quarta-feira, 17 de julho de 2019
O Brasil volta ao tempo dos fidalgos
O primeiro embaixador brasileiro na República era um monarquista. Joaquim Nabuco foi um representante esplêndido da República brasileira. O que aprendemos com a História é que a escolha deve recair sobre o mais qualificado, independentemente de sua tendência política. E nunca por ser parente do presidente. Essa intenção de Bolsonaro fere o princípio da impessoalidade. O deputado Eduardo Bolsonaro só foi pensado para o cargo por ser filho, nenhum outro motivo. E o presidente paternalmente esperou o aniversário dele para que assim atingisse a idade mínima.
A carreira diplomática tem exigências e peculiaridades próprias. É complexa, delicada e cheia de sutilezas. Dizer que porque fala inglês e espanhol pode ser embaixador equivale a escolher alguém para comandar um dos Exércitos porque sabe atirar e marchar. O diplomata, como o militar, segue uma sequência de etapas na carreira. Começa como terceiro secretário, ao sair do Instituto Rio Branco, até chegar a embaixador. E no início assume representações menores, até chegar à senioridade e às missões de maior responsabilidade. Não se faz essa exigência, como bem sabem os militares, por qualquer apego à escala hierárquica, mas porque no caminho cumpre-se o tempo necessário do aprendizado.
O argumento de que Eduardo Bolsonaro conhece o presidente americano Donald Trump e por isso é a pessoa indicada revela um abissal desconhecimento de como funcionam as relações com os Estados Unidos. Ele acha mesmo que terá linha direta na Casa Branca? Falará no Departamento de Estado com o subsecretário de assuntos latino-americanos. Mas um embaixador é mais do que isso. Ele tem que representar o país diante não apenas do governo, mas de toda a sociedade. Eduardo como líder hoje do Movimento, uma falange de ultradireita, criada por Steve Bannon, terá muita dificuldade de transitar pelos muitos segmentos da diversidade americana. Não conseguirá sentir o país. Ele já cometeu o primeiro dos erros que um diplomata profissional não cometeria: colocou na cabeça o boné de um candidato. No ano que vem haverá eleições. O ambiente está cada vez mais tenso por lá. As declarações de Trump esta semana contra quatro deputadas da esquerda democrata — uma naturalizada, três nascidas nos Estados Unidos — foram consideradas racistas e a Câmara de Representantes aprovou ontem por ampla maioria uma moção de censura ao presidente Trump.
Há, claro, chefes de missão que não são diplomatas de carreira, e alguns fizeram bom trabalho, mas nunca houve no Brasil uma escolha como essa. Ela representa mais um passo no desmonte da brilhante e bem formada burocracia da qual o Brasil sempre se orgulhou. Mas, além disso, ela ofende o nosso atual estágio de desenvolvimento democrático.
O Brasil nasceu como um país em que as portas se abriam se a pessoa era um fidalgo, filho de alguém poderoso. Depois se transformou no país das carteiradas, aquele cujo defeito se resumia na frase “sabe com quem está falando”. A democracia foi corrigindo essas distorções. E assim firmou-se a condenação ao nepotismo e a obrigatoriedade do princípio da impessoalidade para a escolha de pessoas para os cargos públicos.
Essa ideia de Bolsonaro é ruim porque o jovem deputado não tem as mínimas qualificações para exercer o cargo, e é deletéria porque joga o Brasil de volta ao inaceitável tempo da fidalguia. Por isso, se a Presidência não tem noção, que os outros poderes corrijam os erros. O Senado tem a prerrogativa de decidir sobre nomeação de embaixadores e deve avaliar esse assunto pensando no país e não na conveniência política. E o Supremo Tribunal Federal (STF) precisa esclarecer se a Constituição, ao condenar o nepotismo, ressalvou o posto de embaixador entregue ao filho do presidente como uma situação aceitável.
Os inimigos do povo
O governo soviético não tinha problemas com o grande diário do país: o Pravda (A Verdade, em tempos que ainda não eram chamados de pós-verdade, embora a imagem de Trotsky já fosse sistematicamente apagada das fotos oficiais). Nem o regime nazista reclamava do Völkischer Beobachter (Observador Popular). Stalin e Hitler nunca chamaram esses jornais de “inimigos do povo”, como Donald Trump designa os veículos de imprensa de seu país que mantêm independência editorial.
Já nas democracias todos os governos sempre se queixaram do jornalismo independente: nos EUA, os de Nixon, Ford, Carter, Reagan, Bush, Clinton, W. Bush, Obama; no Brasil, os de Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula, Rousseff, Temer. Só para citar os mais recentes.
O diferente agora em relação a esse passado é que regimes populistas expressam hostilidade ostensiva contra o jornalismo e agem para intimidá-lo ou manietá-lo, instigam seus seguidores a agredi-lo, impõem limites à sua ação, dificultam a cobertura de veículos que consideram perigosos demais, propõem alterações na legislação para endurecê-la, mentem de forma sistemática, põem jornalistas na cadeia sempre que podem.
Isso ocorre na esquerda e na direita, em todos os continentes: López Obrador no México, Ortega na Nicarágua, Maduro na Venezuela, Duterte nas Filipinas, Al-Sisi no Egito, Zeman na República Checa, Fico na Eslováquia, Orbán na Hungria. Sem falar em China, Rússia e Coreia do Norte. E, claro, nem em Trump e Bolsonaro.
Mas o fenômeno não começou com esses déspotas. Desde o advento da internet e das redes sociais, não só o jornalismo, mas diversas instituições têm sofrido. A tecnologia permitiu às pessoas prescindirem de intermediários para obter o que desejam e deu-lhes instrumentos para desprezar, rejeitar ou contestar o conhecimento de especialistas. Assim como todo brasileiro sempre se achou o melhor técnico de futebol do País, muitas pessoas acham que podem substituir médicos, advogados, professores, pelo dr. Google. Rejeita-se o conhecimento institucionalizado. Negar o expert afirma a autonomia e o poder da pessoa comum.
Não é preciso mais pagar por hotéis para se hospedar, abre-se mão de táxis em troca do Uber, o Congresso é desnecessário, não se confia nos tribunais, prefere-se a democracia direta. Basta de intermediários: eu no poder.
O jornalismo também passa a ser desprezado, embora tal desprezo não seja fenômeno tão novo. Há muito tempo a imprensa é alvo do descontentamento de grande parte da sociedade e muito dessa antipatia deriva da atitude e do comportamento de jornalistas, que, com frequência, são arrogantes, julgam-se mais bem informados e, portanto, superiores ao público, não conhecem de fato quais são os problemas e aspirações da audiência, não reconhecem seus próprios erros, embora acusem à exaustão os dos outros.
Pesquisas de opinião mostram que tanto nos EUA quanto no Brasil a credibilidade do jornalismo profissional é tão baixa quanto a das redes sociais: segundo o Datafolha, apenas 5% dos brasileiros acham confiáveis todas as notícias tanto de um quanto de outras.
Conservadores e corporativistas por natureza, jornalistas se horrorizam com seu leitor do século 21. O público digital tem blogs, tuíta e posta no Facebook incansavelmente, deixou de ser mero receptor e passou a emitir também, não é mais cativo, passivo.
Apesar dessa má vontade recíproca, sociedade e jornalismo nunca precisaram tanto uma do outro para sobreviverem na democracia. O ambiente tóxico de sectarismo identitário que dividiu as pessoas em bolhas nas quais se retroalimentam pode destruir a vida em comum.
É imprescindível haver um espaço em que opiniões e ideias diversas circulem livremente e em confiança. Essas bolhas precisam ser perfuradas para se criar um espaço de diálogo construtivo, por exemplo, o da imprensa, que possibilitou a formação de nações nos séculos 18 e 19, como mostrou Benedict Anderson, em Comunidades Imaginadas. Para isso jornalistas terão de mudar muito. Têm de evitar ao máximo cometer erros factuais e, quando os cometerem, precisam reconhecê-los rápida e transparentemente. E para diminuírem a ocorrência de erros factuais têm de perder a obsessão por levar ao público informações antes dos concorrentes e nunca divulgar nada antes de estarem absolutamente seguros de sua correção total.
Não podem deixar-se manipular por demagogos que atraem sua atenção com declarações ultrajantes e os afastam da tarefa essencial que é questionar a incompetência desses demagogos que estão no poder. Não devem engajar-se no combate ideológico contra os que os chamam de “inimigos do povo”, expressão inicialmente utilizada por Ibsen numa peça de teatro de 1882 e depois vulgarizada por Stalin na União Soviética e agora por Trump nos EUA – e marginalmente por Bolsonaro no Brasil. Como disse o jornalista Paul Farhi, do Washington Post, em recente evento promovido pelo programa de pós-graduação em jornalismo do Insper, a imprensa americana não se deve engajar numa guerra contra Trump, deve apenas trabalhar – “we are nota at war (against Trump), we are at work”.
Se os jornalistas se dedicarem diligentemente ao trabalho fiel a seus cânones, se reconhecerem que os tempos são outros e a prepotência com que muitos deles se comportavam não é mais admissível, se estiverem abertos à crítica e dispostos à autocrítica, eles estarão sendo mais eficientes na defesa da democracia do que com avalanches de palavras indignadas. O combate ao populismo autoritário só será efetivo se estiver baseado em fatos bem apurados, em substantivos, não em adjetivos e advérbios explosivos.
Descobrir e mostrar ao público com transparência e rigor os fatos provarão a ele quem são os inimigos do povo.Carlos Eduardo Lins da Silva
Dada a decisão de Toffoli, resta aos 'bolsomorominions' a falta de vergonha
A decisão de Toffoli atende a um habeas corpus impetrado pela defesa do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) e tem um escopo bem mais amplo. Atinge, como já se disse, todas as investigações e PICs (Procedimentos de Investigação Criminal) em curso no país até que o Supremo decida se o compartilhamento com o Ministério Público de dados fornecidos por esses órgãos agride ou não direitos fundamentais. A questão deve ser apreciada pelo plenário do tribunal em novembro.
E por que falo em espetáculo de hipocrisia? Vamos ver.
A decisão está essencialmente correta — e pouco me importa se isso é ou não do gosto dos Bolsonaros. Pessoas que desprezo politicamente não determinam o meu juízo sobre os fatos. Entendo que a quebra do sigilo bancário e fiscal de qualquer indivíduo deve ser submetida à Justiça. Mais: os tais Procedimentos de Investigação Criminal têm se constituído em verdadeiros inquéritos criminais informais.
Ora vejam… Quem mais tem recorrido a esses expedientes é justamente a Lava Jato. Vamos lá: se cada órgão de fiscalização resolver criar a sua tropa interna de elite para investigar alvos determinados, passando o resultado do seu trabalho diretamente para a polícia ou para o Ministério Público, então podemos declarar a obsolescência da Justiça.
Vamos ver qual será a decisão do pleno do Supremo quando avaliar a questão. Flávio Bolsonaro comemorou. E seu pai, o presidente da República, fez o mesmo. Não é que ele vira um legalista quando o protegido é o "sangue do seu sangue"? Então vamos às perguntas.
O que estaria dizendo a Primeira Família se uma decisão de um ministro do Supremo beneficiasse, por exemplo, um certo Luiz Inácio Lula da Silva? A Lava Jato é useira e vezeira no uso dos dados decorrentes do tal compartilhamento. Ora, com o apoio de Bolsonaro, de seus filhos e do seu governo, a extrema-direita e setores da direita foram às ruas duas vezes neste 2019. Em ambas, mandaram os direitos individuais às favas — em particular no ato do último dia 30 de junho, em defesa da Lava Jato.
Sim, eu posso afirmar que a decisão de Toffoli está correta — já que os sigilos são uma garantia constitucional, só podendo ser levantados com ordem judicial — porque é o que sempre disse. Mas será que os "bolsominions" e "morominions" podem afirmar a mesma coisa sem que fiquem corados de vergonha? Em havendo alguma, claro!
A resposta é "não!. No dia 30 de junho, por exemplo, o general Augusto Heleno, chefe do GSI, ultrapassou o limite do bom senso e fez um discurso inflamado, em Brasília, em defesa de Sergio Moro e da Lava Jato, que recorre aos métodos que, por ora, a liminar do ministro susta.
Reitero: e se a decisão de Toffoli beneficiasse diretamente um petista graúdo? A essa altura, o ministro só não estaria sendo chamado de "santo" pelos tais replicantes, movidos pela cretinice mais alvar. Ah, como a decisão atende ao interesse de Flávio, bem…, aí o ministro, então, se comportou como um homem justo.
Eduardo El Hage, coordenador da Lava Jato no Rio, afirma — e especialistas dizem ser um brutal exagero — que a decisão de Toffoli paralisa todas as investigações de lavagem de dinheiro no país. Como, doutor? Então nenhuma delas estava de acordo com as regras do jogo, com o ordenamento jurídico?
Nesta terça, os especialistas em "fake opinions", nas opiniões falsas, ficaram bem atrapalhados. Dizer que a decisão de Toffoli estava correta lhes parecia uma traição a seus preconceitos. Dizer que estava errada contrariava as ordens do patrão. Então preferiram enganar os trouxas com conversa mole.
Acho que Flávio e Fabrício Queiroz fizeram coisas do arco da velha. Que se investiguem as lambanças de acordo com o ordenamento legal. O mesmo vale para Flávio, para Lula ou para um qualquer. Isso, eu posso dizer. Eles não.
Sim, a decisão de Toffoli atende aos fundamentos legais. Isso não impede que reste a desmoralização ao discurso bolsonarista.
Uma das divisas dos "bolsomorominions" é o famoso "quem não deve não teme". Como eles acham, afinal, que estão certos, então é sinal de que acreditam que Flávio deve muito, uma vez que o temor, no seu caso, é explícito.
A reação de Bolsonaro é de um ridículo atroz. Uma coisa é a defesa do devido processo legal — algo que é absolutamente estranho ao seu universo. Outra, muito distinta, é achar, como quer o pai extremoso, que não há o que investigar no caso de Flávio e que tudo não passa de perseguição.
A qualquer pessoa com um mínimo de simancol resta a evidência de que Flávio teme, sim, a investigação. Nem poderia ser diferente. Quando Fabrício Queiroz, o seu ex-faz-tudo, resolveu dar uma explicação para as lambanças que ocorriam no gabinete do agora ex-deputado estadual, a emenda saiu bem pior do que o soneto.
Segundo Queiroz, ele, de fato, arrecadava um percentual do salário dos funcionários do gabinete. Mas só agiria desse modo para, com os recursos, contratar ainda mais pessoas para trabalhar informalmente no gabinete. E tudo, claro!, sem a anuência do chefe.
Sim, é preciso, nesse e em todos os casos, resgatar o devido processo legal. Até para que um político como Flávio possa ser punido.
Por ora, o senador se beneficia de uma ação em favor do devido processo legal. Mas é o devido processo legal que pode colocá-lo no local de merecimento.
Decálogo do Rinoceronte (ou os dez mandamentos da indigência cívica)
1. Não tolerarás a diferença nem respeitarás o desacordo;
2. Não perguntarás nem fraquejarás diante da pergunta;
3. Expressarás desprezo pela política e por políticos, mas farás política com máscara de apolítica;
4. Opinarás com fé e convicção. Deixar-se convencer pela opinião contrária é derrota;
5. Não escutarás cientistas, especialistas, jornalistas. Ignorarás contra-argumentos, fatos, pesquisas. Não buscarás saber quem, como, onde e por quê;
6. Contra direitos, falarás em nome de uma entidade mística, abstrata, aritmética, imaginária: Deus, povo, maioria, 'homem de bem'. Contra direitos, invocarás uma missão civilizatória: fazer justiça, combater o crime e a corrupção, desenvolver a economia;
7. Desfilarás superioridade moral e intelectual, em nome da qual justificarás toda sorte de micro-agressões, linchamentos físicos e reputacionais;
8. Mostrarás o que é certo e como se faz, nem que seja no grito, no braço ou à bala;
9. Abraçarás slogans fáceis de assimilar: comunismo, esquerdismo. Atiçarás emoções primárias do seu público por meio dessas sínteses caricatas do mal;
10. Exigirás que sua particular forma de viver seja oficial. Dirás que essa forma é natural e as outras, desviantes.
2. Não perguntarás nem fraquejarás diante da pergunta;
3. Expressarás desprezo pela política e por políticos, mas farás política com máscara de apolítica;
4. Opinarás com fé e convicção. Deixar-se convencer pela opinião contrária é derrota;
5. Não escutarás cientistas, especialistas, jornalistas. Ignorarás contra-argumentos, fatos, pesquisas. Não buscarás saber quem, como, onde e por quê;
6. Contra direitos, falarás em nome de uma entidade mística, abstrata, aritmética, imaginária: Deus, povo, maioria, 'homem de bem'. Contra direitos, invocarás uma missão civilizatória: fazer justiça, combater o crime e a corrupção, desenvolver a economia;
7. Desfilarás superioridade moral e intelectual, em nome da qual justificarás toda sorte de micro-agressões, linchamentos físicos e reputacionais;
8. Mostrarás o que é certo e como se faz, nem que seja no grito, no braço ou à bala;
9. Abraçarás slogans fáceis de assimilar: comunismo, esquerdismo. Atiçarás emoções primárias do seu público por meio dessas sínteses caricatas do mal;
10. Exigirás que sua particular forma de viver seja oficial. Dirás que essa forma é natural e as outras, desviantes.
Quando o imperador Calígula nomeou seu cavalo cônsul
Seu cavalo era de corrida e na noite anterior a sua competição exigia um silêncio absoluto da cidade de Roma para que não incomodassem o sono do animal, com quem o imperador dormia. O castigo a quem ousasse interromper o silêncio era a pena de morte. O cavalo era na realidade o verdadeiro imperador com poderes absolutos. Verdade ou não, é interessante conhecer a História Antiga que foi forjando a Moderna através dos séculos para ver o que Humanidade conquistou em matéria de liberdade e como as possíveis loucuras de nossos governantes são brincadeira ao lado das loucuras dos imperadores e reis despóticos e absolutistas do passado.
Com todas as lacunas de nossas frágeis democracias, estamos a milhares de anos-luz do que foram os impérios antigos e suas arbitrariedades. Mas isso de deve, ao mesmo tempo, à resistência através dos séculos que o Homo sapiens impôs aos poderes ditatoriais e como aumentou os espaços da democracia. Os pessimistas irredutíveis continuam gostando da célebre frase do escritor e militar espanhol do século XV, Jorge Manrique: “Todo tempo passado foi melhor”.
Sem necessidade de ser otimistas nos tempos em que vivemos, a verdade é que, objetivamente, poderíamos dizer que, pelo contrário: os tempos passados sempre foram piores do que os de hoje. Por isso, é importante que nas escolas se ensine a História Antiga, para entender melhor e apreciar os saltos que a Humanidade deu à procura de uma dignidade maior das pessoas, de uma visão mais clara dos direitos humanos que abarquem todos, e do direito da sociedade a compartilhar o poder com os políticos.
Somente para lembrar os saltos para melhor da história humana, basta recordar que, por exemplo, nos tempos de Calígula e até séculos depois, os pais tinham o direito de vida e morte de seus filhos ao nascer. Podiam concedê-los o direito à vida ou, se não gostassem, podiam sacrificá-los. O estatuto dos direitos da infância à vida e à necessidade de ser respeitados não tem cem anos. Por sua vez, a mulher há menos de um século era mais um objeto nas mãos do homem do que uma pessoa com direitos. Na Espanha, há pouco tempo as mulheres não podiam viajar sem a permissão de seus maridos, estudar na Universidade, ter uma conta corrente. Sem contar com os avanços da ciência e da medicina que nos permitem viver mais do que nunca, demos saltos gigantescos na política e nas ciências sociais. Hoje a palavra escravidão é condenada e ninguém pode ser discriminado por suas crenças e seu gênero nos países que chegaram a um certo grau de democracia e respeito pela individualidade.
Isso quer dizer que podemos nos deitar nos louros e deixar os políticos em paz mesmo quando pretendem promover seu cavalo? Não! Justamente porque conseguimos o que a Humanidade não conseguiu em séculos, devemos ser mais resistentes e críticos com as tentações dos governantes de querer voltar aos tempos dos absolutismos em que as feras em seus instintos mais primitivos eram deixadas livres. Foram a resistência da sociedade, as lutas pelas liberdades que custaram muito sangue, o que nos permite hoje desmentir o escritor espanhol e dizê-lo que, apesar de tudo, hoje estamos melhor do que ontem.
Mas cuidado, porque vivemos um momento especial e difícil em que os cavalos transformados em cônsules e mais mimados do que as pessoas, parecem andar soltos e faladores com saudades dos tempos dos imperadores romanos. Porque se é verdade que nunca estivemos melhor, também é verdade que desabar ao abismo é mais rápido do que continuar subindo, com esforço e luta, à custa das conquistas democráticas. Sempre existe a tentação, aberta e latente de querer voltar a um passado em que os loucos ao modo de Calígula chegam a nos parecer até engraçados e divertidos.
Filhos distanciam Jair do seu discurso
Na campanha presidencial, Jair Bolsonaro disse coisas que atraíram muitos eleitores. Numa fase marcada pela prisão de Lula, ele ofereceu a ética. Num instante em que Michel Temer comprava com verbas e cargos o congelamento de denúncias criminais no Congresso, o capitão ressuscitou uma palavra fora de moda: meritocracia. No exercício da Presidência, Bolsonaro pratica o oposto do que disse.
Bolsonaro condicionou as nomeações políticas para o segundo escalão à qualificação dos indicados. Criou por decreto um tal de "banco de talentos". Recebeu 75 indicações partidárias. Ainda não nomeou ninguém. De repente, informa ao país que indicará o filho Eduardo Bolsonaro para o comando da embaixada do Brasil em Washington, um posto para o qual o Zero Três não está qualificado.
O presidente levou para o Ministério da Justiça o juiz da Lava Jato. Não fosse pelo Congresso, teria transferido para Sergio Moro o controle do Coaf. Subitamente, Bolsonaro passou a chamar de "perseguição política" a investigação em que o Ministério Público do Rio de Janeiro apura o que o primogênito Flávio Bolsonaro fez no verão passado.
Num esforço que aproxima os Bolsonaro ao que há de mais triste na política, o Zero Um foi ao Supremo para barrar uma investigação que nasceu de relatórios do Coaf. Obteve do ministro Dias Toffoli, em plenas férias do Judiciário, uma decisão que deve barrar investigações sobre lavagem de dinheiro em todo o país. A filhocracia que se estabeleceu sob Jair Bolsonaro vai deixando o presidente sem nexo.
A 'necropolitica' como regime de governo
Como classificar as fronteiras de luta de Yirley ou Talíria? Seriam questões de terra ou questões urbanas? Lutas feministas ou lideranças comunitárias? Essas são perguntas insuficientes para compreender a complexidade da agenda de direitos humanos na atualidade, em particular na América Latina. Há um cruzamento permanente da precariedade da vida que torna alguns corpos e suas lideranças políticas mais vulneráveis ao que Achille Mbembe descreveu como a “necropolítica”: políticas de morte para o controle das populações. Mbembe se inspira em Michel Foucault, na aula final do curso “Em defesa da sociedade”, de 1976. Nela, Foucault lançou a ideia de como o racismo de Estado seria uma das táticas do biopoder e da biopolítica. Entre o poder de “fazer viver e deixar morrer”, o racismo de Estado determinaria as condições de aceitabilidade para quem vive e morre. Mbembe foi além de Foucault: mostrou como o biopoder é insuficiente para compreender as relações de inimizade e perseguição contemporâneas, pois há uma necropolítica em curso para produzir os “mundos de morte”.
Yirley leu no bilhete depositado em sua casa em que dizia, “a ordem é desaparecer com você”. Talíria foi informada pela polícia que os planos para matá-la são antigos e orquestrados na internet profunda. As duas líderes de direitos humanos pediram proteção aos seus governos para se manterem vivas. Talíria teve o pedido ignorado pelo governador do estado do Rio de Janeiro, por onde é deputada federal e foi às redes sociais contar sua história; Yirley foi ao canal de Youtube de Daniel Samper Ospina para contar sua história. Por que Talíria e Yirley escolheram um caminho de exposição pública tão semelhante e alternativo aos oficiais do Estado? Porque os corsários e as milícias da necropolítica estão imiscuídas no próprio governo da política em nossos países. É o próprio funcionamento dos Estados-nação que movem políticas de morte, como o racismo, a misoginia ou a homofobia. São, como descreve Mbembe, estados assassinos porque racistas.
As duas histórias nos provocam pensar o que se passa na América Latina — ora descrevemos as mudanças políticas como onda conservadora, populista ou evangélica. Todas essas são táticas da necropolítica para estabelecer o corte entre o que “pode fazer viver e o que pode deixar morrer”. Quanto mais frágeis forem as populações, como as mulheres e as meninas negras, indígenas ou com deficiência, maior o desequilíbrio entre o poder da vida e da morte. Não é por coincidência que “feminicídio” foi vocábulo posto em circulação pelas mulheres do Sul Global, assim como ser uma ativista mulher de direitos humanos é cada dia atividade mais arriscada. As relações de inimizade, como descreve Mbembe, se movimentam pelo direito de matar, “estabelecem cortes de aceitabilidade para tirar uma vida”, instaurando os regimes de medo e precariedade. Quando o funcionamento do Estado escancara a necropolítica como regime de governo das populações, passamos a descrever a desordem como “emergência”, “conflito armado” ou “crise humanitária”. A verdade é que as táticas de exclusão e perseguição já estavam instauradas muito antes de nomeá-las pelos vocábulos do horror.
Debora Diniz/ Giselle Carino
Afinal, o que é o povo?
“A democracia é o governo do povo, para o povo, pelo povo”, definiu o presidente americano Abraham Lincoln, na sua declaração mais conhecida. O preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos consagra o povo como sujeito supremo das leis e do exercício do governo: “We the People of the United States (...) establish this Constitution” (“nós o povo dos Estados Unidos (...) estabelecemos esta Constituição”).
Há a vontade do povo, a cultura popular, a voz do povo (que é a voz de Deus, como diz o ditado popular), o carro do povo (Volkswagen). Há até o time do povo ou do povão. Mas a sociologia não reconhece a categoria povo, que não se enquadra nem na teoria de classes nem na teoria das elites dirigentes. Parece considerá-la como espécie de assombração, que não é objeto de nenhuma das chamadas ciências da natureza.
A democracia dos Estados Unidos, sacramentada no texto “We the people” acima citado, subscrito em nome do povo, também excluía mulheres, escravos e estrangeiros. Só muito recentemente as mulheres puderam votar nos Estados Unidos (em 1920) e no Brasil, em 1932. Por aqui, os analfabetos só foram admitidos como eleitores a partir de 1988.
Ao longo da história, aos atributos tradicionais de um povo, da sua unidade territorial, linguística e cultural passou a ser exigida, também, unidade étnica. Se não for do “mesmo sangue”, não é do “mesmo povo”. Assim, o povo poderia ser, também, independentemente de pátria, o conjunto de eslavos, de curdos, de judeus ou de ciganos.
Mais presentemente, como elemento intrínseco da democracia, passou a ser reconhecido não apenas o acesso de toda população válida às eleições de cargos públicos, mas também o acesso aos direitos civis (direitos humanos). Daí o conceito mais amplo de democracia liberal. Um povo cujos direitos humanos não são reconhecidos não vive numa democracia.
Há quem acredite que o povo sempre vota conscientemente e que os resultados das eleições refletem a legítima vontade popular. Mas a gente sabe como são escolhidos os candidatos a cargos eletivos, sabe como essas candidaturas são financiadas e, mais recentemente, entende que há razões demais para denunciar a natureza viciada dos métodos de convencimento adotados pelos candidatos nas campanhas eleitorais, especialmente pela manipulação das redes sociais.
Uma das críticas recorrentes feitas pelos antidemocratas em todo o mundo é a de que os governos do povo são cada vez mais crescentemente exercidos por burocratas que não guardam nenhuma identificação com o povo. São nomeados sem voto popular ou erigidos em dirigentes de organismos internacionais que formulam tratados, leis, procedimentos, que nada têm a ver com o povo. E isso vale tanto para os burocratas da União Europeia em Bruxelas como para instituições como os bancos centrais ou o Fundo Monetário Internacional. Depois de empossados, nem mesmo os escolhidos pelo voto popular conseguem decidir a direção dos interesses do povo.
A atuação das corporações, dos lobbies, dos grupos de interesses, da corrupção e até do crime organizado com organismos de governo mostram que nem sempre ou, se preferirem, raramente – e não só no Brasil – o poder do povo é, de fato, escolhido pelo povo e exercido para o povo e pelo povo.
Aristides Lobo, ministro do primeiro governo da República do Brasil, ficou célebre por ter dito que “o povo assistiu bestializado à Proclamação da República”. Com isso, definiu que a Proclamação foi obra de ex-escravocratas ressentidos, da maçonaria, de componentes das Forças Armadas e de setores da Igreja, portanto, obra das elites dirigentes e não do brasileiro comum, fosse o que fosse isso. Mas quem seria esse povo que assistia bestializado a tais acontecimentos históricos, além de ex-escravos, analfabetos e gente humilde? E a quantas evoluiu esse mesmo povo 130 anos depois da Proclamação da República?
Bolsonaro deveria ir pescar
Também estão fora de cogitação as mexidas no Código Florestal, a agenda de alterações no trânsito que ameaçam a segurança e uma lista sem fim de demandas de costumes do capitão reformado. Seria melhor que ele saísse para pescar (em local autorizado, evitando levar novas multas), enquanto as instituições tentam manter o País funcionando na normalidade. Quando o presidente anuncia que pretende “corrigir equívocos” no texto final da reforma para incluir aposentadorias especiais, quando afirma que vai colocar um ministro “terrivelmente evangélico” no Supremo – enquanto deveria se preocupar que ele fosse “terrivelmente” eficiente e competente, não importando o viés religioso -, quando ele persegue servidores ou os demite por motivos ideológicos, está gerando instabilidades em série. No limite, diante das estultices, Senado e Câmara ensaiam um rompimento, a “separação de corpos”, caso o Executivo sob jugo de Bolsonaro insista no desdém, deixando de negociar, dividir e adaptar os planos ao que é legal e de interesse da maioria dos brasileiros. A eventual ruptura viria justamente em um momento no qual a aprovação ao governo se encontra no patamar mais baixo. Jamais, desde Collor – que praticou o confisco e saiu impichado -, um presidente foi tão mal avaliado nos primeiros seis meses de mandato como Jair Bolsonaro. O capitão reformado já entendeu que o Congresso pensa seriamente em “divórcio”, deixando-o de lado e reclamou dias atrás que querem transformá-lo em uma “rainha da Inglaterra” sem mandar. Mal percebe, no entanto, que são os próprios caprichos que o estão colocando na posição de isolamento. Em um esforço destrambelhado para virar o quadro e responder ao movimento, partiu à ofensiva alegando que o povo, “meu patrão”, estava acima das instituições e que por ter sido legitimamente eleito devia lealdade absoluta a ele, podendo fazer em seu nome o que é devido. Esqueceu-se de que nesse aspecto não foi o único. Senadores e deputados chegaram pelo voto ao Congresso – considerada a verdadeira “casa do povo”. E tanto como Bolsonaro representam os anseios de diversos eleitores. Na contabilidade fria dos números, o “Mito” somou 38% de apoio no colégio eleitoral para alcançar o Planalto (muitos optaram por ele por falta de alternativas, não por serem seguidores fanáticos). O restante ou votou no adversário, ou anulou ou deixou de exercer o direito e está a reboque das deliberações do mandatário, mesmo não concordando com muitas delas, como mostra a pesquisa da ”Folha de S. Paulo” divulgada na semana passada. Nesse contexto seria mesmo aconselhável a pescaria para espairecer ou ensaiar uma volta ao presidencialismo de coalizão, sem o qual pode até mandar embalado pela claque de torcedores, mas não governa.
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