quinta-feira, 23 de abril de 2020

'Pra frente, Brasil...'


O que vem por aí

Em sua primeira entrevista coletiva, o ministro da Saúde, Nelson Teich, ontem, anunciou que o governo federal prepara uma diretriz para orientar cidades e estados na flexibilização do distanciamento social contra o novo coronavírus, que deverá ser anunciada na próxima semana. Argumentou que o total de pessoas infectadas com Covid-19 é baixo se comparado com o total da população e fez a previsão de que menos de 70% da população contrairão a doença, ao contrário das estimativas iniciais. Segundo o ministro, o Brasil tem 43,5 mil casos do coronavírus. “Se a gente imaginar que pode ter uma margem de erro grande — digamos que a gente tenha aí 100 vezes, isso é só um exemplo hipotético — a gente está falando em 4 milhões de pessoas. Nós hoje somos 212 milhões”, explicou.

Teich arrematou: “Fora da Covid tem 208 milhões de pessoas que continuam com as suas doenças, com os seus problemas, e que têm que ter isso tratado. E o que é que representam, hoje, 4 milhões de pessoas num país como esse? 2% da população”, disse. O ministro anunciou o novo secretário-executivo do Ministério da Saúde: o general de divisão Eduardo Pazuello, que hoje é comandante da 12ª Região Militar, principal unidade de logística do Exército na Amazônia, responsável por quatro hospitais, embarcações, manutenção, suprimentos e uma companhia de comando, para o apoio às unidades de combate do Comando da Amazônia. Integrante do grupo de generais paraquedista do Rio de Janeiro que hoje forma o Estado Maior de Bolsonaro, é um especialista em logística. Sua missão no Ministério da Saúde será operar a estratégia de saída da política de isolamento social em todo país, sem deixar que haja o colapso do sistema de saúde pública. Se houver precipitação, será uma missão impossível.


Como Teich ainda aparenta muita insegurança no comando do Ministério da Saúde, a entrevista foi protagonizada pelos ministros da Casa Civil, Braga Netto, e da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos. O primeiro apresentou dois planos de retomada da economia, denominados Pró-Brasil Ordem e Pró-Brasil Progresso, para serem executados num período de dez anos. O viés é desenvolvimentista, na linha do famoso tripé Estado, iniciativa privada e investimentos estrangeiros. Em meio à recessão mundial provocada pelo coronavírus, é inevitável a comparação com o ambicioso II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) do presidente Ernesto Geisel, que foi abatido pela crise do petróleo. Braga Netto disse que o ministro da Economia, Paulo Guedes, que não estava presente na coletiva, endossou o plano.

O ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, roubou a cena. Resolveu puxar as orelhas da imprensa: “Nós, do governo do presidente Jair Bolsonaro, respeitamos muito a liberdade de imprensa e ela é fundamental para o processo democrático de todo o país. Porém, desde o começo dessa crise do coronavírus, nós temos observado uma cobertura maciça dos fatos negativos. Os noticiários entram nos lares brasileiros todos os dias. Com todo respeito, no jornal da manhã é caixão, é corpo. Na hora do almoço, é caixão novamente, é corpo. No jornal da noite, é caixão, é corpo e o número de mortos.”

Falta ao governo um Aureliano Chaves, o vice-presidente civil do general João Baptista Figueiredo, para falar que não adianta tapar o sol com a peneira. O número de mortos aumenta e a situaçao é critica nos hospitais do São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco, Amazonas e Roraima, estados nos quais afrouxar a política de isolamento social agora significa multiplicar o número de mortos por falta de assistência médica adequada. Faltam leitos de UTI, respiradores e equipamentos de proteção individual, além de médicos, enfermeiros e fisioterapeutas, porque muitos estão se contaminando. Talvez o general Pazuello seja mais importante para enfrentar o problema de logística no gerenciamento da falta de equipoamentos e pessoal do que na estratégia de saída do isolamento, que necessariamente estará subordinada a governadores e prefeitos.

A propósito, foi simbólica a presença do governador de Brasília, Ibaneis Rocha (MDB), na entrevista. Sinaliza duas coisas: primeiro, que a situação do Distrito Federal é critica, do ponto de vista dos recursos disponíveis; segundo, que está havendo uma forte aproximação do MDB com o governo, de olho na sucessão de Rodrigo Maia (DEM-RJ) na presidência da Câmara. Ontem, o presidente da legenda, Baleia Rossi (SP), esteve com Bolsonaro, como parte de uma rodada de conversas para rearticular a base do governo e esvaziar a liderança de Maia. Também haverá uma conversa de Bolsonaro com o presidente do DEM, ACM Neto, prefeito de Salvador (BA), agendada para hoje.

A operação de reaproximação com o Congresso tem apoio dos caciques do Centrão: Roberto Jefferson, PTB; Valdemar Costa Neto, PR; Gilberto Kassab, PSD; Ciro Nogueira, Progressistas; e Paulinho da Força, Solidariedade. A negociaçao envolve a entrega da Funasa, do Banco do Nordeste, do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e dezenas de cargos de segundo e terceiro escalões para esses partidos.

Na liga dos insanos

Na capa da edição de 12 de novembro de 2009, a revista inglesa The Economist trazia a imagem do Cristo Redentor disparando do Corcovado como um foguete, para ilustrar as projeções da crescente importância do Brasil na cena internacional. Pouco depois, o Council of Foreign Relations, renomado centro de estudos americano, afirmava que o Brasil “faz parte da reduzida lista de países destinados a definir o século 21”.

Não sendo uma potência econômica nem militar, o Brasil construiu sua reputação internacional assentado no que os estudiosos chamam “poder suave” —a capacidade de influenciar o comportamento de outras nações pela persuasão e não pelas armas ou pelo dinheiro.

Nas últimas décadas, de fato, o país atuou com firmeza nas organizações multilaterais, formando coalizões para engrossar a voz dos países em desenvolvimento. Criou o fórum IBSA, participou da articulação do grupo dos Brics. Entrou para o G20, o grupo de ministros das finanças e dirigentes de bancos centrais das maiores economias do mundo. Fez-se ainda protagonista de primeira grandeza no debate das medidas destinadas a limitar os efeitos das mudanças climáticas.


Embora pouco lembrada, a diplomacia da saúde foi outra iniciativa relevante no exercício do poder suave. Ancorado na experiência de implantação de um dos maiores sistema de saúde pública do mundo, o SUS, e na política bem-sucedida de tratamento do HIV/Aids, premiada pela Unesco, o país levou adiante uma ação internacional digna de nota no terreno da saúde global.

Em 2001, com José Serra no Ministério da Saúde e em aliança com a Índia e a África do Sul, obteve histórica vitória na disputa com os Estados Unidos sobre quebra da patente de medicamentos de combate à Aids. Em 2003, o país teve papel importante na aprovação do Convenção Quadro sobre Controle do Tabaco da Organização Mundial da Saúde (OMS). Nossa cooperação técnica internacional se expandiu muito. Acordos com países da América Latina e da África permitiram compartilhar conhecimentos em saúde pública e controle epidemiológico de doenças tropicais.

Tudo isso ficou no passado. O Brasil tem hoje a desonrosa distinção de ser incluído no grupo de quatro países governados por dementes que negam a gravidade da pandemia do coronavírus. Três deles —Nicarágua, Turcomenistão e Belarus— são ditaduras.

Na madrugada de ontem, por sinal, nosso minúsculo chanceler usou o Twitter para falar do “comunavírus” e atacar a OMS, suposta ponta de lança do globalismo, segundo ele, a nova cara do comunismo. Pelo menos sabemos como fomos parar na liga dos insanos.
Maria Hermínia Tavares

Burrice à mão

Quando se ativa um tablet, desativam-se os outros sentidos
Johannes Ziegler

O coronavírus dos ricos e o coronavírus dos pobres

Já se escreveu muito sobre como a tragédia do coronavírus nos iguala a todos porque quando golpeia não conhece classes nem ideologias. Mata ricos e pobres. Isso é, no entanto, uma meia-verdade, porque, como sempre na história, aqueles que têm tudo de sobra atravessam a tempestade com menos sacrifícios do que os pobres, para os quais a epidemia é apenas um elemento a mais da dor em que já vivem.

Pode parecer, mas não é uma blasfêmia dizer que os pobres sofrem menos do que os ricos nestas tragédias porque estão acostumados a conviver com a dor, a frustração e a morte.

Talvez por isso, os que mais se opõem ao confinamento que pode salvar muitas vidas são aqueles para quem não faltará nada durante a quarentena, nem mesmo um bom hospital caso o bicho chegue a pegá-los, como afirmou o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta.

Não vimos, de fato, multidões de pobres saírem às ruas para protestar contra o isolamento, apesar de serem eles os mais martirizados por essa medida, pois ela os impede até de sair para ganhar o pão para sua família. Os pobres não têm cadernetas de poupança, e sim dívidas, e a epidemia os deixa mais desprotegidos do que ninguém.



Estão sendo, paradoxalmente, os mais ricos que estão forçando as manifestações contra o isolamento —que, segundo a ciência, é em todo o mundo o único antídoto até hoje para salvar vidas. Sim, o vírus não é classista, mas as tremendas desigualdades da nossa sociedade cruel continuam vivas e até se agigantam durante a epidemia.

Para os mais ricos, os da Casa Grande, o que interessa é que a máquina da produção seja posta em marcha o quanto antes para que a Bolsa volte a subir.

Talvez seja por isso que personagens políticos como o presidente Jair Bolsonaro se revelem desprovidos de sentimentos humanos elementares de compaixão pelos que mais sofrem as consequências da epidemia, e cheguem a negá-la.

Isso explica por que esses pequenos aprendizes de tiranos não se preocupam com aqueles que mais vão morrer com o vírus. Sabemos que são os idosos e os que já sofrem de alguma doença crônica. E essas vítimas são as que menos interessam a todos que veem o mundo sob o prisma do mero lucro ou do mero interesse político. Para eles, idosos e doentes são improdutivos em nossa sociedade do consumo e da vertigem da produtividade a qualquer preço.

Os psicólogos e psiquiatras estão apontando as consequências negativas que terá, para nosso cérebro, a crise mundial que afeta a humanidade inteira. E é aterrador. É um rio de angústias profundas que nossa psique está acumulando, e ainda não sabemos quais serão suas consequências finais.

Mas, dentro de tanta dor, angústia e morte, há um aspecto esquecido que poderia nos ajudar a resgatar um sentimento perdido em nossa sociedade, infectada pelo ódio político e social. Refiro-me a um certo despertar do mundo das emoções, as mais positivas, as que nos curam das psicoses e pareciam adormecidas em uma sociedade contagiada por ódios e discriminações.

É como se o mundo do dinheiro frio e até o do tédio daqueles que têm a mesa farta tivesse se apoderado de um mundo que já é incapaz de emoções humanas profundas.

No entanto, a emoção nos redime de nossos pessimismos estéreis, nos aproxima, nos faz descobrir algo que acreditávamos ter perdido para sempre imersos, como estamos, na sociedade do egoísmo e da inveja. As emoções são o oxigênio da nossa vida interior.

A epidemia, com suas dores, está nos devolvendo, por exemplo, o gosto pela emoção gerada pela solidariedade e pela empatia com os demais, que nos parecem mais próximos e iguais do que nunca.

É verdade que as sequelas psiquiátricas provocadas pelo desespero da separação física podem aumentar durante a crise, como se vê pelo aumento da violência doméstica em algumas famílias. Mas também é possível que o confinamento forçado sirva para que muitos casais e famílias valorizem e reconquistem a intimidade perdida e a alegria de estar juntos.

São essas emoções que o isolamento desperta repentinamente em nós, fazendo com que nos sintamos mais amigos e receptivos à dor e à alegria alheias.

Cenas como a de idosos até de cem anos que saem dos hospitais curados do vírus, sob aplausos de médicos e enfermeiros, eram inéditas até ontem.

Não podemos esquecer, nem mesmo nestes momentos trágicos, que a perda das emoções cria mundos paralelos de ódio e incompreensão da dor e da pobreza alheias.

As emoções, em vez disso, afastam os demônios da vingança. A emoção positiva está mais disposta ao perdão do que ao castigo e nos prepara melhor para compreender a dor e a solidão dos outros.

Quem é incapaz de abrigar emoções diferentes das criadas pela violência e pela morte nunca entenderá o que a ternura e o abraço significam.

O que os nazistas, que arrastavam mães com seus filhos para os crematórios nos campos de concentração, sabiam sobre emoções como a compaixão pelos outros?

Os incapazes de emoções são os mais próximos dos psicopatas que matam com a maior frieza do mundo. Onde estava a emoção nos interrogatórios policiais sob tortura ou nos pelotões de fuzilamento das ditaduras?

Se o coronavírus nos servir para despertar os melhores sentimentos de emoção diante da felicidade alheia, sentimentos que a luta política envenenada aniquilou, a pandemia não terá sido inútil.

Nada seria mais positivo para nosso mundo amargurado e cada vez mais injusto e com maior capacidade de segregação que nascesse um rio de emoções reprimidas capaz de nos redimir de tantos ódios acumulados.

Só aqueles que têm a alma seca de emoções não conseguem entender certas correntes de emoções positivas que só apreciamos quando as perdemos.

É por isso que todos os ditadores ou aspirantes são sempre os mais alérgicos às emoções que salvam e unem a humanidade na busca de uma felicidade que não precisaria matar nem humilhar para se sentir em paz com os outros.

O general quer elogios

Nos idos de 1967, o marechal Costa e Silva fez uma reclamação à condessa Pereira Carneiro, então proprietária do “Jornal do Brasil”. “O seu jornal tem tratado muito mal a mim e ao meu governo”, queixou-se. Em tom diplomático, a senhora respondeu que o diário buscava publicar “críticas construtivas”. O ditador reagiu com franqueza: “Eu gosto mesmo é de elogio”.

O general Luiz Eduardo Ramos foi cadete no período autoritário, mas chegou aos postos de comando na democracia. Foi promovido a coronel em 2003, quando a Presidência era ocupada por um ex-operário que liderou greves contra a ditadura. Ontem ele teve uma recaída, e resolveu usar uma entrevista ministerial para fazer reparos ao trabalho da imprensa.

“Desde que começou essa crise do coronavírus, nós temos observado uma cobertura maciça dos fatos negativos”, disse o chefe da Secretaria de Governo. “No jornal da manhã é caixão e é corpo, na hora do almoço é caixão e é corpo, no jornal da noite é caixão, é corpo e é número de mortes”, protestou.

À moda de Costa e Silva, o ministro afirmou que o jornalismo “não está ajudando”. Ele sugeriu que os repórteres se colocassem no lugar de uma senhora de idade que gostaria de se sentir melhor na pandemia. “Tem tanta coisa positiva acontecendo... É muita notícia ruim, mas vamos também divulgar notícias boas”, apelou.

Apesar do tom edificante, Ramos não está preocupado com o bem-estar das velhinhas. Se isso fosse verdade, ele convenceria o chefe a parar de sabotar a quarentena. O objetivo das medidas de isolamento é proteger os grupos mais vulneráveis do vírus. O presidente prefere empurrá-los para o sacrifício em troca da reabertura imediata do comércio.

Os bolsonaristas sonham viver no Turcomenistão, onde o ditador Gurbanguly Berdimuhammedow proibiu a imprensa de usar a palavra “coronavírus”. Ontem o novo ministro da Saúde, Nelson Teich, declarou que o Brasil “é um dos países que melhor performa (sic) em relação à Covid”. No mundo real, faltam leitos de UTI e há cemitérios abrindo valas comuns para enterrar vítimas da doença.

Pensamento do Dia


Bolsonaro agora tem de dar comida aos porcos, ao som dos asnos ideológicos

No início do seu mandato, há menos de um ano e meio, não dois séculos, Jair Bolsonaro havia encorpado a sigla pela qual se elegera, o PSL, e contava com a força dos 57 milhões de brasileiros que viram na sua plataforma anticorrupção um antídoto ao petismo et caterva. Escudado nessa fortaleza, poderia ter angariado apoios mais consistentes no Legislativo e estar agora bem amparado na Presidência da República neste momento de crise.

Bolsonaro, no entanto, resolveu dar ouvidos aos asnos ideológicos que o rodeiam. Confundiu fazer política com render-se ao toma-lá-dá- cá e entrou em confronto permanente com o parlamento, achando que o apoio das ruas lhe seria suficiente para pressionar deputados e senadores a votar de acordo com a vontade do Planalto. Em pouco tempo, foi enxotado do PSL, tornando-se o caso único de um presidente sem partido, não conseguiu formar a sua própria agremiação, perdeu a sustentação de grande parte dos seus eleitores, irritados com os zurros dos asnos ideológicos, enrolou-se com idiotices, alimentou ainda mais as desconfianças sobre a sua crença na democracia — e foi engolido pelo DEM de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre.

Um ano e meio depois da sua posse, não dois séculos, um fragilizado Jair Bolsonaro abraça a velha política, para cooptar o Centrão e tentar conter o DEM, a um preço bem mais caro do que o inicial, não tivesse ele confundido política com conchavo ilícito. O presidente agora tem de dar comida aos porcos, enquanto finge que não faz o que os seus antecessores fizeram, mas com a diferença da trilha sonora dos asnos que zurram por um golpe.

Enquanto o país padece com a Covid-19, o governo vai sendo infectado pelo vírus do pior tipo de gripe suína: o fisiologismo. E esse vírus não fortalece, só enfraquece.

Há tanta coisa positiva!

Nós, do governo do presidente Jair Bolsonaro, respeitamos muito a liberdade de imprensa e ela é fundamental para o processo democrático de todo o país (sic). Porém, desde o começo dessa crise do coronavírus, nós temos observado uma cobertura maciça dos fatos negativos. Com todo respeito, no jornal da manhã é caixão, é corpo. Na hora do almoço, é caixão novamente, é corpo. No jornal da noite, é caixão, é corpo e o número de mortos.
(....) Ninguém está falando que tem que esconder, mas eu peço encarecidamente: tem tanta coisa positiva acontecendo… 

Luiz Eduardo Ramo, ministro da Secretaria do Governo

O poder que Bolsonaro quer

Em meio ao repúdio unânime das instituições à sua participação num comício de caráter golpista em Brasília no domingo passado, o presidente Jair Bolsonaro defendeu-se dizendo que “falta um pouco de inteligência para aqueles que me acusam de ser ditatorial”. Segundo Bolsonaro, “o pessoal geralmente conspira para chegar ao poder”, mas “eu já estou no poder, eu já sou presidente”. E concluiu: “Então eu estou conspirando contra quem, meu Deus do céu?”.

De fato, Bolsonaro já está no poder, conferido a ele pelos eleitores no pleito de 2018. A questão é que esse poder Bolsonaro não quer, não só porque, no fundo, sabe que não tem a menor ideia de como exercê-lo, tamanho é seu despreparo, mas principalmente porque é um poder regulado pela Constituição e limitado pelos freios e contrapesos institucionais. Um presidente “pode muito, mas não pode tudo”, como disse o ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello, ao criticar a convocação, feita por Bolsonaro, de protestos contra o Congresso, em fevereiro. Ou seja, já naquela ocasião, o presidente deixava explícito que não pretendia se submeter aos controles constitucionais, pois, em sua visão, sua Presidência é “o povo no poder”, como bradou aos seus seguidores no domingo passado. Depreende-se que Bolsonaro almeja presidir um regime plebiscitário, em que a voz do que ele chama de “povo” se impõe como a lei, tendo o presidente como zeloso intérprete, submetendo todos os demais Poderes a seu tacão.


Nesse regime dos sonhos bolsonaristas, nem o tal “povo” nem o presidente da República são responsáveis pelos problemas do País; estes são sempre fruto das tramoias dos demais Poderes, que se recusam a satisfazer a vontade do “povo” e são vistos como inimigos que tramam para usurpar o poder conferido ao presidente nas urnas. Não à toa, Bolsonaro vive a invocar a possibilidade de sofrer impeachment, quase como se estivesse a desejá-lo, para servir como “prova” da tal conspiração.

O poder que Bolsonaro almeja, portanto, é aquele exercido sem que tenha de prestar conta às demais instituições democráticas que permanecem em funcionamento, mas sem condições objetivas de cumprirem suas funções. Nem é preciso ir muito longe no tempo para encontrar exemplos desse tipo de regime:  a Venezuela do ditador Hugo Chávez é o caso mais bem acabado de uma autocracia construída sem a necessidade de um golpe formal. Não deve ser mero acaso que em 1999 o então deputado Bolsonaro tenha rasgado elogios ao caudilho venezuelano, dizendo que Chávez, “uma esperança para a América Latina”, faria “o que os militares fizeram no Brasil em 1964, com muito mais força”.

Como ensinou Chávez, a construção do poder discricionário demanda uma democracia de fachada, com eleições regulares e Parlamento em funcionamento, enquanto as estruturas democráticas vão sendo carcomidas. A imprensa livre é sufocada e a oposição é constrangida pela máquina de destruição de reputações. Já o Judiciário é tomado por governistas, transformando-se em pesadelo dos dissidentes do regime. Assim, estão dadas as condições para que a Constituição se torne letra morta.

É evidente que tal empreendimento deve ser contido já em seus primórdios. O Congresso faz sua parte quando impede Bolsonaro de aprovar medidas inconstitucionais e quando investiga a militância virtual bolsonarista que atua febrilmente para constranger os opositores do presidente.

Do mesmo modo, é alentador observar que o Supremo Tribunal Federal também está vigilante. Agora mesmo, por meio do ministro Alexandre de Moraes, atendeu ao pedido da Procuradoria-Geral da República e mandou abrir inquérito para saber quem organizou o ato antidemocrático do qual o presidente Bolsonaro participou animadamente no fim de semana. O ministro teve que lembrar que a Constituição “não permite o financiamento e a propagação de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado democrático, nem tampouco a realização de manifestações visando o rompimento do Estado de Direito”. Essa investigação deve ir até o fim, dando nome e sobrenome aos liberticidas - seja qual for o cargo que ocupem ou o poder que tenham - e estes devem ser punidos de acordo com a lei.
Editorial - Estadão 

O presidente virou vivandeira

Vivandeira é uma palavra bonita que designa coisa feia. A expressão foi usada em agosto de 1964 pelo marechal-presidente Humberto Castello Branco, numa memorável lição:

“Há mesmo críticas tendenciosas e sem fundamento na opinião pública de que o poder militar se desmanda em incursões militaristas. Mas quem as faz são sempre os que se amoitaram em meios militares. Felizmente nunca rondaram os portões das organizações do Exército que chefiei. Mas eu os identifico a todos. E são muitos deles, os mesmos que, desde 1930, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do poder militar”.

O presidente Jair Bolsonaro amoitou-se diante do quartel-general do Exército, onde havia uma aglomeração de vivandeiras que pediam extravagâncias do poder militar. No dia seguinte, disse que não tinha nada a ver com as faixas que pediam o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e uma volta à ditadura escancarada do Ato Institucional nº 5.


O capitão disse também que “eu sou, realmente, a Constituição”. Não é. Dias antes, falou em “minhas Forças Armadas”. Minhas?

Deve-se voltar ao marechal Castello Branco. Como chefe do Estado-Maior do Exército, no dia 20 de março de 1964, uma semana depois do comício do João Goulart ao lado do quartel-general enfeitado por tanques, ele assinou uma circular reservada para os comandos. Disse que “os meios militares nacionais e permanentes não são propriamente para defender programas de governo, muito menos a sua propaganda, mas para garantir os Poderes constitucionais, o seu funcionamento e a aplicação da lei”.

Mais: “Não sendo milícia, as Forças Armadas não são armas para empreendimentos antidemocráticos”.

Castello Branco era um general francês. Já o seu colega Aurélio de Lyra Tavares, subchefe do Estado-Maior do Exército, era qualquer outra coisa. No dia seguinte, mandou-lhe uma carta na qual dizia que havia lido a circular depois de sua expedição. (Portanto não tinha nada a ver com aquilo). Informou que percebia um clima de apreensão “pela leitura dos jornais”. (Maldita imprensa.)

Em qualquer corporação há Castellos e há Lyras. O general viria a ser o desastroso ministro do Exército do presidente Costa e Silva e integrante da patética junta militar de 1969. Deu no que deu.

Nem todos os eleitores de Jair Bolsonaro eram golpistas, mas todos os golpistas votaram no capitão. Em janeiro de 2019, quando ele entrou no Planalto com seus 58 milhões de votos, poderia haver o sonho de um emparedamento do Congresso. Passado um ano, o Executivo ficou menor que o Parlamento. Atingido pela pandemia, o capitão meteu-se num negacionismo pueril e viu-se atirado ao olho de uma crise econômica que não provocou e que não mostra competência para administrar. Nas suas palavras: “Se acabar economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo. É uma luta de poder”. Não é uma luta de poder, nem acaba qualquer governo e o dele deve continuar até 31 de dezembro de 2022.

Se o presidente nada teve a ver com a vivandagem, torna-se impossível encaixar o Bolsonaro de domingo (19) no Bolsonaro da segunda-feira (20). Do alto da caçamba de uma camionete ele disse que “não queremos negociar nada. (...) É agora o povo no poder”.

Sem golpe, não haverá como.

Taokey, Jair Bolsonaro, você venceu. Batatas fritas!

Daqui a uma semana, o ministro Nelson Teich, da Saúde, divulgará seu plano de desmonte do isolamento social adotado como meio de combate à pandemia do coronavírus. Caberá então a governadores e prefeitos pô-lo ou não em prática, como decidiu recentemente o Supremo Tribunal Federal. A responsabilidade será deles.

Mas, na prática, o isolamento já começou a acabar sob a pressão do presidente Bolsonaro e de empresários preocupados em salvar a Economia. Bolsonaro é a favor do passe livre para o vírus. Quanto mais brasileiros forem contaminados, menos restarão para ser. Se a Economia for para o brejo, levará junto o governo e a reeleição.

A marca de três mil mortos deverá ser ultrapassada hoje. Nas últimas 24 horas, o vírus matou por aqui mais 165 pessoas. Foram quase sete por hora, uma morte a cada nove minutos. O total oficial de mortos, de fevereiro para cá, é de 2.906. E de contaminados, 45.757. Os números estão bem aquém da realidade.

O pico da primeira onda da doença deverá se abater sobre o país entre meados e final de maio. Haverá uma segunda onda. Os Estados Unidos trabalham com a hipótese de haver uma terceira. Nem por isso as medidas restritivas serão mantidas aqui e lá. Bolsonaro reza pela cartilha de Trump, candidato à reeleição.



Em Santa Catarina, ontem, os shoppings reabriram e foram registradas grandes aglomerações de pessoas. Em São Paulo, o governador João Doria (PSDB) anunciou que parte do comércio poderá reabrir suas portas a partir do próximo dia 11. Hoje, o governo do Rio deverá decidir algo parecido.

No Rio Grande do Sul, a volta parcial à normalidade começará em breve. A princípio, a volta às aulas no Distrito Federal está marcada para o dia 18. Pelo menos mais oito Estados avançam na mesma direção. Naturalmente, falta combinar com o vírus que já matou no mundo quase 180 mil pessoas e contaminou 2,6 milhões.

Um governo incapaz de fazer chegar com rapidez 600 reais mensais às mãos dos mais vulneráveis não é capaz de mais nada – a não ser fabricar crises, perseguir adversários e segurar em alça de caixão. É isso o que acontece. O adiantamento previsto da segunda parcela da ajuda de 600 reais foi cancelado por falta de dinheiro.

Sem o aval do Ministério da Economia, o ministro Braga Neto, chefe da Casa Civil da presidência, antecipou o lançamento de um plano de recuperação econômica pós-covid 19 que prevê aumento dos gastos com investimentos públicos para os próximos anos. O plano é vago e carece de recursos para ser executado.

Por ora, o governo bate cabeça e dá sinais de que está perdidinho da silva.

Heil, Pró-Brasil ariano

No país de maioria negra, programa de recuperação é branqueado

Abertura do país antes da hora

O governo federal apresentou um programa de retomada da economia sem o Ministério da Economia. Lembrava uma mistura do PAC do período Dilma com os PNDs do regime militar, mas ainda em rascunho. É o Plano Pró-Brasil, com dois eixos, Ordem e Progresso, para quando a pandemia passar. Os estados começaram a anunciar a saída do distanciamento social. Alguns com mais planejamento, outros com menos, mas em todos os casos talvez seja cedo demais, porque o Brasil continua subindo o Everest. O coronavírus não nos deu trégua ainda.

O ministro Nelson Teich continua seu período de aprendizagem. Reclama das perguntas dizendo que só está no cargo há cinco dias. Mas ele não está inaugurando o Ministério da Saúde. A máquina está lá, e lá estão a memória e os dados que ele diz desconhecer. Quem aceita assumir no meio de uma emergência tem que saber o que fazer. O ministro Teich ainda pesquisa e divaga. Disse que se preocupa com a saúde dos hospitais privados se os enfermos de outras doenças não forem se tratar. “Os hospitais não vão sobreviver” e isso levaria, segundo ele, a outro problema, quando acabar a pandemia, “a não capacidade de atender à demanda reprimida do não covid”. Sobre o SUS ele faz apenas breves referências.

O ministro disse que em uma semana entrega diretrizes aos governadores sobre como abrir a economia. Chegará atrasado, porque os estados já estão fazendo seus próprios planejamentos. O governador João Dória apresentou ontem, com equipe completa, o seu Plano São Paulo. Tinha pelo menos as palavras certas, a obediência à ciência, a tomada de decisão no diálogo entre saúde e economia, e a criação de parâmetros para saber quando e por que abrir. Segundo a secretária de Desenvolvimento Humano, Patrícia Ellen, as atividades serão retomadas por fases, por regiões e por setores. Tudo será dividido em cores. Hoje o vermelho é dominante em todo o estado e o distanciamento continua até 10 de maio. Depois só abre dependendo de fatores como testagem e capacidade hospitalar. Não será ao mesmo tempo em todo o estado. “Em hipótese alguma será desordenada, com flexibilização aleatória ou desrespeitando a ciência.”

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, também começou a abrir a economia obedecendo a critérios e seguindo a testagem feita por universidades. Em entrevista à CBN, disse que os testes feitos pela Universidade de Pelotas mostraram que apenas 0,05% dos gaúchos foram infectados e isso não pode parar um estado com 495 municípios. Essa conta de percentual da população também foi feita em Brasília por Teich. O ministro disse que 2% da população teve contato com o vírus e que 70% podem vir a ter, que isso vai demorar muito e um país não pode ficar parado tanto tempo.

É preciso, claro, planejar a retomada como estão fazendo alguns governadores, e é necessário pensar em como reativar o crescimento após a pandemia, como está fazendo o governo federal. O problema é que, antes de qualquer plano, precisamos saber como vencer o Covid-19. O país ainda vive o enorme desafio do crescimento do número de infectados e de mortos pelo vírus. Em São Paulo, 73% dos leitos de UTI estão ocupados, Manaus está em colapso, o governador Hélder Barbalho, do Pará, disse à revista “Veja” que teme que Belém seja uma nova Manaus, o governador Camilo Santana disse à Globonews que ainda é hora de aumentar o rigor. O Ceará foi um dos primeiros estados a adotar medidas, inclusive teve que entrar na Justiça para fechar o aeroporto de Fortaleza para voos internacionais. Mesmo assim, é o terceiro estado com mais casos da doença.

– É bom ter um plano, mesmo que não seja lançado na data. São Paulo deve ter sido o primeiro local de infecção, mas os números de casos ainda estão em fase ascendente da curva e nas próximas duas semanas devem continuar assim – disse a economista Monica de Bolle, sobre o plano do governador João Dória.

O Plano Pró-Brasil, lançado pelo ministro-chefe da Casa Civil, general Braga Netto, ainda não é nada além de uma coleção de projetos de obras. O anúncio passou a impressão de que tudo está sendo feito sem a concordância da equipe econômica. Tem o cheiro daqueles velhos planos estatizantes. E a ideia do Ministério da Economia não era bem esta.

A espera do pobre

Hermes de Paula / Agência O Globo
Estou só esperando a morte chegar
Maria das Dores Costa, 80 anos, durante doação de cestas básicas na favela do Mandela, no Rio 

Não chega a surpreender que populistas falhem no teste crucial do coronavírus

Uma coisa que populistas autoritários, de Donald Trump a Jair Bolsonaro, têm em comum é que desconfiam dos especialistas e de instituições independentes.

Por acreditarem que eles, e apenas eles, são os verdadeiros representantes do povo, aspectos tradicionais da democracia liberal, como a separação dos poderes, lhes são estranhos.

Por que, questionam eles, juízes, que não são eleitos, devem ser capazes de impor limites ao que fazem?

E, exigem saber, como se justifica que especialistas ou burocratas possam lhes dizer como proteger sua população contra uma ameaça inusitada (como, por exemplo, uma pandemia global sem precedentes)?

Desde o início da ascensão política de Trump e de Bolsonaro, seus críticos vêm avisando que todos nós podemos pagar caro por essa megalomania.


Quando um presidente acha que tem a capacidade de tomar todas as decisões por conta própria, quando ele coloca seguidores leais mas incompetentes em cargos de alta confiança pública e passa por cima dos conselhos de peritos e cientistas, as consequências podem ser mortíferas.

Essa mensagem foi em grande medida ignorada. Até o momento em que o coronavírus rapidamente transformou nossas vidas, a maioria dos cidadãos simplesmente não fora afetada pela ascensão dos populistas.

Ainda no início deste ano, muitas pessoas no Brasil ou nos Estados Unidos podiam dizer honestamente que sua vida não tinha sido afetada em absoluto pelos supostos perigos do populismo.

Acabamos descobrindo que os governos são como navios transatlânticos robustos. Mesmo um capitão incompetente ou caprichoso não consegue mudar a trajetória deles em pouco tempo.

E, se eles começarem a se desviar do rumo correto, levam algum tempo para se chocar com um iceberg.

Mas, se a lentidão do Estado é uma grande fonte de resiliência em tempos normais, ela também constitui um perigo grave em momentos de emergência genuína, como o que estamos vivendo hoje.

Para fazer frente a uma pandemia, as ações de sempre não bastam.

Pelo contrário –o presidente precisa funcionar como uma figura de união; precisa impor medidas de distanciamento social, estabelecer protocolos para a realização de exames em grande parte da população e colocar em quarentena as pessoas que podem ter contraído a doença.

Nada disso pode acontecer por conta própria. Tudo isso requer confiança em especialistas e coordenação com burocratas.

Assim, não chega a surpreender que muitos populistas estejam falhando da maneira mais espetacular neste teste crucial.

Em nenhuma grande democracia essa falha vem sendo mais evidente que no Brasil. Bolsonaro foi ainda mais longe que Trump ao minimizar a gravidade do perigo, recusar-se a promulgar as medidas necessárias para evitar inúmeras mortes desnecessárias e negar-se a permitir que outros realizem o trabalho que ele se recusa constantemente a fazer.

Agora ele chegou ao ponto de demitir seu ministro da Saúde pelo crime imperdoável de ser tremendamente mais competente –e, também, por conta disso, mais popular— que ele.

Para aqueles entre nós que há muito tempo temos advertido sobre a ascensão do populismo, pode ser tentador sentirmos um pouco de “schadenfreude” (termo em alemão para descrever o sentimento de alegria pela desgraça alheia) com o fato de os índices de aprovação de Bolsonaro se manterem baixos.

Finalmente o presidente pode vir a pagar o preço político de sua própria incompetência.

Mas, por mais tentadora que possa ser essa "schadenfreude", ela não capta plenamente por que era tão importante se opor aos populistas em primeiro lugar: porque precisamos fazer o que pudermos para impedir que eles imponham sofrimento desnecessário a seus próprios cidadãos.
Yascha Mounk (Universidade Johns Hoplins)

Um mundo de ansiedade, medo e estresse

Se as emoções pudessem ser auscultadas, todos os estetoscópios do planeta escutariam duas: medo e incerteza. A ameaça até agora circunscrita a datas funestas (11 de setembro, 11 de março) ou localizadas em países quase sempre distantes, quase sempre pobres, assumiu, com seu avanço invisível e letal —160.766 mortos até 19 de abril— uma dimensão planetária, desconhecida no último século. A nova peste irrompeu no centro da próspera Europa e da superpotência americana com uma virulência e velocidade da qual ninguém, esteja confinado em uma luxuosa cobertura ou em uma casa humilde, pode se considerar a salvo. E essa súbita falta de certeza, esse medo, é apenas o começo de outra crise sanitária que surgirá em nossas cabeças, dizem vários especialistas em saúde mental, alguns com vasta experiência em catástrofes e guerras.


O epidemiologista e investigador dos efeitos mentais das grandes emergências Sandro Galea, reitor da Escola de Saúde Pública de Boston, diz: “Esta crise é um acontecimento traumático maciço sem precedentes, maior do que qualquer outro por sua dimensão geográfica”. A comoção é ampliada naqueles que adoecem (mais de dois milhões apenas com os números oficiais), nas famílias atingidas pelas mortes e naqueles que já estão com os bolsos vazios. “Haverá uma avalanche de transtornos de humor e de ansiedade nos próximos meses e anos em todo o mundo”, prevê esse especialista, “isso inclui depressão, ansiedade, estresse pós-traumático, aumento do consumo de álcool e violência machista. Tudo isso terá grandes consequências econômicas e sociais.” A OMS estima que uma em cada cinco pessoas terá um distúrbio mental, duas vezes mais que em circunstâncias normais.

O que vai acontecer? Serei contagiado? Terei trabalho? Como estará minha mãe? Voltarei a vê-la? A psicóloga Sara Liébana ouve constantemente perguntas como estas, repetidas por pessoas com insônia, no telefone disponibilizado pelo Ministério da Saúde. “É a coisa mais extraordinária que já vivemos”, exclama esta profissional experiente no cuidado às vítimas de terrorismo, “não apenas porque ocorre em todo o mundo, mas também por esta maciça sensação de incerteza em tudo, na saúde, no trabalho, nos estudos, nas bolsas, vivemos nesse estresse, nessa ansiedade... Agora somos uma sociedade que faz perguntas”. Sua colega psiquiatra Carmen Moreno, do Hospital Gregorio Marañón, em Madri, insiste: “Não acaba e não sabemos quando terminará. São dadas recomendações que mudam de um dia para o outro, isso gera incerteza e desproteção, atinge todos igualmente, é algo imprevisível. E o ser humano precisa de previsibilidade”.

Essa sociedade que faz perguntas, a sociedade dos que temem e dos que padecem (os doentes e os enlutados dos mortos) está trancada há mais de um mês. E isso não está livre de efeitos colaterais. “Passo o dia dizendo às pessoas que elas não ficaram loucas”, diz o psicólogo Fernando Egea, “que a irritabilidade, as mudanças de humor e a insônia são reações normais”. Isso é confirmado por uma revisão recente de estudos publicada pela revista The Lancet. Estamos desanimados (acontece com 73% das pessoas, segundo um dos estudos) e irritadiços (57%). A quarentena provoca confusão, raiva e sintomas de estresse pós-traumático (aqueles pesadelos e flashbacks que revivem a experiência dolorosa, acompanhados de hipervigilância e anestesia emocional), de acordo com a maioria das pesquisas. “As circunstâncias mais estressantes”, observam os autores, “são o confinamento prolongado, o medo de se contagiar, a frustração, o tédio, a falta de alimentos ou produtos básicos, informações inadequadas, perdas financeiras e estigma.” O isolamento também mudou o paradigma doméstico. “Fechamo-nos em torno da família, como em uma espécie de retorno às cavernas, restabelecendo laços e voltando a uma forma muito básica de relacionamento para nos protegermos dessa guerra estranha”, reflete o psiquiatra Enrique García Bernardo, “em que morre muita gente, vivemos na incerteza, adaptando-nos, com o paradoxo de que voltamos a ouvir os pássaros enquanto tanta gente morre, prendendo a respiração para que não nos pegue.”

A brutal irrupção da crise causou algo que surpreendeu ao psiquiatra Alberto Fernández Liria, por seu potencial nocivo, quando trabalhava como enviado de várias ONGs em cenários bélicos: “Os maiores estragos não se devem ao combate, e sim à destruição maciça da vida cotidiana. Num mundo onde você se define por sua ocupação, seu papel fica suspenso, há uma desorientação da qual pode sair qualquer coisa. Você precisa encontrar culpados, distinguir entre os bons e os maus, como nas guerras”.

Nesta mesma crise da Covid-19, mas na China, que foi o primeiro país afetado, um terço da população sofria ansiedade de moderada a severa, segundo um estudo. Outro veterano em emergências, o psiquiatra Ricardo Angora, coordenador de Saúde Mental da ONG Médicos do Mundo, acredita que não temos experiência em situações nas quais todos estamos ameaçados. “Não tinha acontecido nunca, ao menos em nossas gerações. Na África há cólera, secas e conflitos bélicos. Eles estão mais habituados e têm uma aprendizagem, aqui não a temos. Do ponto de vista emocional, nos apanhou sem anticorpos”.

Nos dias atuais, a doença e a morte transcorrem solitariamente. “As evoluções dos doentes são muito complicadas, tudo acontece muito rápido”, diz a psiquiatra Moreno, “ou o familiar se apressa muito em chegar, sempre é um, e é preciso cumprir uma série de condições, ou não poderá se despedir”. A especialista acredita que a gestão da morte é muito difícil, “não se pode velar e existe uma espécie de congelamento da emoção. Os lutos complicados e prolongados aumentarão”. A psicóloga Liébana escuta parentes desconsolados, que às vezes nem sabem onde está o corpo de seu pai. “Nós os acompanhamos em sua dor, na impotência de não podermos compartilhá-la com ninguém, os incentivamos a entrar em contato com seus familiares através de videoconferências em grupo, e dizemos a eles que poderão se despedir quando isto acabe.”

Agora, e a partir de agora, são as perdas as que emergem em nosso panorama emocional. “As depressões vão ter a ver com as perdas, as reais, as dos nossos mortos, e outras de diferente dimensão: a renúncia a um status, a uma forma de vida pelo desemprego ou a ruína dos autônomos”, observa García Bernardo, “o que inclui o sujeito isoladamente (com a perda de sonhos, expectativas), a família (perda de horizontes) e o aspecto social (o emprego)”.

Fernández Liria está de acordo: “Haverá um fenômeno maciço de perdas; trabalhos, propriedades, referências, coisas que têm a ver com a identidade, para muita gente sua identidade profissional – pensemos no turismo, a atividade fundamental deste país [a Espanha]. O que fará um cozinheiro, o dono de um bar? Terão que se reinventar, e isso é um processo muito complicado. Se for encarado com apoio social pode ser muito construtivo. Deus nos livre da aparição de movimentos populistas muito descarnados”.

A experiência prévia diz que o impacto econômico que se abate atacará a saúde mental. A crise econômica mais recente, de 2009, fez crescerem a depressão (18%), a ansiedade (8%) e os transtornos por abuso de álcool (5%), segundo um estudo da Sociedade Espanhola de Saúde Pública e Administração Sanitária (SESPAS). “A economia pode se recuperar; as vidas, não. Se evitarmos que haja novos surtos, isso fará a confiança se recuperar”, reflete Angora.

O que fazer diante desse amontoado de dor em sobreviventes, profissionais de hospitais, centros de saúde e ambulâncias, familiares de falecidos e desempregados? “Educar as pessoas para estes desafios e preparar os sistemas sanitários para enfrentá-lo”, responde Galea. “Há um risco de falta de atendimento”, acredita Fernández Liria, “e também de psiquiatrização. Mas é preciso aproximar o atendimento, porque os que estão piores não são capazes de irem pedir ajuda”. Aí, concordam todos, os médicos que nos acompanham, os de cabeceira, serão fundamentais para detectar essa avalanche de sofrimento submerso.

Bolsonaro fracassa como presidente, mas confia que vai se dar bem como ditador

Jair Bolsonaro é um fenômeno da enganação política semelhante a Jânio Quadros e a Lula da Silva. Seu carisma é impressionante, apesar de ser um governante omisso, que se dedica à reeleição (ou ao golpe) 24 horas por dia. Em 2018, o eleitorado votou nele julgando que iria tomar as seguintes iniciativas: 1) lutar contra a corrupção e a favor da Lava Jato; 2) reduzir os privilégios e penduricalhos salariais dos três Poderes; 3) conter os gastos do governo; 4) colocar na cadeia os criminosos e corruptos, reduzindo a criminalidade; 5) criar empregos e diminuir a desigualdade social.

Essas cinco metas eram a sensacional plataforma do candidato que empolgou as massas, mesmo sem verba vultosa para a campanha e sem horário gratuito no rádio e TV.

Agora, já se passou mais de um ano de governo, mas nem se pode fazer um balanço, pois tudo continua em gestação. Na verdade, o presidente ainda não fez absolutamente nada quanto às promessas de campanha. Vamos conferir, item por item.

1 – Lutar contra a corrupção e fortalecer a Lava Jato – No tocante a esse quesito, Bolsonaro se omitiu claramente e até torceu contra, pois não fez a menor pressão no Congresso para aprovar o Pacote Anticrime do ministro da Justiça, Sérgio Moro.

Além de rejeitar o Pacote, o Congresso aprovou um projeto a favor do crime, ao criar a Lei do Abuso de Autoridade, e o presidente não protestou. Enquanto isso acontecia no Congresso, o Supremo extinguiu a prisão após segunda instância, para garantir a impunidade das elites, e Bolsonaro também não disse uma só palavra contra, porque seu interesse era proteger os filhos, envolvidos em rachadinhas e funcionários fantasmas.

E assim a Lava Jato sofreu um retrocesso impressionante, enquanto Bolsonaro se dedicava a tentar demitir Sérgio Moro, por considerá-lo um futuro oponente.

2 – Reduzir os privilégios e penduricalhos salariais – Esta esperança dos eleitores de Bolsonaro se desfez logo no início. Ao preparar a reforma da Previdência, em nenhum momento a equipe econômica aventou a hipótese de reduzir aposentadorias dos servidores beneficiados pelo teto, que é alto demais para a realidade brasileira.

E agora, na reforma administrativa, a frustração é absoluta. O ministro Paulo Guedes preparou o projeto sem tocar em nenhum privilégio dos múltiplos penduricalhos que elevam salários nos três Poderes, por considerá-los “direitos adquiridos”, uma regalia que a Constituição até proíbe. A ideia é impedir reajustes, penalizando o servidor de médio e baixo salário.

Bolsonaro não mexeu em nada, manteve a farra dos carros chapa-branca, com combustível liberado, as outras mordomias e até mesmo o cartão corporativo, cujos gastos são mantidos em sigilo.

3 – Conter os gastos do governo – Essa promessa o governo também vai ficar devendo. Paulo Guedes não conseguiu superávit no primeiro ano e confessou que também não ia conseguir no segundo ano, mas veio a pandemia, foi declarada calamidade pública, e não se fala mais no assunto. Esse quesito vai ficar para o próximo presidente, que está arriscado a ser o próprio Bolsonaro, caso não sofra impeachment, hipótese cada vez mais provável.

Os outros dois itens que fizeram Bolsonaro ser eleito também não serão cumpridos até 2022. Seu governo não vai colocar na cadeia os criminosos e corruptos, e os principais já foram até soltos pela Justiça, sem que em nenhum momento o presidente Bolsonaro tivesse manifestado ao Supremo sua contrariedade com a prisão somente após quarta instância, liberalidade que só existe no Brasil, um privilégio verdadeiramente medieval..

Quanto ao desemprego e à redução da desigualdade social, o governo também deixará para outra oportunidade. Com toda a empolgação do primeiro ano, o ministro Paulo Guedes só conseguiu fazer o PIB aumentar 1,1,%, enquanto Henrique Meirelles, que pegou a economia destroçada pelo PT, emplacou 1,3% nos dois anos do governo Milton Temer.