sexta-feira, 17 de maio de 2019

Um presidente contra tudo e contra todos

Engana-se quem pensa que vou falar dele. Ou só dele. A verdade é que ele encarna a personalidade de tantos com quem cruzamos na vida. Líderes que não sabem exercer a liderança. Arrogantes e convencidos de que as únicas boas ideias vêm deles próprios, esses líderes se esquecem de que precisam de apoio para conquistar ordem e progresso. No íntimo, são inseguros, se sentem inferiores e ameaçados.

Tendem a ser bajuladores. Lembrem o encontro entre nosso líder e o presidente americano Donald Trump. Para o lado e para baixo, esses líderes desferem ofensas desconfiadas e dedo em riste. “Arminhas” na manga e ironias contra os “idiotas úteis”. Líderes assim sofrem de ejaculação precoce, recorrem a decretos, desprezam alianças, desmerecem críticas. Falam o que não deviam. Dividem para governar. Usam linguagem chula. Valem-se do poder para intimidar. Você conhece alguém assim.



Cortejam fiéis escudeiros para então fritá-los. Não sabem escolher seus ministros e assessores porque lhes falta inteligência humana e emocional. Encantam-se com personalidades de brilho próprio para, logo depois, tentar subjugá-las ou embaçar sua visão, desmerecendo ou torpedeando seus projetos. Qualquer lembrança de nomes como Paulo Guedes e Sérgio Moro é mera coincidência.

Ficou claro que Bolsonaro prefere vacas obscuras de presépio a assessores que possam desmascarar sua inaptidão para liderar. Isso resulta num troca-troca eterno de peões, uma dança das cadeiras desatinada, pois ninguém, nem o maior pau-mandado de todos, tem chance de corresponder às expectativas de um líder confuso. Quantos já foram incensados e limados no governo em tempo recorde? Eram todos incompetentes? Por que então foram nomeados? Quem está realmente satisfeito na equipe presidencial hoje? Quem se sente esquecido ou preso numa armadilha?

Um líder que se esmera em distribuir ordens e contraordens por ânsia de controle da microgovernança. Que perde tempo censurando vídeos de propaganda do Banco do Brasil ou se vingando de multas ou atritos pessoais. Um líder influenciável e imprevisível. Que afaga ou apedreja dependendo dos astros.

A perda de foco ou o foco errado em áreas essenciais que não domina – Economia, Segurança Pública e Educação – faz com que sua própria equipe passe a desconfiar dele. Alguns fazem uma ginástica atroz para protegê-lo do ridículo e se tornam condescendentes com o líder. A maioria tenta se proteger do fracasso pessoal e começa a se calar por prudência. Porque se sente desprotegida e desautorizada.

Nossa crise deixou de ser só ideológica, política ou econômica. Já repararam? Enfrentamos uma crise de liderança. O líder não pode ir contra tudo e contra todos, parceiros e subordinados. Velhos e jovens. Ricos e pobres. Professores e estudantes. Juízes e parlamentares. Sob pena de ficar só. O líder bem-sucedido segue alguns mandamentos. Valoriza e estimula sua equipe. Escolhe as brigas que valem a pena. Não transforma ministros em secretários. Não se afoba na travessia. Tem consciência de que precisa de aliados, e não só no panteão superior do Hemisfério Norte. Mede as palavras para não atiçar despeito ou antipatia. Mostra firmeza mas também coerência e autocrítica.

Pó de traque


A reforma só fará com que o país não pare em 2021
Edmar Bacha, ex-presidente do BNDES e do IBGE, um dos "pais" Plano Cruzado

Hostilidade como método

Jair Bolsonaro tem agido cada vez mais como líder de facção, e não como presidente da República. Invocando sempre a necessidade de satisfazer seus eleitores, malgrado o fato de que foi eleito para governar para todos, Bolsonaro tem contribuído para transformar debates importantes em briga de rua. É a reedição do ominoso “nós” contra “eles” que tanto mal fez ao País durante os desastrosos anos do lulopetismo.

Nesse ambiente crispado, temas cruciais para o futuro, como a reforma da Previdência, ou mesmo questões mais imediatas, como a necessidade de contingenciamento orçamentário, são desvirtuados pelo alarido dos radicais, o que nada tem a ver com um saudável debate democrático. E o presidente, que deveria, pelo cargo que ocupa, ser o condutor político desse debate, parece mais empenhado em hostilizar todos os que não lhe prestam obsequiosa vassalagem – e isso inclui não apenas seus adversários naturais, mas também, por absurdo, aqueles que desejam colaborar com o governo.

Com isso, Bolsonaro isola-se, num momento em que o País precisa de liderança e inteligência política para construir as soluções para a gravíssima crise ora em curso. São cada vez mais preocupantes os sinais de que o presidente não tem os votos necessários para aprovar no Congresso nem mesmo projetos de lei banais. As derrotas na Câmara se sucedem em quantidade inusitada para um presidente que teve 57,8 milhões de votos, elegeu-se como a grande estrela de uma formidável onda de renovação da política e deveria estar gozando a tradicional lua de mel com o Congresso e com os eleitores, reservada a todo governante em início de mandato.

Ao contrário, Bolsonaro viu despencar sua popularidade em um par de meses, resultado da paralisia de seu governo ante a aceleração da crise econômica, traduzida pelo aumento do desemprego e pela perspectiva cada vez mais concreta de uma nova recessão. Cresce a sensação – a esta altura quase uma certeza – de que o presidente não sabe o que fazer para reverter o quadro. Pior: as palavras e os atos do presidente e de alguns de seus ministros, quase sempre destinados apenas a excitar a militância bolsonarista nas redes sociais, contribuem para dificultar ainda mais qualquer entendimento político em torno de soluções viáveis para o País.

“São uns idiotas úteis”, disse o presidente ao se referir aos manifestantes que foram às ruas na quarta-feira para protestar contra o contingenciamento de verbas na área de educação. No mesmo dia, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, destratou deputados que o haviam convocado para uma sabatina na Câmara, preferindo a pesporrência ao diálogo. Tudo isso pode ter feito a alegria da seita bolsonarista no Twitter, mas o fato é que o governo começa a encarar nas ruas, precocemente, as mesmas dificuldades que já enfrenta há algum tempo no Congresso – situação que, como mostra a história recente do País, ninguém sabe como começa, mas todos sabem como termina.

A prudência recomenda, portanto, que Bolsonaro reveja urgentemente seu método de governo. O problema é que o presidente não tem demonstrado a necessária sensatez para a difícil missão que as urnas lhe conferiram. Ao contrário: sempre que pode, Bolsonaro acentua sua antipatia pelos parlamentares, tratando as adversidades da vida política – que ele agrava ao invés de amenizar – como sabotagem a seu governo. E ontem ele dobrou a aposta: disse que não vai ceder “a pressão nenhuma” em nome da “tal governabilidade”, mesmo que isso lhe custe o cargo. “É isso que querem? Um presidente vaselina para agradar todo mundo? Não vai (sic) ser eu. O que vai acontecer comigo? O povo que decida, pô, o Parlamento decida, eu vou fazer minha parte. Eu não vou sucumbir”, desafiou.

É nesse clima de antagonismo que o governo pretende encaminhar a reforma da Previdência e outras mudanças importantes para o País – e a desculpa bolsonarista para um eventual fracasso em qualquer dessas etapas cairá na conta daquilo que o presidente e seus seguidores chamam de “velha política”.

Diante disso, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse ontem que o Congresso vai “fazer a reforma da Previdência, com o governo ajudando ou atrapalhando”. Seria melhor se, pelo menos, não atrapalhasse.

A mensagem oculta de um milhão de jovens brasileiros 'idiotas e imbecis' que desafiaram o poder

Ao menos desta vez, o poder de turno no Brasil entendeu a mensagem oculta levada pelos quase um milhão de jovens estudantes que no último dia 15 saíram às ruas em 26 Estados e em centenas de cidades para defender o ensino contra quem deseja barbarizá-lo. Cansados de serem vistos como o futuro do país, que nunca chega, os jovens decidiram ser o presente e participar de sua construção.

O presidente da República, o ultradireitista Jair Bolsonaro, entendeu isso imediatamente e da cidade de Dallas, nos Estados Unidos, onde se encontrava para receber uma homenagem que lhe havia sido negada em Nova York, não tardou em qualificar aquele mar de estudantes como “idiotas úteis” e “imbecis” manipuláveis.


O novo Governo pretende transformar o ensino, da escola primária à Universidade, para livrá-lo da ideologia esquerdista que, segundo ele, o havia desviado de seus valores tradicionais. O ensino que o novo poder pretende impor deve estar isento de debate político, de diversidade de ideias, dominada por um pensamento único, que, como nos melhores fascismos do passado, é imposto pelo Estado.

Uma escola em que não se perca tempo estudando o que depreciativamente chamam de “ciências humanas”. Nada de filosofia, que obriga a pensar e a questionar o poder, ou de sociologia, que abre os olhos para o abismo das desigualdades. Uma escola em que os alunos se transformem em guardas que vigiem e denunciem os professores se tentarem falar de política ou de sexo, ou das dores do mundo. A escola é moldada pelo poder. Os alunos escutam e se calam.

Contra o perigo desta nova era de obscurantismo educacional que o Governo deseja impor, com uma nova cruzada contra os livros e as ideias enquanto exalta as armas que pretende distribuir como doces, os jovens ocuparam pacificamente as ruas e praças do país, para desafiar quem tenta castrar seu direito à liberdade de expressão e impor suas ideias.

Estes novos jovens, que dizem não ser “nem de direita nem de esquerda, e sim para frente”, abrindo juntos novos caminhos de liberação, entenderam que o novo poder tenta moldá-los à sua imagem e ideologia. Quebraram o mito de que só o futuro lhes pertencia, já que o presente seria propriedade do poder. Entenderam que quem tenta amestrá-los preferiria que se sentissem os heróis do amanhã. Assim, o presente seria construído sem que eles pudessem participar.

Agora que esses jovens estudantes decidiram ser filhos do hoje, metem medo duplamente, porque querem poder opinar, participar, decidir e denunciar não os seus professores, e sim àqueles que pretendem domesticá-los e lhes dizer como devem viver e amar, pensar e até sonhar. Decidir por eles o que é bom e o que é pecado. Quando Bolsonaro os chama de “idiotas e imbecis”, na verdade o que sente é medo. E esse desafio não acabou.

Os jovens, ao longo da História, quando decidiram manchar as mãos participando do presente sem esperar o futuro, sempre causaram pânico no poder constituído, derrubaram governos e abriram novos caminhos de liberdade.

Enquanto os jovens estudantes brasileiros forem capazes de perder o medo de quem pretende enjaulá-los e domesticá-los, este país saberá se livrar do inferno de autoritarismo e do deserto de ideias em que decidiram transformá-lo.

Pensamento do Dia


O delírio atômico

O ex-deputado federal Benito Gama é uma raposa política baiana daquelas que já viram de tudo no Congresso, desde quando presidiu a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou o ex-presidente Collor de Mello e resultou na sua renúncia à Presidência da República para evitar o próprio impeachment. Governista, defende o presidente Jair Bolsonaro com bom humor e fina ironia. Um de seus argumentos favoritos, quando alguém cita declarações polêmicas do presidente e seus ministros, é comparar o começo do atual governo com o do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva: “Foi muito pior, a confusão era tanta que tinha até ministro defendendo a fabricação de uma bomba atômica!”

É uma alusão ao então ministro da Ciência e Tecnologia, Roberto Amaral, que defendeu a retomada do projeto nuclear com objetivos militares, que teve péssima repercussão internacional. Esse argumento já não pode ser utilizado por Benito, porque o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL), presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara e filho do presidente da República, defendeu que o Brasil tenha armas nucleares, para ser levado “mais a sério”. Eminência parda da política externa brasileira, Eduardo Bolsonaro acompanhou o pai no encontro com o presidente norte-americano, Donald Trump, no Salão Oval da Casa Branca, em Washington.


Eduardo soltou o disparate durante palestra para alunos do curso superior de defesa da Escola Superior de Guerra, em reunião da comissão que preside na Câmara. Ele defendeu o rompimento do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, assinado pelo Brasil em 1998: “A gente sabe que se o Brasil quiser atropelar essa convenção, tem uma série de sanções. É um tema muito complicado, mas eu acredito que um dia possa voltar ao debate aqui”. A Constituição brasileira, no seu artigo 21, determina que toda atividade nuclear em território brasileiro seja realizada apenas para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional.

Eleito por São Paulo com 1,8 milhão de votos, Eduardo Bolsonaro é o parlamentar com mais influência na política externa brasileira, foi um dos padrinhos na nomeação do ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo. A visão do filho não é desconectada das ideias do presidente Bolsonaro, que se declara um “armamentista”. A expressão não se refere apenas à liberação da posse de armas, expressa uma concepção de projeção de poder, que ainda pode dar muitas dores de cabeça para o Brasil na sua política externa.

Na visão de Eduardo, bombas nucleares garantem a paz, como se não fosse possível, no caso brasileiro, defendê-la como se fez até agora, desmilitarizando o Atlântico Sul e evitando a nuclearização da América Latina. É simples e direto o seu raciocínio: “Tem um colega do Paquistão aqui, não tem? Como é que é a relação do Paquistão com a Índia se só um dos lados tivesse uma bomba nuclear? Será que seria da mesma maneira que é hoje? Óbvio que não. Quando um desenvolveu a bomba nuclear, o outro desenvolveu no dia seguinte. E ali está selada ao menos minimamente uma espécie de paz. Eu sou entusiasta dessa visão”, explicou aos alunos da ESG.

O Brasil sonhou com a bomba atômica durante o regime militar. As consequências foram mais negativas do que positivas para o país. O presidente Costa e Silva chegou a defender a condução de pesquisa, mineração e construção de artefatos nucleares numa reunião do Conselho de Segurança Nacional: “Não vamos chamar de bomba, vamos chamar de artefatos que possam explodir”, disse. A ambição do governo era adquirir todas as fases do ciclo nuclear por meio de cooperação internacional.

Chefiada por Paulo Nogueira Batista, um diplomata de carreira, a recém-criada Nuclebras, na década de 1970, foi encarregada de implementar o programa nuclear. Após a Índia testar uma bomba nuclear em 1974, no entanto, os EUA suspenderam a cooperação nuclear com o Brasil, que passou a privilegiar as negociações com a França e com a Alemanha Ocidental para transferência de tecnologia. A partir daí, passou a sofrer fortes pressões de EUA, Reino Unido, Canadá, França e da antiga União Soviética, que somente cessaram quando o Brasil e a Alemanha Ocidental assinaram um acordo com a Agência Internacional de Energia Atômica que assegura a natureza pacífica do programa nuclear brasileiro.

Coube ao então presidente Collor de Mello pôr uma pá de cal no projeto, ao lacrar os poços localizados na base aérea da Serra do Cachimbo, no Pará, em setembro de 1990. As atividades nucleares foram reduzidas ao programa de desenvolvimento de um submarino nuclear e à construção de duas usinas nucleares adicionais em Angra dos Reis (RJ). O Livro Branco de Defesa Nacional, divulgado em 2012 e publicado pelo Ministério da Defesa, reafirma que a América Latina é uma Zona Livre de Armas Nucleares e que o Brasil defende o desarmamento nuclear. Também afirma que o submarino de propulsão nuclear contribuiria para a proteção de rotas comerciais, a manutenção da livre navegação, a proteção de recursos naturais e a promoção do desenvolvimento tecnológico no país.

Eu + Um + Um + Um

Aprendi com o poeta Elio Alves da Silva. Ele era pescador, mas a hidrelétrica de Belo Monte roubou-lhe o rio. Como pesca o pescador sem rio? Poderíamos estender a pergunta. Como pesquisa o estudante sem bolsa? Como ensina o professor sem condições de trabalho? Como se mantém a universidade sem recursos? Como vive no presente o trabalhador sem perspectiva de futuro por um projeto de previdência que pune os mais pobres? Como os povos da floresta protegem a Amazônia quando o ministro contra o Meio Ambiente destrói o sistema de proteção para arrancar lucro privado de terras públicas? Como se protege a paz quando o antipresidente do país arma uma parte da população para a guerra? Como se salvam os mais frágeis quando Jair Bolsonaro autoriza o assassinato sem punição? Como se defendem os cidadãos quando o grupo no poder estimula o ódio e a divisão do país como estratégia? Como comem as pessoas se o ministério da Agricultura é liderado pela “musa do veneno” e o governo libera, literalmente, quase um novo agrotóxico por dia que vai envenenar nosso corpo e o de nossas crianças? Como vivem os brasileiros diante do desafio da crise climática quando o governo nega a ameaça apontada pelos principais cientistas do mundo, para justificar o avanço de poucos sobre a Amazônia de todos? Como os pais protegem o acesso à educação e à cultura quando os filhos do antipresidente se comportam como “garotos” maus e disseminam informações falsas e burrice calculada? Como os mais pobres podem viver sem a garantia de aumento real do salário mínimo? Como se mantêm vivos aqueles que dependem da saúde pública se o governo vai arruinando as políticas de saúde pública? Como fazem para não morrer aqueles que podem ser vítimas dos matadores absolvidos por estarem “sob forte emoção”, como quer o projeto anticrime que é a favor do crime? Como os brasileiros defendem o Brasil do grupo que em menos de cinco meses destruiu direitos e sistemas de proteção construídos por décadas e ainda há 1326 dias pela frente?

Elio, o pescador sem rio, me explicou. “Eu, sozinho, não consigo nada. Mas, se eu for ali e chamar mais um, vai ser eu+um. Aí, esse um chama +um. E aí já é eu+um+um...” E, para ter certeza de que foi bem escutado: “Entendeu?”.


Mais tarde, eu leria uma conversa entre o sociólogo polonês Zygmunt Bauman e o jornalista italiano Ezio Mauro, publicada em livro. A certa altura, eles falam do cidadão que “só conta como um”. E portanto não conta. “Ele não compreende que, no momento em que sua liberdade se torna assunto privado e ele começa a exercer seus direitos somente como indivíduo, no momento em que liberdade e direitos são ambos incapazes (de construir) qualquer projeto com os outros, ambos se tornam irrelevantes aos olhos do poder, já que perderam sua capacidade de por o que quer que seja em movimento”, diz Mauro. “O Estado sabe que estou estatisticamente presente, mas também sabe que eu só conto como um e não tenho capacidade de me somar aos outros.”

O poeta oral, já que analfabeto da escrita, e dois pensadores reconhecidos do mundo acadêmico, com vários livros publicados, chegaram à mesma conclusão por caminhos diferentes. Usaram a filosofia, esse exercício intelectual que parece tanto ameaçar Jair Bolsonaro. E que ameaça porque trata de perguntas e só pode existir na honestidade, ameaça porque não teme as respostas que produzem novas perguntas, ameaça porque persegue as dúvidas e as ama porque elas levam a lugares novos. A filosofia, que o antipresidente tanto teme, e por temer quer acabar com ela junto com todas as humanidades, é maravilhosa porque nos alarga por dentro. Porque nos deixa mais inteligentes e atentos, porque nos ensina a enxergar o que vemos. E está ao alcance de todos os homens e mulheres de coragem. Como Elio, como Zygmunt. E deve estar nas escolas e nas universidades, porque é a linha que costura todos os outros campos do conhecimento.

Sabe por que é com você? Quem explica é uma filósofa, essa categoria que faz os bolsocrentes tremerem de medo. Sim, eles têm um guru que se autoproclama filósofo, mas ele literalmente fala “bosta” e “merda”. Podemos questionar filosoficamente o porquê dessa obsessão, mas temos questões mais importantes no momento. A alemã Hannah Arendt descreveu muito bem algo que também foi abordado por outros pensadores respeitados e que se chama “responsabilidade coletiva”. Ela explica que somos coletivamente responsáveis pelo que é feito em nosso nome. No passado, mas podemos dizer que também no presente.Desculpa, mas não há desculpa. Não basta você ficar no sofá tuitando ou feicibucando enquanto os direitos são apagados e o autoritarismo se instala no Brasil. Não dá para terceirizar luta e posição na vida. O problema também é seu. O que está em curso não acaba em quatro anos. O que se destrói hoje levou décadas para ser construído. As consequências são rápidas, algumas imediatas. Destroem primeiro os mais frágeis, depois (quase) todos. E, a não ser que você concorde com o que o presidente contra o Brasil está fazendo em seu nome, é com você ser +um e chamar +um.

Mesmo que você não tenha votado em Jair Bolsonaro, ele foi eleito pelo voto. Isso significa que o que ele faz no poder é da responsabilidade de todos. Significa também que, quando o governante se comporta como déspota, os cidadãos precisam dizer coletivamente que não aceitam o que é feito em seu nome. Isso é tão parte da democracia quanto aceitar o resultado das urnas. E isso não pode ser terceirizado. Se você aceita os benefícios de viver em comunidade, você precisa aceitar também a responsabilidade de viver em comunidade.

Isso significa que, se você considera que as universidades são fundamentais para um país e para formar as gerações futuras, você precisa se posicionar contra o Governo que está atacando as universidades, cortando verbas que eram escassas porque já tinham sido amputadas antes e tirando bolsas de alunos e de pesquisadores. Se você considera que proteger a Amazônia e o meio ambiente é obrigatório para o presente e para o futuro, você precisa se posicionar contra o Governo que está destruindo a proteção ambiental e quer abrir as terras protegidas para soja, gado, mineração e grandes obras. Se você considera que matar um outro alegando legítima defesa por estar “sob forte emoção” é autorizar a matança e ampliar os mortos, num país onde já se mata e se morre demais, você precisa se posicionar contra esse projeto a favor do crime. Se você considera que armar a população não é uma medida racional para pacificar um país, você precisa se posicionar. Se você considera que essa não é a reforma da previdência mais justa para a população, você também precisa se posicionar.

Junto com os outros. Tudo o que os déspotas temem é que sejamos +um. E tudo o que querem é que sejamos apenas um. O neoliberalismo incutiu nas mentes das pessoas que ser “um” é melhor. Você é um, faz o que quer e todos os outros que se explodam. Essa é a racionalidade que sustenta os atos de Bolsonaro e do seu grupo. Vale o eu, só importa o meu. Ou só importam eu e a minha família. Ou eu e a minha turma. A comunidade que se exploda.

O neoliberalismo também infiltrou nas mentes que ser +um é ser desimportante. Porque ser +um é ser junto com o outro, é ser na comunidade, é exercer a solidariedade, é fazer soma para ser mais forte conjugando o coletivo. Ser +um é ser na relação com outro. Já ser um é consumir sem limites, sem se importar com o planeta que todos habitam, é esgotar o hoje sem se importar com o amanhã. Ser um é tão abominável que nem com o futuro dos próprios filhos é capaz de se importar, porque sua satisfação contínua como indivíduo é tudo o que importa. Ser +um é saber que todos os outros importam. O um constrói fronteiras e muros. O +um derruba cercas para alcançar a mão do outro, mas negocia limites mútuos porque sabe que não pode nem quer viver sozinho.

Já reproduzi em coluna recente um trecho do livro da Pussy Riot Nadya Tolokonikova. Vou repetir mais uma vez, porque é um diagnóstico preciso da nossa situação e inspirador para o momento: “(O que se rompeu foi a) ideia de que podíamos viver confortavelmente sem sujar as mãos nos envolvendo com política, de que bastava um voto a cada quatro anos (ou voto nenhum: o pressuposto de que se está acima da política) para resguardar as próprias liberdades. Essa crença – a de que as instituições estão aqui para nos proteger e zelar por nós, e de que não precisamos nos preocupar em proteger essas instituições da corrupção, de lobistas, dos monopólios, do controle corporativo e governamental sobre nossos dados pessoais – veio abaixo. Nós terceirizávamos a luta política da mesma forma que terceirizávamos as vagas de trabalho mais mal remuneradas e as guerras”.

E cá estamos nós. Como está uma parte cada vez maior do mundo governada pelos “déspotas eleitos pelo voto”

A fogueira do capitão

E assim, 2019 anos depois do nascimento do Senhor, o Rabi de Nazaré, transcorridos apenas 135 dias desde a posse do ex-capitão Jair Messias Bolsonaro na presidência da República Federativa do Brasil, o eixo da política sofreu forte mudança nesta terra onde se plantando corre-se o risco de colher o inesperado.

Se a Era PT no governo se divide entre antes e depois de junho de 2013 quando multidões sem comando ocuparam as ruas para protestar indistintamente contra tudo e contra todos, dê-se por estabelecido que a Era do Mito será no futuro estudada pelos historiadores levando-se em conta o antes e o depois da data de ontem.


A ninguém foi dado o dom de antecipar que as manifestações contra os cortes de verbas para a Educação atrairiam cerca de 1 milhão de pessoas predominantemente jovens às ruas de todas as capitais e grandes cidades do país – nem mesmo à Agência Brasileira de Informações (ABIN), uma espécie de Serviço Secreto do governo.

Estimava-se que elas seriam se tanto de médio porte, concentradas nas capitais, e destinadas a reclamarem por mais dinheiro para a Educação. Pois bem: multidões desfilaram em mais de 200 cidades de todos os Estados. E até em municípios pequenos como Felipe Guerra, no Rio Grande do Norte, com menos de 6 mil habitantes.

A Educação serviu de espoleta para levar às ruas estudantes, professores e pais de alunos não só das universidades públicas como das particulares. Sem falar de estudantes secundaristas preocupados com o que poderá acontecer nos próximos anos. Para o governo, melhor seria que tivesse sido só a Educação o motivo de tudo.

Mas não. Lembra-se de um cartaz de junho de 2013 que dizia “não é somente por 20 centavos”? Referia-se ao aumento no preço das passagens de ônibus no Rio e em São Paulo. Não foi só pelo corte de 30% do dinheiro que banca despesas de custeio das universidades com luz e água, segurança e limpeza que as ruas se encheram de gente.

Foi também por causa da reforma da Previdência, da política de armamento da população, do acesso facilitado ao porte de armas e da falta de reação da economia a todos os estímulos que recebe para que cresça. Políticos e militantes de esquerda tentaram pegar carona nas manifestações. O governo preferiu hostilizar os manifestantes.

Se a presidente Dilma Rousseff, em junho de 2013, saudou, perplexa, o que viu e acenou com providências jamais tomadas para amenizar a insatisfação geral, o presidente Jair Bolsonaro, dos Estados Unidos onde se encontrava atrás de um prêmio, fez justo o contrário. Chamou os manifestantes de imbecis e de “idiotas úteis”.

Aqui, o ministro Onyx Lorenzoni, da Casa Civil, comparou o corte na Educação ao corte do churrasco e da cervejinha do fim de semana pelo chefe de família que perdeu o emprego. E o Delegado Waldir, líder do PSL na Câmara, disse que os manifestantes representavam uma minoria de “baderneiros” e de "fumadores de maconha”.

O capitão acendeu a fogueira que pode incinerar o seu governo.

Resposta do Brasil


Tabata contra os absurdos

São tantos absurdos, tantas arbitrariedades. A primeira delas é dizer que há uma concentração nas (ciências) humanas. Não é verdade, ministro. Apenas 1,4% da verba do CNPQ vai para as ciências sociais. Apenas 23,7% das bolsas da Capes vão para humanas e ciências aplicadas. O segundo absurdo é cortar de três universidades que têm um bom desempenho e falar que é por balbúrdia.

Logo se diz que o corte, na verdade, é para destinar para educação básica, mas vemos mais uma mentira. Até agora, já foram R$ 914 milhões (bloqueados), impactando também educação infantil e creches. O senhor é um gestor, e em vez de ficar aí veiculando vídeos falsos de outros países, deveria fazer uma pesquisa para mostrar se há abusos, se há excessos, e como a gente deveria lidar com eles. em sua apresentação, falou que prioridade é ensino técnico. Então como cortar dos IFs (institutos federais), ao invés de apoiá-los?.

O senhor é um ministro de Estado hoje. Não pode vir aqui dessa maneira, sem nenhum critério técnico, baseado em ideologia, e travar essa guerra ideológica, essa cruzada contra o que o governo chama de marxismo cultural, que não existe. O senhor entrou no ministério com três meses e meio de atrasos, polêmicas, desmandos, paralisia, não há tempo. Tem que falar de Enem, Fundeb, formação de professores e sair dessa guerra ideológica. A educação nas universidades não é um projeto de um único partido, são um projeto de nação.
Tabata Amaral (PDT-SP) em exposição na Câmara do ministro Weintraub, da Educação

Bombeiro incendiário


Estamos com medo do futuro. Isso é inédito
Gilberto Gil

Bolsonaro agora contesta apuração que apoiava

Diante do caso Coaf, o Jair Bolsonaro que apoiava as investigações ontem pode ser o crítico que desqualifica os investigadores hoje, e o país não está a salvo de um vice-versa — tudo está condicionado à conveniência política, não à busca da verdade.

Em 12 de dezembro do ano passado, antes de sentar-se no trono presidencial, Bolsonaro soava destemido. Chegava mesmo a enaltecer o fato de os dados bancários do amigo Fabrício Queiroz terem sido jogados no ventilador: "Não sou contra vazamento. Tem que vazar tudo mesmo. Nem devia ter nada reservado. Tem que botar tudo para fora e chegar à conclusão."

Nessa época, Bolsonaro dizia que nem ele nem o filho Flávio eram investigados. Achava que mesmo Queiroz, o ex-faz-tudo, estava imune a investigações. A despeito disso, colocava-se à disposição para pagar por eventuais erros. "Se algo estiver errado — seja comigo, com meu filho ou com o Queiroz — que paguemos a conta deste erro. Não podemos comungar com erro de ninguém."

Decorridos cinco meses, a investigação contra Queiroz, que Bolsonaro supunha não existir, foi estendida a Flávio Bolsonaro. Quebraram-se formalmente os sigilos bancário e fiscal da dupla. E aquele Bolsonaro que achava tudo natural desapareceu. Foi substituído por um Bolsonaro que contesta vorazmente a investigação.

"Estão fazendo esculacho em cima do meu filho", disse o presidente nesta quinta-feira. "Querem me atingir? Venham para cima de mim! Querem quebrar meu sigilo, eu sei que tem que ter um fato, mas eu abro o meu sigilo. Não vão me pegar."

Aquele Bolsonaro que achava que "tem que vazar tudo mesmo" deu lugar a um Bolsonaro que questiona até a abertura de dados sigilosos com ordem judicial. Chama de "jogadinha" a quebra dos sigilos do filho.

"Quebraram o sigilo bancário dele desde o ano passado e agora, para dar um verniz de legalidade, quebraram oficialmente. E de mais 93 pessoas, se não me engano. Nossa Senhora, tem uma Lava-Jato aí. Vai fundo, vai fundo."

No lugar daquele Bolsonaro que se dispunha pagar por eventuais erros, surgiu um sujeito que procura desesperadamente uma porta de incêndio, flertando com a defesa do arquivamento do inquérito: "Isso aí é ilegalidade. Eu não sou advogado, [mas parece] nulidade de processo."

A disposição de Bolsonaro de promover um encontro com a verdade diminui na proporção direta do aumento do mau cheiro. Bolsonaro ainda não é investigado. Mas parece ter uma boa noção da quantidade de balas perdidas que percorrem a conjuntura. "Não vão me pegar", apressa-se em dizer, antes mesmo que lhe perguntem.

Alerta ao próximo presidente

Má notícia para quem assumir a Presidência em 2023: só em 2026 sobrará algum dinheiro, depois de pagas as contas de operação do governo, segundo novas projeções da Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado e especializada em contas públicas. Até lá, a economia em marcha lenta continuará limitando severamente a arrecadação, mas os gastos obrigatórios seguirão pressionando o Tesouro Nacional. Aquela pequena sobra fiscal, equivalente a R$ 27 bilhões de hoje, deverá ser usada para o pagamento de juros. Pela projeção anterior, datada de outubro, já em 2023 poderia haver superávit primário, isto é, alguma folga antes da conta de juros.


O pequeno saldo primário agora estimado para a segunda metade do próximo governo será obtido com muito aperto de gastos, num cenário de crescimento econômico ainda baixo, mas com ajuda de uma reforma da Previdência aprovada já em 2019. Pelas contas da IFI, a reforma proporcionará, no Regime Geral da Previdência Social, cerca de 80% dos efeitos previstos pelo governo para os dez anos seguintes.

Se alguém já pensa em disputar a eleição presidencial de 2022, deve levar em conta, por prudência, o novo relatório da IFI sobre a evolução das contas públicas nos próximos anos. Mesmo com a reforma das aposentadorias e a redução da incerteza econômica, ninguém deve apostar numa alteração radical das condições de governo. Para começar, o crescimento ainda vagaroso deverá continuar afetando a arrecadação.


As novas projeções da IFI para o Produto Interno Bruto (PIB) apontam expansão de 1,8% em 2019 e 2,2% em 2020 (2,3% e 2,4% no cenário anterior). O ritmo deve aumentar para 2,3% em 2021 e recuar para 2,1% em 2022. Em todo o período a inflação ficará pouco acima ou abaixo de 4% ao ano.

As despesas da Previdência serão contidas, mas outros gastos obrigatórios continuarão pressionando o governo central. Ainda será preciso apertar a execução orçamentária, comprimindo o investimento público e outras despesas classificadas como discricionárias. Mas nem todas as despesas desta categoria são de fato comprimíveis sem prejuízo para o funcionamento do governo.

Nestas condições, há um risco elevado, segundo a IFI, de ruptura do teto constitucional de gastos em 2022, último ano do atual mandato presidencial. Por emenda constitucional aprovada no governo do presidente Michel Temer, o aumento da despesa pública é limitado, em cada ano, pela inflação do exercício anterior. A solução para evitar a ruptura é acionar um gatilho para conter certos gastos, congelando, por exemplo, a folha de pessoal e, é claro, as contratações.

O uso do gatilho pode envolver problemas políticos, complicar a administração e tornar mais difícil a recuperação de uma economia já muito fraca.

Pelas novas estimativas, o déficit primário deverá ficar em R$ 139 bilhões neste ano. Esta era a meta original, mas houve esperança, durante um período, de um resultado melhor que o de 2018, quando o saldo negativo ficou em R$ 120 bilhões. Sem o aperto já iniciado, o buraco poderia chegar a R$ 169 bilhões. Pelo cenário básico, o resultado primário será ligeiramente positivo em 2026 e chegará a 1,1% do PIB em 2030. Pelo otimista, o saldo ficará azul em 2024 e baterá em 2,2% do PIB em 2030. Pelo pessimista, nesse último ano a proporção será de apenas 0,7%.

Para investidores e financiadores, um dado crucial é a evolução da dívida bruta do governo geral, formado pelas administrações central, dos Estados e dos municípios. As estimativas anteriores apontavam um máximo de 82,7% em 2023, com declínio a partir daí. As novas projeções indicam elevação até 85,5% em 2025. No cenário pessimista, a proporção de 100% do PIB será atingida em 2026 (antes, em 2030).

O governo deveria dar atenção especial, desde já, ao cenário pessimista, para programar as medidas de estímulo ao crescimento, de fortalecimento econômico e de reforço fiscal. Nada disso será alcançado sem uma articulação política muito melhor que a atual, e com uma gestão muito mais harmônica.

A coisa aqui tá preta

O pelotão de Bolsonaro

Em sua relação com o Congresso, Bolsonaro vai sendo encurralado por questões sobre as quais não tem controle e não sabe como lidar.

Não há como o presidente Jair Bolsonaro se queixar de que não sabia. O sistema de governo brasileiro obriga um campeão de votos diretos (ele) a lidar com um Legislativo de baixa representatividade (o sistema de voto proporcional brasileiro garante a desproporção), fracionado entre dezenas de partidos políticos – alguns parecidos a quadrilhas – mas cheio de prerrogativas. Que fazem do presidente da Câmara dos Deputados uma espécie de primeiro ministro, até com pauta própria, enquanto o chefe do Executivo legisla por medida provisória.

Nesse “natural” embate não há, até aqui, a menor novidade. Nem mesmo no fato de o campeão de votos dar sinais contraditórios sobre como pretende enfrentar esse dado básico da natureza do sistema de governo. Que confunde mesmo. Por vezes, Bolsonaro acena com gestos políticos que são inerentes à necessidade de se entender com as forças dentro do Legislativo (eventualmente cedendo à pressão fisiológica por cargos). Por outras, despreza a prática da articulação política – a começar pela condução da própria bancada –, qualificando-a como porcaria com a qual não quer se sujar.


Na prática, não está fazendo nem um nem outro. E vai sendo implacavelmente encurralado por prazos de tempo sobre os quais não tem controle. Arrisca-se a ver perdida a reestruturação administrativa por conta de votação de MP mal conduzida na Câmara. Arrisca-se a ver a crise fiscal esmagar ainda mais o espaço para o Orçamento, enquanto já vai atrasado na aprovação de alguma reforma na Previdência. Arrisca-se a entregar de bandeja a adversários políticos uma narrativa política de impacto, como o contingenciamento das verbas da Educação.

No conjunto da obra, está sendo desmoralizado – ajudou a enfraquecer o nome mais popular, o de Sérgio Moro, ao já nomeá-lo para o STF, e vai vendo o mundo legislativo e jurídico fazendo o mesmo gesto de atirar, só que, desta vez, é contra seu predileto decreto de flexibilização do porte de armas. Chega a ser perverso constatar, nesse contexto, que o “fundo do poço” ao qual se referiu o ministro da Economia ao falar da situação fiscal não está convencendo deputados a aprovar o que o governo quer, mas, sim, está dando a ideia a eles de que o governo não sabe o que fazer.

Não há dúvidas sobre a espúria motivação de nutrido grupo de parlamentares (a famosa área bandalha da Câmara) ao bloquear a reforma administrativa ou impor sucessivas derrotas ao governo. Ocorre que grande parte da relevância que esse chamado Centrão assumiu nas últimas quatro semanas é sobretudo o resultado de um vácuo político a partir da “base” de sustentação de Bolsonaro na Câmara. A constatação tem sido reiterada pelos próprios parlamentares governistas, não é “papo da mídia”.

Aos apoiadores, o presidente e seus filhos têm repetido que “não há jeito”, que uma maioria imbatível no Congresso se comporta “contra o Brasil”, que a área política “não se deixa moralizar” e que ele está sendo encurralado por parlamentares bandidos e mídia podre e adversa a: a) ceder ao fisiologismo e bandalha, acabando na cadeia. Ou: b) a cometer um crime fiscal e ser “impichado”. Se abraçada até as últimas consequências, essa percepção que Bolsonaro aparentemente tem das causas das dificuldades em realizar os projetos que considera mais valiosos, e de aprovar reformas que admite serem necessárias, o levará a agir de forma contundente.

Aí resta saber quem e quantos estarão no pelotão que irá atrás do capitão.

Sem os faniquitos de Olavao de Carvalho e dos filhos, Bolsonaro enfim vai governar?

Um dos fenômenos mais atraentes é a coincidência. Na política, as coincidências são particularmente perigosas, porque dão margem ao desenvolvimento de teorias conspiratórias, que já se tornaram uma espécie de esporte preferido na Praça dos Três Poderes. Realmente, não faltam teorias conspiratórias nesse início de governo Bolsonaro. E praticamente todas elas são cultivadas na horta do guru virginiano Olavo de Carvalho, com entusiástica participação dos filhos Zero Um, Zero Dois e Zero Três, não necessariamente nesta ordem cronológica.

Tirando de lado coincidências e teorias conspiratórias, o fato concreto, que não admite contestações, é que Olavo de Carvalho, o mais estranho personagem da República, sumiu do noticiário de repente, não mais que de repente, que maravilha viver, diria o poetinha Vinicius de Moraes.

Ao mesmo tempo, também saiu de cena o vereador Carlos Bolsonaro, o Zero Dois, enquanto o deputado federal Eduardo Bolsonaro, o Zero Três, se recolhia às suas atividades normais de chanceler informal. O único que ficou com grande exposição na mídia foi o senador Flávio Bolsonaro, o Zero Um, que há meses tenta submergir e passar despercebido, mas a vida seguiu em frente e o colocou de novo nas manchetes das páginas policiais.

De tudo isso emerge uma certeza. Na terça-feira passada, dia 7, aconteceu algo de muito importante no almoço fora de agenda do presidente Bolsonaro no famoso Forte Apache, quartel-general do Exército em Brasília, com a presença dos comandantes das Forças Armadas e das figuras mais representativas da classe militar.

De lá para cá, Olavo de Carvalho somente se pronunciou politicamente uma vez, pelo Facebook, em estilo ático, sem usar um só palavrão, numa clara tentativa de se desculpar junto aos generais Villas Bôas e Santos Cruz.

Outro fato concreto foi que o deputado Zero Três, que apoiara as grosserias do guru virginiano e avisara que os ataques prosseguiriam “a quem não seguisse” o presidente, na mesma terça-feira recuou e disse que iria passar a pôr “panos quentes” nas polêmicas. Ao mesmo tempo, o vereador Zero Dois, que dissera na intimidade haver “implodido” o general Santos Cruz, simplesmente sumiu do noticiário político, e agora voltou com uma frase enigmática: “O que está para vir pode derrubar o Capitão eleito”.

Certamente está se referindo à investigação sobre atos ilícito do Zero Um, que envolvem indiretamente o próprio Bolsonaro pai.

É claro que tudo isso pode ser apenas coincidência, mas os fatos concretos se somam e indicam que a ala militar conseguiu neutralizar o grupo olavista, mas surgiu nova crise a impedir que o governo comece a trabalhar com maior unidade e empenho.

Desde os tempos de Jânio Quadros que não se vê uma gestão tão atrapalhada. Para melhorar, é preciso que o presidente Bolsonaro descarte de vez as teorias conspiratórias e passe a se dedicar ao governo, ao invés de perder tempo com redes sociais e outras bobajadas.

À luta!

Sobreviver não é só encontrar o trabalho adequado, é exigir um bom sistema público de saúde ou o direito a uma moradia digna.
 
(...) É preciso ensinar a lutar e a exigir da administração que cumpra suas obrigações
Henry Giroux, pesquisador da Universidade McMaster de Ontário 

Um governo em que só a derrota interessa

Não passa um dia sem que a corte de Jair Bolsonaro cometa um atentado contra seu próprio patrimônio. A ação deletéria do círculo mais próximo do presidente é cruel, e em alguns casos, ridícula. Já foram escritas algumas milhares de páginas gloriosas relatando graves e disruptivos equívocos históricos que ao longo dos tempos destruíram reis, imperadores, ditadores, presidentes. Uma nova página está sendo escrita nestes dias no Brasil. Esta, porém, não tem uma gota sequer de glória. Ela é composta apenas por erros pernósticos e grosseiros.


Um elenco de erros que ultrapassa o limite do bom senso. O pacote de bobagens começou a ser oferecido já na posse, quando o filho mais mimado do presidente abancou-se no Rolls-Royce presidencial. Parecia uma coisa juvenil, sem maior importância. Não era, como verificou-se em seguida, quando o menino demitiu o primeiro ministro do pai. A partir daí, o país acompanhou atônito uma sequência de episódios capazes de arrasar qualquer reputação. Aos poucos, a República do Tiro no Pé foi se consolidando no entorno do presidente e hoje está instalada de maneira inequívoca e soberana no Palácio do Planalto.

Dos eventos que tornam difícil o trabalho dos bombeiros de Brasília, o mais impressionante é o tratamento que o governo dá à educação. Primeiro, nomeou um maluco desprovido de bom senso que iniciou sua breve jornada na Esplanada dizendo que brasileiro é um ladrão canibal quando viaja ao exterior. Depois, indicou um sucessor mão de tesoura que anunciou um corte bilionário no orçamento das universidades em nome de um revanchismo cego e tolo. Nem o mais leal bolsonarista consegue entender uma medida como esta, a menos que imagine estar assim nivelando o Brasil ao seu próprio patamar. E ache isso bom.

Na política externa, o governo tomou todos os atalhos que o manual do bom diplomata condena. Na área ambiental, nadou e segue nadando contra a maré global. Nem a China, país mais poluidor do mundo, foi tão longe no descaso com o meio ambiente. Não vale a pena falar da senhora que viu Jesus numa goiabeira, nem do cavalheiro que comprou um laranjal em Minas, ambos ministros do governo Bolsonaro.

Melhor se concentrar na política. Em menos de cinco meses, Bolsonaro teve tantas indisposições nesse campo que já está tomando café frio. Não ganhou um embate importante no Congresso. Depois de ver estraçalhada sua proposta de reforma administrativa na comissão criada para analisá-la, o governo experimentou uma derrota fragorosa ao tentar impedir que o ministro mão de tesoura fosse convocado para se explicar na Câmara. Enquanto ele dava vexame no plenário, escolas ao redor do país pararam e foram às ruas em protesto contra o governo. Nem Temer no pior de seus dias foi tão mal.

Ao lado das questões graves, há outras patéticas. Imaginem dois líderes de partidos aliados recusando chamamento do presidente da República para irem ao Palácio conversar. Os “famosos” Elmar Nascimento (DEM) e Arthur Lira (PP) agradeceram convite feito pelo líder deputado major Vitor Hugo (PSL) e não foram ouvir Bolsonaro. Caso raríssimo na história da política nacional, o Centrão disse não ao governo. Logo o Centrão, que faz das tripas coração para estar sempre ao lado de quem dá as cartas e solta as verbas.

Além disso, os três filhos continuam azucrinando. O mais velho, o 01, teve seu sigilo bancário e fiscal quebrados e antes do fim do ano estará experimentando o calor abrasador do inferno, e incendiando o governo. O mimado, o 02, agora está torpedeando os ministros Onyx, Moro e Guedes, porque não suporta nenhuma sombra maior que a sua ao lado do papai. E, finalmente, o 03 disse que o Brasil deveria ter sua bomba atômica para ser levado mais a sério. Quem não pode ser levado a sério é o 03.

E, claro, o presidente pode sempre contar com a inestimável colaboração de Olavo de Carvalho, a cereja no topo do bolo. Se os filhos afastam do pai os ministros políticos e técnicos, Olavo afugenta os militares. O perigo do isolamento de Jair Bolsonaro é real. Para quem faz tudo para parecer que somente a derrota interessa, o caminho para o fracasso não poderia estar mais aberto e desimpedido.
Ascânio Seleme