“A democracia é o governo do povo, para o povo, pelo povo”, definiu o presidente americano Abraham Lincoln, na sua declaração mais conhecida. O preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos consagra o povo como sujeito supremo das leis e do exercício do governo: “We the People of the United States (...) establish this Constitution” (“nós o povo dos Estados Unidos (...) estabelecemos esta Constituição”).
Há a vontade do povo, a cultura popular, a voz do povo (que é a voz de Deus, como diz o ditado popular), o carro do povo (Volkswagen). Há até o time do povo ou do povão. Mas a sociologia não reconhece a categoria povo, que não se enquadra nem na teoria de classes nem na teoria das elites dirigentes. Parece considerá-la como espécie de assombração, que não é objeto de nenhuma das chamadas ciências da natureza.
A democracia dos Estados Unidos, sacramentada no texto “We the people” acima citado, subscrito em nome do povo, também excluía mulheres, escravos e estrangeiros. Só muito recentemente as mulheres puderam votar nos Estados Unidos (em 1920) e no Brasil, em 1932. Por aqui, os analfabetos só foram admitidos como eleitores a partir de 1988.
Ao longo da história, aos atributos tradicionais de um povo, da sua unidade territorial, linguística e cultural passou a ser exigida, também, unidade étnica. Se não for do “mesmo sangue”, não é do “mesmo povo”. Assim, o povo poderia ser, também, independentemente de pátria, o conjunto de eslavos, de curdos, de judeus ou de ciganos.
Mais presentemente, como elemento intrínseco da democracia, passou a ser reconhecido não apenas o acesso de toda população válida às eleições de cargos públicos, mas também o acesso aos direitos civis (direitos humanos). Daí o conceito mais amplo de democracia liberal. Um povo cujos direitos humanos não são reconhecidos não vive numa democracia.
Há quem acredite que o povo sempre vota conscientemente e que os resultados das eleições refletem a legítima vontade popular. Mas a gente sabe como são escolhidos os candidatos a cargos eletivos, sabe como essas candidaturas são financiadas e, mais recentemente, entende que há razões demais para denunciar a natureza viciada dos métodos de convencimento adotados pelos candidatos nas campanhas eleitorais, especialmente pela manipulação das redes sociais.
Uma das críticas recorrentes feitas pelos antidemocratas em todo o mundo é a de que os governos do povo são cada vez mais crescentemente exercidos por burocratas que não guardam nenhuma identificação com o povo. São nomeados sem voto popular ou erigidos em dirigentes de organismos internacionais que formulam tratados, leis, procedimentos, que nada têm a ver com o povo. E isso vale tanto para os burocratas da União Europeia em Bruxelas como para instituições como os bancos centrais ou o Fundo Monetário Internacional. Depois de empossados, nem mesmo os escolhidos pelo voto popular conseguem decidir a direção dos interesses do povo.
A atuação das corporações, dos lobbies, dos grupos de interesses, da corrupção e até do crime organizado com organismos de governo mostram que nem sempre ou, se preferirem, raramente – e não só no Brasil – o poder do povo é, de fato, escolhido pelo povo e exercido para o povo e pelo povo.
Aristides Lobo, ministro do primeiro governo da República do Brasil, ficou célebre por ter dito que “o povo assistiu bestializado à Proclamação da República”. Com isso, definiu que a Proclamação foi obra de ex-escravocratas ressentidos, da maçonaria, de componentes das Forças Armadas e de setores da Igreja, portanto, obra das elites dirigentes e não do brasileiro comum, fosse o que fosse isso. Mas quem seria esse povo que assistia bestializado a tais acontecimentos históricos, além de ex-escravos, analfabetos e gente humilde? E a quantas evoluiu esse mesmo povo 130 anos depois da Proclamação da República?
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