhos, com corpos espalhados pela areia. Estávamos a poucos metros de distância, mas essa distância foi suficiente para nos roubar o sono para sempre. Mesmo agora, sempre que fecho os olhos, aquela cena volta para me acordar.

Após a exaustiva jornada, chegamos ao campo de deslocados de Khan Yunis. O local estava insuportavelmente superlotado. Os serviços eram escassos, insuficientes para todos. As pessoas eram obrigadas a descer até o mar sob o sol escaldante para coletar água salgada, o que levou à disseminação de doenças de pele entre adultos e crianças. Observar as pessoas enchendo garrafas com água do mar parecia uma cena de romance apocalíptico. Tudo aqui é difícil: dormir, comer, conseguir remédios — até mesmo encontrar um pequeno pedaço de sombra para descansar se tornou um desafio.

Hoje, vivemos em um turbilhão de ansiedade e medo. Todos os dias, assistimos às notícias sobre novos prédios residenciais desabando em Gaza. Dormimos pensando: nossa casa ainda estará de pé ou também se transformará em escombros? Meus pais precisam de cuidados médicos contínuos e medicamentos que não conseguimos encontrar.

Sinto-me impotente e frustrado pela minha incapacidade de garantir os medicamentos deles e pela impotência da nossa família diante dessa tragédia implacável.

E, no entanto, apesar de tudo isso, há uma voz interior que se recusa a ceder. Ela me sussurra que Gaza resistirá e que um dia retornaremos ao norte para reconstruir, pedra por pedra, erguendo nossos lares novamente com nossas próprias mãos. Essa voz me diz que esta terra permanecerá livre e orgulhosa, não importa quanto tempo dure a destruição, e que toda essa dor é apenas um capítulo na história da resiliência.

Gaza está sangrando hoje, mas não vai se romper. A Gaza da qual me despedi — com esperança de retorno — permanecerá sempre em meu coração como um símbolo de dignidade e orgulho, até que cada pessoa deslocada volte para casa, cada criança retorne à escola e cada família se reencontre com suas memórias.