sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Caro Jair

Independentemente de votar ou não em você depois de amanhã, torço — e muito! — pelo seu sucesso.

Torço porque, apesar de suas frases infelizes e do preconceito que nunca procurou esconder, você é depositário das esperanças de milhões e milhões de brasileiros. São pessoas que o admiram ou apostam em você para nos livrar de um mal maior. Tomara que não estejam cometendo um equívoco.

É que não temos tido muita sorte com presidentes. A maioria errou feio. Collor, Lula e Dilma, por exemplo, chegaram como a salvação da lavoura, mas traziam consigo uma praga de gafanhotos.

Talvez por isso muita gente tenha embarcado nas narrativas distópicas e delirantes que a esquerda andou espalhando por aí (que você vá dizimar as mulheres, chacinar os negros, massacrar os LGBTs, trucidar os de humanas; impor a censura, acabar com a cultura, devastar a Amazônia, implantar uma ditadura nazifascista, institucionalizar a tortura, voltar com as aulas de OSPB...). Esse Brasil desertificado, bestificado e retrógrado, dominado por machos brancos heterossexuais de exatas realmente não parece uma boa ideia.


Sem qualquer pretensão a côutchim e sem me meter no seu programa de governo, queria que você pensasse nisto com carinho:

— Já passou da hora de enquadrar os meninos. Ensine-os a soletrar “poço”, a não quebrar placa, a respeitar as instituições. Não precisa bater: o exemplo costuma dar ótimos resultados. Faça valer a hierarquia — ou você corre o risco de criar corvos que lhe comerão os olhos.

— Arrume uma função relevante para o seu vice. Vice ocioso é a oficina do diabo (pergunte ao Figueiredo e à Dilma). Mantenha-o a prudente distância dos civis que fazem perguntas.

— Não entre no toma lá dá cá. Não faça conchavo. Não receba empresário de madrugada para conversas pouco republicanas. Não venda medidas provisórias. Não se encontre às escondidas com ministros do STF. Não use o Ministério para livrar ninguém da cadeia. Não passe pano para malfeito. Aliás, não use eufemismos: chame as coisas pelo nome.

— Não bata boca. Não faça comentários racistas ou sexistas. Conservadorismo não significa atraso, intolerância. Não, não precisa ser politicamente correto: polidez e bom senso resolvem.

— Não plante canteiro com formato de revólver nos jardins do Alvorada. Não se abolete no sítio de amigos. Não dê dinheiro para ditadores amigos. Não fique amigo de ditadores. Não aceite agrados de empreiteiras. Se alugar um imóvel, pague em dia — de preferência em dia que exista no calendário.

— Seja fiel à Constituição. Resista à tentação de trocá-la por uma mais nova.

— Não traia quem lhe deu voto de confiança, e respeite quem o negou. Seja inflexível no fundamental (a ética, a moral, o bem comum) e conciliador no acessório. Ajude a Lava-Jato a terminar a limpeza que ela começou. Não faça, nem permita que se faça, mais sujeira para a Lava-Jato limpar.

— Descupinize o Estado. Deixe-o mais leve, mais ágil, mais saudável. Dê um basta nos privilégios; acabe com os feudos, as tetas, as tretas. Desestatize, desburocratize, reforme.

—  Melhore a vida do cidadão. Devolva com saúde, educação, saneamento, infraestrutura e segurança o imposto que ele paga. Entre escola e presídio, invista nos dois, para que, sem partido e sem facção, ambos efetivamente eduquem. Corte gastos e gaste melhor.

— Assim que puder, condene claramente a tortura. Demonstre apreço pela democracia, pelos direitos humanos, pelos direitos civis, pelo desenvolvimento sustentável. Resgate estas pautas, que foram sequestradas pela esquerda e estão, coitadas, em cativeiro há tantos anos. Mostre que as minorias não precisam passar o resto de suas vidas reféns dos progressistas, servindo de escudo humano para quadrilhas que as manipulam com a desculpa de protegê-las.

Você terá uma grande bancada e imenso apoio popular. Desarme o espírito, aposente os gestos bélicos, e contará também com os que não votam em você, mas cultivam essa estranha mania de ter fé no Brasil.

P.S. Com pequenas alterações, esta carta serviria também para o Fernando.

Nada de fim. É o futuro que se fará

A menos que ocorra uma virada histórica, Jair Bolsonaro deve ser eleito — e isso não significará, pelo menos não automaticamente, o fim da democracia. O futuro permanece aberto. O tamanho dos retrocessos que experimentaremos, aliás, dependerá de nossa capacidade de nos organizar nas linhas secundária e terciária de defesa das instituições. Esforços para tentar moderar os piores instintos do candidato também são bem-vindos
Hélio Schwartsman

A escolha

É chegada a hora da travessia do Rubicão dos brasileiros. Aquele momento em que, ultrapassada a eleição desse domingo, 28 — talvez a mais sangrenta, radical e imprevisível dos últimos tempos —, uma nova folha da história democrática será aberta. A referência ao Rubicão, que levou o imperador Júlio César à decisão mais arriscada de sua trajetória, quando cruzou o rio do mesmo nome para desbravar novos territórios, não é gratuita. Tomada por empréstimo, a expressão cabe na atual circunstância nativa por restar, também aos eleitores, uma das mais difíceis, senão inesperada, escolha sobre o seu futuro e desígnios. Será uma opção irrevogável e consequente. A sorte
está lançada, diria o lendário imperador. Lá, como aqui, é bem isso. O País está prestes a restaurar, 33 anos depois, os ditames militares que, em outra época e em outras condições, curvaram de morte as liberdades individuais através de uma ditadura tão infame como covarde. Guardada as proporções, a realidade é outra, a proposta também, em que pese o viés extremista e conservador. No mesmo movimento de faxina, a corrida presidencial está varrendo do mapa a agremiação que mais trouxe problemas à Nação no campo econômico, político, social e, por que não dizer, moral. O PT sairá bem menor, encolhido, relegado a um papel de coadjuvante do processo. Já se sabe desde já. Uma obliteração de status e relevância arquitetada por anos. Desde que a agremiação resolveu servir de guarida à corrupção e ao terrorismo de rua, incitando o quebra-quebra, como armas de campanha. Errou feio e pagará o preço. Eleitores darão nas urnas uma resposta eloquente sobre o que querem e o que não querem daqui para frente. À bem da verdade, há quem diga que eles estão escolhendo uma coisa e levando outra. Mas não há como negar, no clima inquisidor e de acusações instaurado no Brasil, movido por mentiras cavalares e separado por duas candidaturas beligerantes, o resultado não poderia ser diferente: um voto pelo novo, rompendo as amarras com a política ultrapassada e corrosiva. Na prática, a conclusão inescapável sobre o fator que rachou o País e produziu o quadro doentio, de quase guerra, entre dois lados é a de que o Partido dos Trabalhadores, com suas rivalidades imaginárias, fabricadas para atrair aliados, criou Jair Bolsonaro, como um reflexo oposto, um contraponto a sua imagem e semelhança, com as mesmas imperfeições, cacoetes e tentações totalitárias. O anticristo do lulopetismo, talvez menos venal, certamente mais antenado com o conservadorismo em ascensão. O capitão reformado, não pelo que fez, mas pelo que representa, trás um favoritismo fruto do meio, curtido no ódio visceral que a legenda dos vermelhos semeou. Surgiu na base da alternativa à balbúrdia administrativa, ao aparelhamento do Estado, ao compadrio congressual e ao roubo em escala gerados pelo PT e chegou aonde chegou com poucos méritos e um senso de oportunismo afiado. É sabido, na raiz do mal que enviesou a eleição para uma trilha jamais explorada até então está a tática desesperada, ofensiva e cínica do partido para o qual vale a regra do “Nós podemos tudo, ninguém pode mais”. Senão, vejamos: há poucos dias uma declaração, de resto indevida do filho do candidato Jair Bolsonaro, atentando contra a soberania do STF, gerou uma fuzarca, especialmente nas hostes do PT. O presidenciável Fernando Haddad, evidentemente, omitiu em meio ao deslize da esquadra adversária, que gente de seus próprios quadros, como o deputado Wadih Damous, havia proposto nada menos que o fechamento sumário do Supremo, no que foi seguido pelo quadrilheiro José Dirceu, que sugeriu retirar poderes da Justiça. Mesmo o demiurgo Lula já havia partido prá cima daquela casa reclamando que “O STF está totalmente acovardado”. Mas nada disso importa. O PT se acostumou a não reconhecer seus erros. Não pede desculpas e é mestre em apontar os pecados dos demais. No plano da emissão de mensagens em massa, por exemplo. Ele criou anos atrás esse esquema de fake news, catequizando seguidores na base da mentira. É provável que o senhor Haddad deliberadamente não tenha parado para verificar a quantidade absurda de impulsionamentos que o próprio partido veio realizando ao logo do tempo em redes digitais. É mais certo ainda que ele não enxergue ai nenhum mal ou dano a terceiros. Afinal, a agremiação da qual participa, no seu entender e no de seus pares, pode tudo, como já foi dito, restando aos demais o dedo inquisidor e acusador dos raivosos petistas. Esses convertem qualquer coisa em uma prova de golpe insidioso às suas pretensões de poder. Na base da malandragem e do cinismo, aplicando seguidas rasteiras, o PT tem alimentado a irritação que o País inteiro passou a ter contra o partido. Não toma jeito. Não aceita de maneira alguma jogar limpo, de igual para igual, e perder legitimamente, conforme a preferência nacional. O problema, é óbvio, será dele. O processo eleitoral segue o curso. Não vai, nem poderia, se curvar às idiossincrasias e muxoxos de uma agremiação cujo único intuito é impor na marra aos brasileiros a doutrina espoliadora, de assalto aos cofres públicos. O Brasil é maior que isso. E fará a escolha que lhe cabe como melhor.

Pensamento do Dia


Discurso para governar

Tem um discurso para ganhar eleição e tem um discurso para governar. Dizem que a frase é de Tancredo Neves.

Diante de uma eleição que as pesquisas de intenção de voto apontam como decidida já desde o primeiro turno, resta saber que outro discurso Jair Bolsonaro está disposto a empregar. O de ganhar a eleição deu certo.

Talvez alguns gestos de quem – se as pesquisas estão certas – vai ser o novo presidente brasileiro permitam vislumbrar que ele sabe a diferença entre realidade e retórica. A intenção por ele manifestada de preservar alguns quadros da atual equipe econômica, por exemplo. Faz supor que reconhece a existência de funcionários públicos que servem ao Estado e não ao governo da vez.


Ou a articulação de um apoio amplo para eleger um presidente da Camara dos Deputados saído não necessariamente das hostes do chefe do executivo, o que sugere o alguma ideia de que o Legislativo precisa de independência e não de controle pelo Planalto.

Tome-se também a manifestada disposição de rever a pretendida fusão do Meio Ambiente com Agricultura — aliás, o moderno setor agropecuário brasileiro compete internacionalmente dentro de reconhecidos padrões de sustentabilidade. Ou a de voltar atrás no anúncio de subordinar o Ministério da Indústria e Comércio à super pasta da Fazenda – países modernos e avançados separam finanças e economia.

Note-se, porém, que esses são mecanismos para governar, mas ainda não indicam em que eixos se dará a atuação do governo. Da mesma maneira, permanecem nebulosas as declarações de que a política externa será desvinculada de apegos ideológicos.

Nesse sentido, tenho chamado a atenção para o fato de que a imagem no exterior do provável novo presidente brasileiro é muito ruim, e não adianta dizer que é culpa de esquerdismo da “mídia internacional” – embora as esquerdas brasileiras tivessem mobilizado que laços existissem lá fora com o mundo diplomático, acadêmico, dos partidos e instituições internacionais pintando o Brasil como uma masmorra do apartheid social (e, agora, fascista). O fato é que a imagem ruim existe.

Mandatários de vários países formam opiniões sobre colegas de outros países também a partir do que recebem da própria mídia local. Parte substancial desses órgãos de imprensa (e, reitero, nada a ver com “esquerdistas”) considera Bolsonaro um risco à democracia ignorando as evidências de que a escolha que está sendo feita pelo eleitorado brasileiro é antes de mais nada a manifestação de profunda desconfiança e descrédito nas instituições existentes (como STF, partidos, imprensa) – “clima” do qual Bolsonaro é consequência e não causa.

O assalto às instituições começou muito antes dele. A corrupção é entendida pelos eleitores como a mais evidente e palpável expressão de degradação do funcionamento de todo o arcabouço jurídico-normativo-político. No fundo não deveria causar surpresa alguma a maneira como o pêndulo oscilou agora contra as forças políticas (não só o PT, evidentemente) que se apoiaram sobretudo na mentira, roubalheira e populismo fiscal irresponsável. Antes de surgir um Bolsonaro, já existia um enorme cansaço de “tudo isto aí”.

A ideia propagada por Bolsonaro de que ele é capaz de limpar o jogo sujo, e enfrentar tudo o que está corrompido (começando pela restauração de valores tradicionais), acabou sendo um grande triunfo eleitoral.

Mas apenas esse discurso, diria Tancredo, não lhe permitirá governar.

Vaivém pode tornar Bolsonaro um ex-Bolsonaro

Há dois Bolsonaros na praça. Um exibe nas redes sociais a retórica crispada do candidato em fim de campanha, preocupado em manter apoiadores mobilizados. Outro ensaia em reuniões reservadas o timbre moderado de um favorito a virar presidente no domingo. Esse Bolsonaro que se equipa entre quatro paredes para governar começa a ficar bem diferente do Bolsonaro do palanque eletrônico.

À medida que vai farejando a perspectiva de vitória, é natural que um candidato aproxime sua retórica da realidade. No tudo-ou-nada da campanha, os programas de governo tornam-se aguados. E as promessas ajustam-se mais àquilo que o eleitor deseja ouvir do que à viabilidade da consecução do que é prometido.

Confirmando-se os prognósticos de vitória, o risco que um candidato tido como mitológico corre é o de ficar irreconhecível. O ministério ultra-enxuto de Bolsonaro começou a esticar. O Meio Ambiente não será mais fundido à Agricultura. A pasta da Indústria e Comércio não será incorporada à Fazenda. O governo Temer já não é de todo ruim. Integrantes da equipe econômica podem ser aproveitados. O time de ministros especialistas pode ter um ou outro político derrotado nas urnas. Bolsonaro começa a virar ex-Bolsonaro antes mesmo de se tornar presidente.

Cidadãos no lugar de sindicalistas de toga e beca

É velha de mais de 500 anos a desconfiança contra os cidadãos brasileiros. No sistema de Justiça, converter a aplicação da lei em algo sempre especializado, só compreensível pelos bacharéis, com fórmulas misteriosas e formulários labirínticos, é um dos grandes estratagemas do patrimonialismo rentável.

O populismo autoritário latino-americano sempre seguiu a mesma linha. Para fazer valer a desconfiança contra os cidadãos, mas manter as aparências, a clava do controle social do Judiciário - e da imprensa, outra inimiga gramsciana. Todo poder às milícias vestidas de movimento social. Os conselhos populares de justiça dos militantes, não dos cidadãos.


No Brasil, a reforma do Judiciário de 2004 foi a aliança parlamentar inaugural entre o patrimonialismo e o populismo autoritário. A definição dos Poderes de Estado - Executivo, Legislativo e Judiciário -, núcleo central da vida em sociedade, é motivo de discordâncias inconciliáveis, em todos os tempos, em todos os países. Por aqui houve unanimidade entre situação e oposição na aprovação da reforma do Judiciário. Hoje as páginas policiais registram que a explicação pode estar no comércio ecumênico de algumas lideranças parlamentares da situação e da oposição.

Antes de chegar a essa reforma, a primeira do governo Lula, contra o último Poder de Estado ainda livre - isso diz muito sobre o desejo desmedido de “tomada do poder” -, alguns movimentos importantes foram feitos no sistema de Justiça. O governo do presidente Lula criou a Secretaria de Reforma do Judiciário dentro do Poder Executivo, órgão inconstitucional de intervenção desabrida de um Poder de Estado sobre outro.

A investida veio com o famoso discurso presidencial de abril de 2003, de denúncia da caixa-preta do Judiciário, com a citação inspiradora de um cangaceiro: “Como dizia Lampião em 1927, neste país quem tiver 30 contos de réis não vai para a cadeia. Ainda em muitos casos prevalece exatamente isso”.

Ao lado da criação inconstitucional da Secretaria da Reforma do Judiciário, outro movimento importante foi inocular o assembleísmo corporativo-sindical não apenas na Procuradoria-Geral da República, mas também nos cargos estratégicos do Ministério Público Federal, em todo Brasil. Os cargos de liderança pública da Nação - presidente da República, ministros do Supremo Tribunal Federal e procurador-geral da República, entre outros - são submetidos a requisitos estritos, segundo a liturgia cerrada da democracia.

No dia da eleição, o cidadão não pode escrever no voto que seu candidato a presidente da República, para a escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal, deverá exigir condições estranhas ao ritual da Constituição. Muito menos poderá fazê-lo o próprio presidente da República. Trata-se, é elementar, de questão indisponível.

Não obstante, uma entidade de classe privada, a Associação Nacional dos Procuradores da República, resolveu fazer lista tríplice censitária por meio da qual apresentaria três “eleitos” só por seus associados. Em junho de 2003 o presidente lula nomeou procurador-geral da República o “mais votado” na lista tríplice inconstitucional. Em setembro de 2003 o procurador-geral da República baixou uma portaria para regulamentar a “eleição” para os cargos estratégicos da instituição em todo Brasil.

Nos Estados, em sistema de chapas, como nos sindicatos, o procurador-chefe, o procurador eleitoral e o procurador dos Direitos do Cidadão passaram a ser eleitos sem nenhum critério. São três posições estratégicas. A primeira tem o poder administrativo organizacional. A segunda, atribuição sobre a classe política. E a terceira torna viáveis ações relevantes contra o poder econômico.

Assim foi feita a verticalização nacional do poder no Ministério Público Federal, da cúpula, em Brasília, até os cargos estratégicos nos Estados. Contra a Constituição. Contra a lei. Por uma portaria.

Quebrado o cristal da institucionalidade, com a conivência ou o adesismo das lideranças do sistema de Justiça, veio a reforma do Judiciário. Nela, o cidadão foi lembrado para pagar a conta de quatro conselhos de Justiça - o Brasil é o único país do mundo a sustentar tal estrutura.

A expansão de cargos públicos, porém, não ficou restrita a isso. O orçamento do Poder Judiciário foi direcionado para sustentar a nova elite sindical judiciária. É oportuno lembrar que o Judiciário brasileiro é um dos mais caros do mundo.

A estrutura gigantesca e dispendiosa serve ao conforto da nova elite sindical surgida com a reforma do Judiciário, mas a magistratura séria e trabalhadora continua a enfrentar o trabalho pesado, em condições adversas, sob intimidação difusa.

A sociedade precisa jogar as luzes da democracia sobre a reforma do Judiciário do patrimonialismo com o populismo autoritário. A Secretaria da Reforma do Judiciário já foi extinta, no curso da agonia do governo Dilma Rousseff.

A Procuradoria-Geral da República deve ser direcionada aos procuradores fiéis à República, não ao corporativismo sindical. Desfazer o grave prejuízo nos cargos estratégicos do Ministério Público Federal é imprescindível.

Uma emenda constitucional deve iniciar a reforma cidadã da administração da Justiça. Além de resgatar a magistratura séria e trabalhadora e acabar com o sindicalismo judiciário, o Congresso Nacional precisa dar voto de confiança ao cidadão e ampliar a instituição do júri, para matéria cível inclusive.

Em vez de buscar a inspiração em cangaceiros, devemos ponderar a experiência de outros países civilizados, onde prevaleceu a compreensão de que o júri de cidadãos é poderosa escola de civismo e instrumento de diminuição dos custos do sistema de Justiça.

O sujeito central do sistema de Justiça deve ser o cidadão, não os sindicalistas de toga e de beca.
Fábio Prieto de Souza, desembargador TRF-3

Paisagem brasileira

Grão Mogol (MG)

Falta a liga

Em uma entrevista de 26.10.2012, nosso campeão mundial Raí foi questionado sobre o que mais o tinha impressionado durante seu tempo na França, jogando no Paris Saint-Germain. Ele respondeu: “Minha filha ia na mesma escola que a filha da minha empregada”. Uma escola com qualidade igual à das melhores do mundo. Graças a isso, a França tem liga há mais de cem anos. Seu povo, apesar de desigualdades e discordâncias, tem coesão social no presente e rumo para o progresso no futuro.

Até 1861, a Itália não existia como nação. O território de hoje era povoado por grupos sociais organizados em pequenos principados, cada qual com seu idioma, seus costumes, suas características específicas. A unificação foi resultado da vontade e competência política de alguns estadistas, mas a liga que fabricou a Itália foi a escola com qualidade e características iguais para todos, unificando o idioma e criando os sentimentos pátrios.

O mesmo vale para todos os países que têm coesão e rumo: criaram, sistematizaram e mantiveram escola de qualidade e igual para todos ao longo de décadas. Nenhuma criança deixada para trás, todos os cérebros aproveitados, desenvolvidos e bem-formados, independentemente da renda e da cidade onde se mora. Essa liga é necessária e possível de se fazer no Brasil.

Nos últimos anos, dei minha contribuição ao aprovar algumas leis que serviram como ingredientes para essa liga: a Lei 11.738/2008, que estabeleceu um piso nacional para os salários de todos os professores do Brasil; a Lei 11.700/2008, que obriga cada governo municipal a assegurar vaga para suas crianças desde os 4 anos; a Lei 12.061/2009, que obriga todo governo estadual a oferecer vaga para todo jovem durante o ensino médio.

Para dar liga, o Brasil ainda precisa aprovar a PEC 32/2013, de minha autoria, há cinco anos em discussão, que funcionaria como uma espécie de Lei Áurea da Educação ao responsabilizar a União pelo cuidado com a educação das crianças brasileiras.

Por essa lei, os professores teriam uma carreira federal e os melhores salários do setor público, depois de selecionados com muito rigor e avaliados ao longo de suas atividades; os prédios escolares teriam as melhores instalações e modernos equipamentos pedagógicos. Além disso, todos os alunos estudariam em horário integral.

Respeitando a descentralização gerencial e a liberdade pedagógica, essa federalização daria as bases para a qualidade e a igualdade no acesso à educação. Sua implantação em todo o país levaria entre 20 e 30 anos. Por isso, ela precisa ser complementada pelo PLS 337/2016 – e tantos outros bons projetos em tramitação no Congresso –, pelo qual o governo federal adotaria de imediato o sistema escolar nas cidades mais pobres ou com os piores índices educacionais.

Que os novos membros do Congresso deem continuidade ao esforço dos que saem, consigam aprovar essas leis e construam a liga de que o Brasil precisa.

A nau dos desconectados

Estou fora do Brasil há cinco dias. Neste momento, aliás, estou até meio fora da Terra, voando rumo a Seul num dos primeiros aviões intercontinentais sem wifi que vejo em muito tempo. Somos a nau dos desconectados, uns 250 passageiros perdidos no espaço, sem saber o que acontece lá embaixo nas suas respectivas terras, e assim permaneceremos ao longo das próximas 13 abençoadas horas. Ver o Brasil daqui de cima (na verdade, não ver) é uma felicidade; ainda que, literalmente, passageira.

A Korean Air sabe o que faz. Não sinto saudades da conexão. O grau de histeria e de desinformação das redes sociais ultrapassou qualquer limite do razoável. Parece que o mundo vai acabar no próximo domingo, que o ar será sugado dos nossos pulmões e uma cratera gigantesca se abrirá sob os nossos pés — e não apenas metaforicamente.


O terrorismo psicológico chegou ao auge, mas desta vez vem sobretudo do lado que, há alguns anos, crucificou Regina Duarte, justamente porque ela confessou que tinha medo. Agora, que medo virou tendência, Regina Duarte está sendo crucificada de novo, desta vez por não ter medo. Naquela época, os marqueteiros foram rápidos na frase de efeito: “A esperança venceu o medo”. E agora, Duda Mendonça? E agora, João Santana?

Medo, como o país já devia ter descoberto naqueles anos, não ganha a eleição. Conversa ganha, compreensão ganha, respeito ganha. Nada disso está acontecendo.

Não discordo, na essência, de quem tem medo; eu também tenho. Apenas acho que este medo todo devia ter se manifestado antes do primeiro turno, traduzido em ação.

Era óbvio que praticamente qualquer candidato ganharia de Bolsonaro no segundo turno — exceto Haddad. Em qualquer conversa na rua, no ônibus, no supermercado, em qualquer lugar fora da bolha, era possível sentir o pulso do eleitorado: as pessoas se mostravam dispostas a aceitar qualquer coisa, menos o antigo regime.

Estas eleições não são sobre o Haddad, ou sequer sobre Bolsonaro. Como tanta gente já cansou de observar, e de alertar também, estas eleições são sobre o PT.

Mas aí a esquerda em peso, num gesto suicida, escolhe Haddad/Lula e crava PT. Sinceramente, o que esperavam que fosse acontecer? Qual era o cenário que tinham em mente? Achavam que os eleitores de Bolsonaro pensariam melhor e voltariam atrás?

Sou furiosamente cobrada sempre que escrevo sobre isso: “Não é hora de falar mal da esquerda!” Acontece que falo mal da esquerda desde 1917 e, invariavelmente, há quem tente me calar com esse argumento.

Desculpaí, mas é hora, sim, e por sinal muito merecida.

No começo destas eleições, ainda teria sido possível uma frente ampla em torno de um nome desvinculado do PT, um nome com menores índices de rejeição, uma eventual candidatura que não dividisse ainda mais o país já tão dividido; mas não, né? Eleição sem Lula é golpe, Lula livre, Lula Haddad Lula Lula Haddad Lula Lula Lula.

Taí o resultado.

De todas as péssimas escolhas jamais feitas por este país, que já teve Jânio e Jango, Dilma, Collor e Sarney, nenhuma jamais foi tão perigosa, retrógrada e inconsequente quanto a que promete se concretizar nas urnas no domingo.

O pior é que nem ao menos se poderá dizer que terá sido um resultado imprevisível.

A espécie da pós-verdade

Os humanos sempre viveram na era da pós‑verdade. O Homo sapiens é uma espécie da pós‑verdade, cujo poder depende de criar ficções e acreditar nelas. Desde a Idade da Pedra, mitos que se autorreforçavam serviram para unir coletivos humanos. Realmente, o Homo sapiens conquistou esse planeta graças, acima de tudo, à capacidade exclusiva dos humanos de criar e disseminar ficções. Somos os únicos mamíferos capazes de cooperar com vários estranhos porque somente nós somos capazes de inventar narrativas ficcionais, espalhá‑las e convencer milhões de outros a acreditar nelas. Enquanto todos acreditarmos nas mesmas ficções, todos nós obedecemos às mesmas leis e, portanto, cooperamos efetivamente.


Assim, se você culpa o Facebook, Trump ou Putin por introduzir a nova e assustadora era da pós‑verdade, lembre‑se de que séculos atrás milhões de cristãos se fecharam dentro de uma bolha mitológica que se autorreforçava, nunca ousando questionar a veracidade factual da Bíblia, enquanto milhões de muçulmanos depositaram sua fé inquestionável no Corão. Por milênios, muito do que era considerado “notícia” e “fato” nas redes sociais humanas eram narrativas sobre milagres, anjos, demônios e bruxas, com ousados repórteres dando cobertura ao vivo diretamente das mais profundas fossas do submundo. Temos zero evidência científica de que Eva foi tentada pela serpente, que as almas dos infiéis ardem no inferno depois que morrem, ou que o criador do universo não gosta quando um brâmane se casa com um intocável — mas bilhões de pessoas têm acreditado nessas narrativas durante milhares de anos. Algumas fake news duram para sempre.

Estou ciente de que muita gente poderá se aborrecer por eu equiparar religião com fake news, mas este é exatamente o ponto. Quando mil pessoas acreditam durante um mês numa história inventada — isso é fake news. Quando 1 bilhão de pessoas acreditam durante milhares de anos — isto é uma religião, e somos advertidos a não chamar de fake news para não ferir os sentimentos dos fiéis (ou incorrer em sua ira). Observe, no entanto, que não criar ficções e acreditar nelas. Desde a Idade da Pedra, mitos que se autorreforçavam serviram para unir coletivos humanos. Realmente, o Homo sapiens conquistou esse planeta graças, acima de tudo, à capacidade exclusiva dos humanos de criar e disseminar ficções. Somos os únicos mamíferos capazes de cooperar com vá rios estranhos porque somente nós somos capazes de inventar narrativas ficcionais, espalhá‑las e convencer milhões de outros a acreditar nelas. Enquanto todos acreditarmos nas mesmas ficções, todos nós obedecemos às mesmas leis e, portanto, cooperamos efetivamente.


Estou ciente de que muita gente poderá se aborrecer por eu equiparar religião com fake news, mas este é exatamente o ponto. Quando mil pessoas acreditam durante um mês numa história inventada — isso é fake news. Quando 1 bilhão de pessoas acreditam durante milhares de anos — isto é uma religião, e somos advertidos a não chamar de fake news para não ferir os sentimentos dos fiéis (ou incorrer em sua ira). Observe, no entanto, que não estou negando a efetividade ou benevolência potencial da religião. Exatamente o contrário. Para o bem ou para o mal, a ficção está entre os instrumentos mais eficazes na caixa de ferramentas da humanidade. Ao unir pessoas, credos religiosos possibilitam a cooperação em grande escala. Eles inspiram a construção de hospitais, escolas e pontes, além de exércitos e prisões. Adão e Eva nunca existiram, mas a catedral de Chartres continua linda. Grande parte da Bíblia pode ser ficcional, mas ainda é capaz de trazer alegria a bilhões, e ainda é capaz de incentivar os humanos a serem compassivos, corajosos e criativos — assim como outras grandes obras de ficção, como Dom Quixote, Guerra e paz e Harry Potter.

De novo, algumas pessoas podem se ofender com minha comparação da Bíblia com Harry Potter. Se você é um cristão com mente científica poderia minimizar todos os erros e mitos na Bíblia alegando que nunca se pretendeu que o livro sagrado fosse lido como um relato factual, e sim como uma narrativa metafórica que encerra profunda sabedoria. Mas isso não vale para Harry Potter também?

Se você é um cristão fundamentalista é mais provável que isista em que cada palavra da Bíblia é verdade. Suponhamos por u momento que você tem razão, e que a Bíblia realmente é a nfalível palavra do único e verdadeiro Deus. O que, então, você faz com o Corão, o Talmude, o Livro dos Mórmons, os Vedas, o Avesta, o Livro dos Mortos egípcio? Você não fica tentado a dizer que esses textos são elaboradas ficções criadas por humanos de carne e osso (ou talvez por demônios)? E como vê você a divindade de imperadores romanos como Augusto e Cláudio? O Senado Romano alegava ter o poder de transformar pessoas em deuses, e depois esperava que os súditos do império cultuassem esses deuses. Isso não era ficção? De fato, temos pelo menos um exemplo na história de um falso deus que reconheceu a ficção numa declacração por sua própria boca. Como já observado, o militarismo estou negando a efetividade ou benevolência potencial da religião.

Exatamente o contrário. Para o bem ou para o mal, a ficção está entre os instrumentos mais eficazes na caixa de ferramentas da humanidade. Ao unir pessoas, credos religiosos possibilitam a cooperação em grande escala. Eles inspiram a construção de hospitais, escolas e pontes, além de exércitos e prisões. Adão e Eva nunca existiram, mas a catedral de Chartres continua linda. Grande parte da Bíblia pode ser ficcional, mas ainda é capaz de trazer alegria a bilhões, e ainda é capaz de incentivar os humanos a serem compassivos, corajosos e criativos — assim como outras grandes obras de ficção, como Dom Quixote, Guerra e paz e Harry Potter.

De novo, algumas pessoas podem se ofender com minha comparação da Bíblia com Harry Potter. Se você é um cristão com mente científica poderia minimizar todos os erros e mitos na Bíblia alegando que nunca se pretendeu que o livro sagrado fosse lido como um relato factual, e sim como uma narrativa metafórica que encerra profunda sabedoria. Mas isso não vale para Harry Potter também? Se você é um cristão fundamentalista é mais provável que insista em que cada palavra da Bíblia é verdade. Suponhamos por um momento que você tem razão, e que a Bíblia realmente é a infalível palavra do único e verdadeiro Deus. O que, então, você faz com o Corão, o Talmude, o Livro dos Mórmons, os Vedas, o Avesta, o Livro dos Mortos egípcio? Você não fica tentado a dizer que esses textos são elaboradas ficções criadas por humanos de carne e osso (ou talvez por demônios)? E como vê você a divindade de imperadores romanos como Augusto e Cláudio? O Senado Romano alegava ter o poder de transformar pessoas em deuses, e depois esperava que os súditos do império cultuassem esses deuses. Isso não era ficção? De fato, temos pelo menos um exemplo na história de um falso deus que reconheceu a ficção numa declaração por sua própria boca. Como já observado, o militarismo japonês na década de 1930 e início da de 1940 apoiava‑se na crença fanática na divindade do imperador Hirohito. Após a derrota do Japão, Hirohito proclamou publicamente que isso não era verdade, e que ele afinal de contas não era um deus.

Assim, mesmo se concordarmos que a Bíblia é a verdadeira palavra de Deus, isso ainda nos deixa com bilhões de devotos hindus, muçulmanos, judeus, egípcios, romanos e japoneses que durante milhares de anos depositaram sua confiança em ficções. De novo, isso não quer dizer que essas ficções são necessariamente desprovidas de valor ou danosas. Ainda podem ser belas e inspiradoras.

É claro que nem todos os mitos religiosos foram igualmente benevolentes. Em 29 de agosto de 1255, o corpo de um menino inglês de nove anos de idade chamado Hugh foi encontrado num poço, na cidade de Lincoln. Mesmo sem Facebook nem Twitter, rapidamente espalhou‑se o boato de que Hugh tinha sido vítima de um assassinato ritual realizado pelos judeus locais. A história foi crescendo à medida que era recontada, e um dos mais renomados cronistas ingleses da época — Matthew Paris — criou uma detalhada e sangrenta versão de como judeus proeminentes de toda a Inglaterra reuniram‑se em Lincoln para engordar, torturar e finalmente crucificar o menino sequestrado. Dezenove judeus foram julgados e executados pelo suposto assassinato. Libelos de sangue semelhantes tornaram‑se populares em outras cidades inglesas, levando a uma série de pogroms nos quais comunidades inteiras foram massacradas. Posteriormente, em 1290, toda a população judaica da Inglaterra foi expulsa do país.

A história não termina aí. Um século depois da expulsão dos judeus da Inglaterra, Geoffrey Chaucer — o pai da literatura inglesa — incluiu um libelo de sangue modelado na história de Hugh de Lincoln em seus Contos da Cantuária (“Conto da Prioresa”). O texto culmina com o enforcamento dos judeus. Libelos de sangue semelhantes tornaram‑se subsequentemente campo japonês na década de 1930 e início da de 1940 apoiava‑se na crença fanática na divindade do imperador Hirohito. Após a derrota do Japão, Hirohito proclamou publicamente que isso não era verdade, e que ele afinal de contas não era um deus.

Assim, mesmo se concordarmos que a Bíblia é a verdadeira palavra de Deus, isso ainda nos deixa com bilhões de devotos hindus, muçulmanos, judeus, egípcios, romanos e japoneses que durante milhares de anos depositaram sua confiança em ficções. De novo, isso não quer dizer que essas ficções são necessariamente desprovidas de valor ou danosas. Ainda podem ser belas e inspiradoras.

É claro que nem todos os mitos religiosos foram igualmente benevolentes. Em 29 de agosto de 1255, o corpo de um menino inglês de nove anos de idade chamado Hugh foi encontrado num poço, na cidade de Lincoln. Mesmo sem Facebook nem Twitter, rapidamente espalhou‑se o boato de que Hugh tinha sido vítima de um assassinato ritual realizado pelos judeus locais. A história foi crescendo à medida que era recontada, e um dos mais renomados cronistas ingleses da época — Matthew Paris — criou uma detalhada e sangrenta versão de como judeus proeminentes de toda a Inglaterra reuniram‑se em Lincoln para engordar, torturar e finalmente crucificar o menino sequestrado. Dezenove judeus foram julgados e executados pelo suposto assassinato. Libelos de sangue semelhantes tornaram‑se populares em outras cidades inglesas, levando a uma série de pogroms nos quais comunidades inteiras foram massacradas. Posteriormente, em 1290, toda a população judaica da Inglaterra foi expulsa do país.

A história não termina aí. Um século depois da expulsão dos judeus da Inglaterra, Geoffrey Chaucer — o pai da literatura inglesa — incluiu um libelo de sangue modelado na história de Hugh de Lincoln em seus Contos da Cantuária (“Conto da Prioresa”). O texto culmina com o enforcamento dos judeus. Libelos de sangue semelhantes tornaram‑se subsequentemente componentes básicos de todo movimento antissemita, da Espanha medieval à Rússia moderna. Pôde‑se ouvir um eco distante disso na fake news de que Hillary Clinton chefiava uma rede de tráfico humano que mantinha crianças como escravas sexuais no porão de uma pizzaria muito frequentada. Não foram poucos os americanos que acreditaram na história, destinada a prejudicar a campanha eleitoral de Clinton, e uma pessoa até veio armada à pizzaria e exigiu ver o porão (constatou‑se que a pizzaria nem tinha porão). Quanto ao próprio Hugh de Lincoln, ninguém sabe realmente como ele morreu, mas foi enterrado na catedral de Lincoln e venerado como um santo. Foi reputado como o realizador de vários milagres, e seu túmulo continua a atrair peregrinos até mesmo séculos depois da expulsão de todos os judeus da Inglaterra.

Foi somente em 1955 — dez anos após o Holocausto — que a catedral de Lincoln repudiou a versão do libelo de sangue, colocando uma placa junto ao túmulo, onde se lê: Histórias inventadas de “assassinatos rituais” de meninos cristãos por comunidades judaicas eram comuns em toda a Europa durante a Idade Média, e mesmo muito mais tarde. Essas ficções custaram a vida de muitos judeus inocentes. Lincoln teve sua própria lenda, e a alegada vítima foi sepultada na Catedral no ano de 1255. Essas histórias não redundam em crédito para a Cristandade.

Bem, algumas fake news duram apenas setecentos anos.
Yuval Noah Harari