quarta-feira, 22 de maio de 2019
Presidencialismo a custo zero
Ou melhor, por dois medos que o têm consumido, como traduz quem o conhece: as investigações sobre o filho Flávio, que por extensão atingem toda a família, estão chegando muito perto do presidente e seu modelo de campanha eleitoral, sem partido, sem negociação, sem base e sem equipe adequada.
Contrata pelos gabinetes um grupo de cabos eleitorais e leva adiante as disputas. Desses funcionários não quer enxergar a origem nem a biografia. A quebra de sigilo de um ameaça a todos.
Embora o presidente não vá ser investigado por fatos anteriores ao seu mandato, qualquer descoberta fora do padrão seria um tropeço que não poderia suportar.
O segundo medo que o faz tão reativo à relação política entre os Poderes é, se abrir o que imagina deva ser uma negociação com o Congresso, pode cair na partilha do governo com legendas do Centrão que, ninguém duvida, podem vir a cometer os erros de sempre. E ele, Bolsonaro, de repente, se ver envolvido em crime de responsabilidade e outras situações ilegais que podem levar, com facilidade, ao impeachment que o Congresso não negaria. Até porque não foi convidado a ter um compromisso político com o governo.
Caminhos tortuosos demais, mas realistas. Precisam ser corrigidos sob pena de o presidente considerar-se incapaz de estabilizar o país. Acuado, ele reage atacando os dois pilares que o deveriam sustentar, como instituições e instâncias de governo: a base no Congresso e os seus ministros mais próximos. Bolsonaro tenta inaugurar um presidencialismo de custo zero, esticando e afrouxando a corda quando lhe convém.
Nesse ambiente, os assuntos da administração não prosperam. O que preside o Brasil é a agenda do entretenimento. Bolsonaro viaja para cima e para baixo sem tratar de assuntos de Estado, apenas lançando pílulas ideológicas inoculadas pelos filhos, que são por sua vez ventríloquos do professor-guru que até agora não cobrou direitos autorais sobre insultos e provocações que alimentam a guerra do chefe do governo contra as instituições.
Os últimos conflitos foram tão bárbaros que, de repente, há uma semana, diante do risco, Carlos Bolsonaro e Olavo de Carvalho decretaram uma trégua, não se sabe até quando. Mas Jair Bolsonaro continuou no ataque na sexta, amainou o semblante na segunda, falou docilmente na terça, e não se sabe como estará hoje. Não é uma mudança de comportamento consolidada.
E nem poderia, pois não cessaram as razões da sua apreensão. A qualquer momento surgirão novas emoções, com certeza quando forem retomadas as atividades digitais do clã.
Ainda estão todos, no Planalto e na planície, impressionados com o mais forte sinal de desprezo de Jair Bolsonaro por quem é referência e está a seu lado. A última não foi a do tsunami nem a do país ingovernável, nem mesmo o violento ataque às corporações. Cena reveladora da índole bolsonarista foi a que indicou a iminência da demissão do ministro da Secretaria de Governo, Carlos Alberto Santos Cruz. Um boato inspirado pelo próprio presidente. Estava Bolsonaro em uma reunião de três ou quatro autoridades, desinteressado da conversa, quando olhou para o celular, leu alguma mensagem e sentenciou: "Vou demitir o Santos Cruz". Falava do principal articulador do governo com o Congresso, o mais preparado dos ministros militares que o cercam. Imediatamente levantou-se e saiu repetindo a decisão, enquanto agiam os bombeiros, correndo atrás dele.
Santos Cruz foi ao Alvorada explicar-se com o presidente, dizer que não disse o que disseram que ele disse, mas quem ficou em péssima situação foi também o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, fiador número um do governo, o primeiro a acompanhar Bolsonaro na campanha.
O fato foi um marco negativo nas relações de Bolsonaro com a área militar, que já vinham claudicando. Hoje, fardados ou sem farda do governo têm um sentimento definido como decepção, que leva ao desalento e afrouxamento dos laços de compromisso que os uniam a Bolsonaro.
Quanto ao Congresso, não há freios na campanha para denegrir o resto de imagem institucional do Parlamento. Sempre há quem veja na situação o caminho para o parlamentarismo, um recurso inviável em um Congresso frágil e fragmentado como o atual. Mas o presidente segue inoculando em seu grupo de seguidores a ideia de que o Congresso só quer a troca espúria, o fisiologismo. O bolsonarismo pressiona o Parlamento a dar de graça o que quer o presidente da República. Para os seus, Bolsonaro é um herói, homem de bem que está sendo encostado à parede.
Decidido a tocar sua própria agenda segue o Congresso, fazendo o que o governo talvez não concorde, mas não pode ficar só assistindo à autocombustão de Bolsonaro e também se anular. Em visita semanal às bases, o parlamentar vê de perto o agravamento do desemprego e o temor da volta da inflação nesse ambiente de miséria e tensão. Volta a Brasília mais nervoso ainda com a condução do governo.
Vai tocando uma agenda possível. Saídas ainda não há, nem na imaginação. Em mesas de jogo de desocupados, numa conversa descompromissada, já se ouviu que, antes de dois anos, nada se fará, para que não seja necessária outra campanha presidencial, outra eleição para substituir o presidente. Depois de dois anos, vê-se a situação e discute-se como terminaria o atual mandato. Mas é conversa entre a compra de um curinga e um ás, não se trata de um movimento.
A perspectiva é continuar assistindo ao espetáculo em cartaz. É a apresentação de quem acha que pode governar sozinho, quem tem dificuldades para conviver com a diversidade política do país, entender a complexidade do Brasil e considerar a existência do ruralista ao evangélico, da região nordeste ao centro-sul, dos militares, dos civis, dos estudantes e professores, da esquerda e da direita. E procurar a conciliação. Bolsonaro prefere o confronto, mais grave porque é sensível e suscetível a qualquer informação provocativa que lhe envie sua família.
A crise é crônica na fase atual. Será melhor percebida por todos em fase aguda.
Inimigo do povo
Esse clima de ódio foi instalado pelo PT. Houve uma polarização: nós e eles. Está errado. É tudo nós. Não tem o eles. Somos todos brasileiros. E estamos divididos. Acentuou-se essa coisa de ódio, de inimigo. Nem na ditadura vi algo assimIgnácio de Loyola Brandão
Perplexidades
E quando uma coletividade nascida da engrenagem da aristocracia branca estrangeira com escravidão negra também estrangeira, soldadas por mestiçagem e por uma máquina estatal hierarquizada administrada por uma elite absolutamente consciente do seu papel de mandona diz que é igualitária – você acredita?
Uma outra perplexidade é o recorrente projeto das elites de promover o progresso, a riqueza e a democracia do Brasil e, no entanto, o que tenho visto é uma sucessão de ciclos nos quais quem chega ao poder enobrece enquanto o País fica mais acachapado.
A perplexidade atual é constatar como o governo destoa frontalmente de um estilo politicamente correto de governar. As reações a essa desarmonia são sintomáticas de um elitismo feroz, forjado por redes de elos pessoais e simbólicos que mantiveram sua autoridade (e seus lucros políticos e monetários), deixando mudar regimes. Os regimes mudam, mas o núcleo elitista (velho ou novo) permanece na sua matriz aristocrática garantida por leis.
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Dizem que não se governa um país na base do confronto e eu tendo a concordar. Ressalvo, entretanto, que, no Brasil, aprendemos tudo menos a dizer não. Somos da moda e não queremos “ficar mal no filme”. Daí a obrigatoriedade de concordar e compreender as falcatruas dos amigos e dos recomendados que comungam do nosso estilo de vida patriarcal que não permite nome feio ou ponto fora da curva. Tal estilo tem sido sustentado pelo Estado que – eis outra perplexidade – não teve uma raiz democrática, embora seja formalmente um “Estado democrático de direito”.
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Quem foi que inventou o Brasil? Lamartine Babo fez essa pergunta crítica na marchinha carnavalesca História do Brasil, em 1934. Tempos que culminaram numa ditadura. Por que a questão é crítica? Pela simples razão de conduzir às origens. Para nós humanos, nada é mais básico do que o acesso às origens. Deus deve estar acima de tudo porque é o Criador do mundo e dos seus princípios.Mitos de origem e origens como mitos são a base dos sistemas políticos e sociais. John Adams, Benjamin Franklin, Alexander Hamilton, John Jay, Thomas Jefferson, James Madison e George Washington são os “pais fundadores” dos Estados Unidos da América cuja sociedade tem um lado hiperindividualista. Origem, fundação, descoberta e criação estão sempre ligados a uma dimensão hierárquica ou aristocratizante e a algo divino. A seres e objetos marginais ao nosso mundo rotineiro, mas necessários à sua fecundidade e continuidade.
O Brasil, diz a marchinha, foi inventado por Seu Cabral, dois meses depois do carnaval. Há quem – observando a nossa fúria autodestrutiva – duvide?
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A divisão do poder absoluto e divino dos monarcas foi feita na base de um número mágico. Qualquer semelhança entre a Santíssima Trindade e os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário é mera coincidência, exceto para o antropólogo, mas isso não cabe numa crônica.O fato é que a divisão republicana foi adotada na América Latina com um forte sotaque real, pessoal e relacional – autoritário – como eu tenho mostrado nos meus livros. As repúblicas latino-americanas não caíram num terreno virgem. Foram proclamadas contra vice-reinados e, no nosso caso, em contraste com um império. Joaquim Nabuco percebeu isso porque conhecia bem o nosso viés personalista, relacional e – não custa acrescentar – elitista e cabotino.
O republicanismo aplicado ao nosso continente elege reis, como dizia Nabuco. Com a diferença marcante do viés messiânico-marxista que, com a Guerra Fria, deu um novo impulso ao caudilhismo pessoal (caso cubano) ou corporativo-partidário (caso brasileiro), apelando para conceitos que remeteriam às origens da ordem social como propriedade, liberdade e opressão.
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Minha última perplexidade foi escrita por Hölderlin – um poeta alemão: “Onde existe perigo, existe esperança”.
Uma revista alegre
Ganhava-se pouco, mas divertia-se muito no "Comício". Numa dessas viravoltas da política nacional, um deputado entregou a Joel Silveira, Rafael Correia de Oliveira e Rubem Braga o capital para se fundar um semanário. A independência que prometeu ao trio diretor funcionou bastante bem durante algum tempo. O primeiro número saiu a 15 de maio de 1952, indo fazer agora treze anos, santo Deus!
A redação era a sala ampla dum vigésimo andar da rua Álvaro Alvim. Nela trabalhavam e brincavam (sobretudo brincavam) Rubem, Joel, Millôr Fernandes e, a partir de certa data, eu. Colaboradores mais assíduos eram Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Carlos Castelo Branco, Edmar Morel, Lúcio Rangel, Tiago de Melo, Newton Prates, Luís Martins. Clarice Lispector, com o pseudônimo de Teresa Quadros, fazia a página feminina. Foi também "Comício" que revelou Antônio Maria e Sérgio Porto como cronistas, Pedro Gomes como repórter, e Rubem Braga como tesoureiro.
Dizíamos: "Aproveita enquanto o Braga é tesoureiro". A tesouraria era a gaveta dele. O sujeito chegava, o Braga abria a gaveta e pagava; o colaborador dizia: "Pera aí, Braga"; o Braga dizia "eh, eh"; depois dava mais uma nota; o sujeito agradecia e pedia um pouco mais; o Braga fechava a gaveta com estrondo e passava-lhe a chave.
No princípio a gaveta andava cheia de dar gosto; depois, o enchê-la ficava dependendo dumas missões externas do tesoureiro; quando a missão era bem-sucedida, o Braga entrava na redação como o caçador que vem para dividir a presa com o acampamento; depois o dinheiro sumiu e o Braga nem caçava mais.
Era uma revista alegre e meio maluca. Diretores e redatores chegavam cedo, cada um muito espantado com a pontualidade dos outros. Isso levava todos a comentários perplexos: "Aqui a esta hora, Millôr?! Que há contigo?", "Olha o Paulo chegando! Eu, hein!", "O Joel não deve andar bem de saúde: às nove horas ele já estava aqui!".
No expediente matinal escrevia-se pouco, mas falava-se muito, sobretudo o Joel, minto, sobretudo o Millôr, empoleirado no alto de seu cavalete. Rubem Braga falava menos, mas resmungava mais.
Almoçava-se pela Cinelândia, dedicava-se algum tempo a afazeres particulares, voltava-se lá pelas quatro, trabalhava-se até às cinco ou cinco e meia. Aí o Rubem olhava para o Joel, o Joel olhava para o Millôr, o Millôr para mim, eu para os colaboradores que já tinham chegado. Ninguém queria ser o primeiro. Havia uns dez minutos de hesitação, bocejos, suspiros, protestos contra o governo. Finalmente o Braga não resistia, levantava-se espreguiçando, e abria a geladeira preta: "Estou cansado: vou tomar um uisquinho". Tínhamos os nossos luxos.
"O Brasil precisa de um gerente, e com ele esta droga (que é o nosso país) vai para a frente ou se afunda de uma vez" Ademar de Barros
Getúlio Vargas era o presidente. O preço do número avulso era de três cruzeiros, numa época em que a água no Leblon chegava a custar de cinco a dez cruzeiros a lata.
Vivemos vinte e dois números. O número 1 vinha com uma entrevista do general Estillac Leal a dizer que divisão no Exército só havia na boca dos entreguistas. No número 2 protestava-se contra a apreensão do número 1, pois um capitão no aeroporto tentara impedir a remessa dos exemplares de São Paulo. No número 3 Joel Silveira dizia que o integralismo estava fazendo tricô. O 4 denunciava os boquirrotos da Câmara. No número 5, em seção não assinada, o Braga dizia: "É difícil convencer o Joel Silveira, que fica telefonando como um chato lá da oficina, de que a semana tem sete dias e não podemos 'mandar logo essa matéria' quando ainda estamos na quinta-feira. Não é possível trabalhar desse jeito". O número 6 trazia histórias escabrosas de petróleo e admitia que o parlamentarismo andava de vento em popa. No número 7 Gustavo de Carvalho contava como fez em 1912, contra o Mangueira, o primeiro gol do Flamengo. O número 8 contava que por mil e duzentos cruzeiros mensais milhares de comerciárias passavam o dia atrás do balcão. No número 9 os barnabés continuavam reunidos para pedir aumento. No número 10, a propósito da UDN, Pedro Gomes dizia que a eterna vigilância era ameaçada pela eterna transigência. O número 11 falava que o jovem deputado Jango Goulart queria dar sentido trabalhista ao PTB, ao que constava. No número 12 Ademar de Barros dizia ao repórter: "O Brasil precisa de um gerente, e com ele esta droga (que é o nosso país) vai para a frente ou se afunda de uma vez". O número 13 achava que perder eleições no Brasil, pelo menos no governo de Getúlio, era bom negócio. Otávio Mangabeira, no número 14: "Ou o Brasil reage ou apodrece de vez". No número 15 eu ajeitava uma matéria estrangeira com um pormenor que me tinha saído por completo da cabeça: aos doze anos de idade, Adlai Stevenson matou acidentalmente com um tiro uma prima de quinze anos. No número seguinte, Millôr dizia que o pirata era mais fácil de distinguir do que qualquer atacadista hodierno, por usar chapéu tricórnio, pano preto sobre o olho e gancho de ferro em vez de mão. No número 17 o Sr. Aliomar Baleeiro afirmava em entrevista:
"O tubarão não se contenta com os lucros excessivos, as defraudações de impostos, a exploração dos consumidores e dos empregados etc. Ele tem sede de poder político e esperanças de conquistar o poder público como arma para o poder econômico. Como vive de vender e comprar, supõe que se compra tudo no mundo."
A revista ainda suspirou mais cinco números. Mas, enjoado do cemitério, fico por aqui.
Paulo Mendes Campos
O risco de oclocracia
O principal risco político no Brasil atual não é o despotismo; é a oclocracia, o regime da turba. Segundo Políbio, que escreveu no século 2 a.C., a oclocracia é a versão patológica do poder popular, em contraste com a versão positiva, a democracia. A degradação da democracia para a oclocracia ocorre quando um agente ou poder político empareda demais poderes políticos com apoio da multidão impulsiva, mobilizada por um discurso simplista.
Após décadas esmagados pela corrupção avassaladora que beneficiou os donos do poder, os brasileiros exigiram uma nova direção. Optaram pela plataforma conservadora-liberal de Jair Bolsonaro, que possui mandato para enfrentar os interesses organizados e a criminalidade, bem como para reduzir drasticamente a intrusão estatal.
O presidente tem avançado com essa agenda, com iniciativas como a PEC 6 da Previdência, a MP 881 da Liberdade Econômica, o pacote anticrime do Moro e o decreto que regulamenta o porte de armas.
Ao longo da história mundial, o poder foi tipicamente centralizado em um pequeno grupo de pessoas, inclusive na monarquia e na democracia representativa. Devido à concentração de poder, sempre havia o risco do descenso ao despotismo. De forma a prevenir a tirania, distribuiu-se o poder político entre certos Poderes institucionalizados (Executivo, Legislativo e Judiciário) e entre os cidadãos (por meio do voto), cada qual dotado de natureza e interesse particulares e esforçando-se para preservar seu próprio espaço contra a tirania dos demais.
Como dizia James Mackintosh sobre o regime de democracia representativa, cada agente político tem interesse em resistir às intrusões dos demais, caso contrário não há liberdade. E cada agente político tem interesse em cooperar com os demais, caso contrário não há governo funcional.
A premissa dessa distribuição de poder é que o exercício do autointeresse de cada poder político, ao controlarem-se mutuamente, melhor protege o cidadão comum tanto de seus governantes como de grupos organizados de seus concidadãos.
O regime de democracia representativa é falho, no entanto, pois o mecanismo de transmissão entre a vontade do cidadão expressa pelo voto e o que decide o Estado é deficiente, e consequentemente os Poderes possuem incentivo em cooperar para espoliar o cidadão. No Brasil, entre o Executivo e o Legislativo sempre faltou controle mútuo e sobrou cooperação simbiótica, em prejuízo da população.
O presidente está desafiando essa lógica de simbiose espúria. Pela primeira vez, os termos são distintos, o que gera atrito e frustração, pois a aprovação pelo Congresso não é mais semiautomática. É preciso negociar com o Congresso como em países desenvolvidos: de forma republicana.
No entanto, a estratégia de aliados do governo é a confrontação com vias a enfraquecer o controle parlamentar. O discurso tem sido a demonização do Congresso e do STF, o antagonismo frontal ao centrão e a convocação da manifestação de 26/5 com o objetivo de repactuar as forças relativas entre os Poderes, por meio desses métodos típicos da oclocracia.
Ocorre que o Brasil é maduro institucionalmente, e compete ao Congresso aprovar ou não as mudanças legais. Ademais, o centrão é composto por cerca de 300 deputados. Essa repactuação oclocrática não prosperará.
Embora não se perceba risco para a reforma da Previdência com potência adequada, o Congresso pode, em reação à ofensiva do Executivo, assumir o protagonismo e lamentavelmente reprovar reformas importantes. Apoio a agenda liberal do presidente Bolsonaro, mas não comparecerei à manifestação oclocrática.
Helio Beltrão
Após décadas esmagados pela corrupção avassaladora que beneficiou os donos do poder, os brasileiros exigiram uma nova direção. Optaram pela plataforma conservadora-liberal de Jair Bolsonaro, que possui mandato para enfrentar os interesses organizados e a criminalidade, bem como para reduzir drasticamente a intrusão estatal.
O presidente tem avançado com essa agenda, com iniciativas como a PEC 6 da Previdência, a MP 881 da Liberdade Econômica, o pacote anticrime do Moro e o decreto que regulamenta o porte de armas.
Ao longo da história mundial, o poder foi tipicamente centralizado em um pequeno grupo de pessoas, inclusive na monarquia e na democracia representativa. Devido à concentração de poder, sempre havia o risco do descenso ao despotismo. De forma a prevenir a tirania, distribuiu-se o poder político entre certos Poderes institucionalizados (Executivo, Legislativo e Judiciário) e entre os cidadãos (por meio do voto), cada qual dotado de natureza e interesse particulares e esforçando-se para preservar seu próprio espaço contra a tirania dos demais.
Como dizia James Mackintosh sobre o regime de democracia representativa, cada agente político tem interesse em resistir às intrusões dos demais, caso contrário não há liberdade. E cada agente político tem interesse em cooperar com os demais, caso contrário não há governo funcional.
A premissa dessa distribuição de poder é que o exercício do autointeresse de cada poder político, ao controlarem-se mutuamente, melhor protege o cidadão comum tanto de seus governantes como de grupos organizados de seus concidadãos.
O regime de democracia representativa é falho, no entanto, pois o mecanismo de transmissão entre a vontade do cidadão expressa pelo voto e o que decide o Estado é deficiente, e consequentemente os Poderes possuem incentivo em cooperar para espoliar o cidadão. No Brasil, entre o Executivo e o Legislativo sempre faltou controle mútuo e sobrou cooperação simbiótica, em prejuízo da população.
O presidente está desafiando essa lógica de simbiose espúria. Pela primeira vez, os termos são distintos, o que gera atrito e frustração, pois a aprovação pelo Congresso não é mais semiautomática. É preciso negociar com o Congresso como em países desenvolvidos: de forma republicana.
No entanto, a estratégia de aliados do governo é a confrontação com vias a enfraquecer o controle parlamentar. O discurso tem sido a demonização do Congresso e do STF, o antagonismo frontal ao centrão e a convocação da manifestação de 26/5 com o objetivo de repactuar as forças relativas entre os Poderes, por meio desses métodos típicos da oclocracia.
Ocorre que o Brasil é maduro institucionalmente, e compete ao Congresso aprovar ou não as mudanças legais. Ademais, o centrão é composto por cerca de 300 deputados. Essa repactuação oclocrática não prosperará.
Embora não se perceba risco para a reforma da Previdência com potência adequada, o Congresso pode, em reação à ofensiva do Executivo, assumir o protagonismo e lamentavelmente reprovar reformas importantes. Apoio a agenda liberal do presidente Bolsonaro, mas não comparecerei à manifestação oclocrática.
Helio Beltrão
Apertem os cintos, o presidente sumiu!
Em resumo, funciona mais ou menos assim: Bolsonaro dispara qualquer coisa sobre qualquer tema, assunto ou fato, e espera a reação correspondente; a depender de como público e imprensa reagem, ele projeta, retroativamente, o significado que melhor se ajuste à narrativa pretendida.
A demissão de Velez Rodriguez deu o tom: ele estava demitido quando a informação vazou. Em horas seria anunciado. No entanto, como a jornalista Eliane Cantanhede antecipasse a novidade, Bolsonaro achou por bem retardar o anúncio, com o nobilíssimo intuito de machucar a imprensa.
Outro exemplo é o decreto que, a rigor, libera o porte de armas para milhões de pessoas, feito sem estudo, cuidado ou debate. Mais uma dessas profecias autorrealizáveis: se fosse bem recebido, bem recebido seria.
Contudo, as reações à intempestividade do decreto não foram das melhores, e sua constitucionalidade está sendo questionada. É muito provável que seja derrubado no Congresso. Resultado? Bolsonaro se apressou a afirmar que acatará a decisão, caso seja mesmo inconstitucional.
Aqui, ele faz truque de mágico de bairro: de um lado, posa de obediente à Constituição (como se fosse mérito e tivesse outras opções); de outro, joga sobre o Congresso a responsabilidade pela eventual frustração da torcida organizada.
Esta semana Bolsonaro sancionou anistia de 70 milhões de reais a partidos políticos, mas jurou de pés juntos que tudo não passava de intriga da imprensa. O problema é que não, não se trata de intriga da imprensa. A decisão saiu no Diário Oficial, aquele jornalzinho de forrar gaiola de canário.
Agora, sua penúltima declaração (neste exato momento deve estar declarando outra coisa) é a de que o problema do Brasil é a classe política. Ouço daqui os aplausos da patuleia.
Me desculpem o latim, mas só mesmo a patuleia para aplaudir que um presidente eleito depois de sucessivos mandatos como deputado, e depois de apoiar os sucessivos mandatos de três dos seus filhos, reclame da classe política, como se a ela não pertencesse. Como se fosse um querubim, um mutante, um extraterrestre.
Se o problema do país é de fato a classe política, e sou tentado a concordar com o presidente, acredito que ele deveria começar dando o exemplo. Há profissões mais decentes, tenho certeza, há vocações mais nobres, estou convicto. Quem sabe ele não faz um bem a si mesmo e se descobre comediante, prestidigitador, encantador de serpentes?
Fica a sugestão.
Desgoverno
A imprensa que noticia fatos não é responsável pelo caos, parlamentares que divergem de pontos importantes não são responsáveis pelo caos.
A responsabilidade é de quem se propôs a governar para diminuir as desigualdades, para enfrentar o sistema, e faz a mais velha política tradicional de todos os tempos, enganando as pessoas e a populaçãoAliel Machado (PSB-PR)
Testando os limites
A manifestação a favor, uma incoerência em termos numa democracia, só serve a ditadores que precisam mostrar força popular, como Nicolas Maduro na Venezuela.
Por isso a manifestação do próximo fim de semana é contra o Congresso e os políticos, contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e contra a imprensa, justamente as instituições que têm como finalidade impedir que o Poder Executivo exorbite de seus poderes, sobretudo em um presidencialismo como o nosso, que dá preponderância quase imperial ao presidente da República.
Ainda bem que o presidente Bolsonaro, apesar de ter publicado em sua rede social uma convocação para a manifestação, avalizando, portanto, seus objetivos, desistiu de participar, como chegou a ser aventado. E orientou seus ministros a não irem. Ao chamar à noite o presidente do STF, Dias Tofolli, para uma conversa sobre a conjuntura atual, o presidente Bolsonaro deu um sinal claro aos seus seguidores, confirmando o que seu porta-voz dissera: não autoriza manifestações que oponham seu governo aos outros poderes da República.
O que tira um ar oficialesco da convocação, que só o comprometeria. Desde o início, aliás, o presidente deveria ter se apartado desses movimentos que querem emparedar os demais poderes do Estado, mas esse parece ser a sua natureza.
Como é de seu feitio, a meu ver numa tentativa de testar até onde pode ir, o presidente desde o início de seu governo vem voltando atrás em uma série de medidas polêmicas, rejeitadas, ou pela opinião pública, ou pelos líderes políticos. Um exemplo dessa atitude cambiante, que atribuo a uma tática, é a autorização, vislumbrada no decreto de liberação de porte de armas, para a venda de um fuzil antes classificado como de uso restrito às forças de segurança do Estado.
A fábrica Taurus, que supostamente é especialista em decifrar normas e legislações para ampliar seu escopo de venda, entendeu que o decreto assinado por Bolsonaro a autorizava a vender tal fuzil.
O mercado para esse tipo de arma, cujo modelo mais sofisticado, com rajadas de balas, é muito usado por traficantes e milicianos, é tão grande que existem 2 mil pessoas na fila de espera.
Diante da reação negativa da maioria, que não pertence ao nicho eleitoral dos Bolsonaros, o governo voltou atrás e garantiu que esse tipo de fuzil continua de uso restrito. Vai ser necessário agora mudar o texto do decreto pelo Congresso para que essa vedação fique explícita.
É certo que Bolsonaro foi eleito também por esse nicho eleitoral que se prepara para sair às ruas em sua suposta defesa, como se estivesse sendo coagido por “forças terríveis”, quiçá as mesmas que levaram Jânio Quadros a denunciá-las e renunciar.
Era também um líder populista que não se enquadrava nas limitações que a democracia impõe. Jânio pensou que o povo impediria sua saída, Bolsonaro tenta usar o povo para não ter que sair.
Não há como negar que ele foi eleito também para aprovar a flexibilização do porte e posse de armas, o que vem fazendo com rapidez impressionante, ou para interferir no ensino numa direção oposta ao que considera ser o “marxismo cultural”.
Só que ele não foi eleito apenas por aqueles que concordam com esses e outros projetos. E é preciso negociar com a sociedade, através do Congresso e da opinião pública vista de maneira ampla, bases para um consenso nessas questões delicadas de valores e costumes.
Nesse ponto voltamos ao fulcro do debate, às tais limitações institucionais que Bolsonaro parece querer superar pela pressão popular. Ele tem razão em criticar as corporações que impedem as mudanças, mas não conseguiu que sua própria corporação, a dos militares, abrisse mão de muitas das condições especiais que tem.
Sem dúvida é preciso levar em conta as características específicas da atuação das Forças Armadas, mas há também outras corporações com especificidades a serem analisadas, como a dos professores, e esse é o problema das mudanças, em todos os países.
A negociação deve ser feita, então pelo Congresso, e, mais uma vez tem razão, não pode se dar em troca de favores menores. Mas não é desafiando o Congresso que o governo vai conseguir fazer as reformas.
Uma pauta inimiga das liberdades
Não há dúvida de que tanto o Congresso como o Supremo estão coalhados de defeitos. Com frequência, a atuação dessas instituições merece reparos. Mas as críticas, num Estado Democrático de Direito, devem ter sempre como pano de fundo a melhora das instituições, e não a sua extinção. Trata-se de um ponto inegociável. Não existe democracia sem Congresso aberto, funcionando livremente. Não existe democracia sem Judiciário livre e independente.
É profundamente antidemocrático postular o fechamento dessas instituições sob o pretexto de que elas têm defeitos. Isso não é exercício da crítica, e tampouco da liberdade de expressão. É tentativa canhestra de emparedar instituições fundamentais para o Estado Democrático de Direito. Não há por que copiar aqui no Brasil o que se vê há algum tempo na Venezuela.
Em várias convocações, utilizou-se a hashtag #Artigo142Já, numa referência ao art. 142 da Constituição. Pelo teor das mensagens, a impressão é de que esse dispositivo constitucional permitiria fechar o STF. Trata-se de uma deslavada mentira.
O art. 142 refere-se às Forças Armadas e diz o seguinte: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
A Constituição atribui às Forças Armadas a tarefa de proteger – e não ameaçar, como fazem crer algumas mensagens de convocação para as manifestações do dia 26 de maio – os poderes constitucionais. Causa, portanto, imenso desserviço ao País quem difunde essa modalidade de fake news sobre a Constituição, num verdadeiro atentado contra a ordem democrática.
Diante desse estranho conjunto de objetivos, causou perplexidade o anúncio, feito dias atrás, de que o presidente Jair Bolsonaro compareceria às manifestações programadas para o próximo domingo. Ao assumir o cargo de presidente da República, ele jurou – não é demais lembrar – respeitar a Constituição. Ontem, Jair Bolsonaro disse que não irá participar dos atos do dia 26 de maio. Segundo assessores, o recuo teria a intenção de demonstrar “respeito pelo cargo e por suas responsabilidades”.
Infelizmente, o País não sabe o que o presidente Jair Bolsonaro fará de fato no domingo. Como ele tem feito questão de deixar claro, suas palavras pouco valem. Recentemente, ele disse que vetou uma lei, quando na verdade a tinha sancionado. O veto foi restrito a apenas um ponto.
“A imprensa está dizendo que eu sancionei uma lei para anistiar multas de R$ 60 milhões de partidos políticos. É mentira. Eu vetei. Grande parte da mídia só vive disso. Desinformando e atrapalhando”, disse o presidente Jair Bolsonaro no sábado. O Diário Oficial da União, na edição de segunda-feira, esclareceu os fatos. A Lei 13.831/2019, que, entre outros pontos, anistia partidos políticos, foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro no dia 17 de maio.
Que todas as palavras, e muito especialmente as da Constituição, sejam devidamente valorizadas e respeitadas. Não há liberdade onde vige a ameaça. Liberdade de expressão é para se expressar, não para acossar.
Era ilusão achar que Bolsonaro se livraria de Olvavo de Caralho e do filho Zero Dois
Quando o escritor Olavo de Carvalho ultrapassou todos os limites e atacou o ministro Santos Cruz e o general Villas Bôas, no último dia 7 o presidente Jair Bolsonaro foi “convidado” para um almoço fora da agenda com a cúpula das Forças Armadas no quartel-general do Exército, conhecido como Forte Apache. O que foi conversado nessa ocasião “nem às paredes confesso”, diria a grande cantora Amália Rodrigues. Sabe-se que o presidente enquadrou Olavo de Carvalho e os filhos, o Planalto até voltou a ter uma certa tranquilidade, mas foi uma ilusão julgar que Bolsonaro tinha se livrado das influências externas.
As manifestações desse domingo têm a grife do guru virginiano e dos filhos olavistas (ou “olavetes”, como o filósofo gosta de chamar os alunos). Convocá-las foi uma iniciativa que não resiste a análises e soou falso desde o início.
A decisão de promover essas manifestações surgiu nas redes sociais que apoiam o presidente, desde sempre comandadas por Carlos Bolsonaro, o Zero Dois, que não dá uma tossida sem pedir orientação a Olavo de Carvalho.
Vaidosamente, o chefe do governo aceitou a homenagem, que tem o objetivo de esculhambar Câmara, Senado e Supremo, ao defender a Lava Jato e o pacote anticrime do ministro Moro. É uma versão bolsonarista do Samba do Crioulo Doido, e estrategicamente ficaram de fora a reforma da Previdência e a dívida pública, porque há dúvidas se o povo apoia o governo em relação a esses explosivos temas.
Mas de repente surgiu no noticiário um tsunami chamado Janaina Paschoal, que ousou dizer que o rei está nu, julga-se “enviado por Deus” e convoca uma manifestação para ser elogiado pelo povo. As pessoas então começaram a acordar.
Como é óbvio que a deputado Janaina Paschoal tem toda razão, a cúpula do PSL se reuniu nesta terça-feira e decidiu que não vai apoiar a manifestação – quem quiser ir que vá. Realmente, é coisa de louco, só pode ter partido das mentes olavianas, que vivem em permanente delírio teórico e não respeitam a realidade.
Os autores da ideia não percebem que, por mais pessoas que as manifestações coloquem nas ruas, o resultado será sempre zero. Ao incentivar ataques ao Congresso, o presidente não ganhará adesão de nenhum parlamentar indeciso – pelo contrário, pode até perder apoio.
Em tradução simultânea, pode-se dizer que o capitão passou 28 anos na Câmara e não entendeu como aquilo funciona. Pensa que pode fazer com que o povo pressione os parlamentares, mas isso “non ecziste”, diria Padre Quevedo a Bolsonaro, que é volúvel em matéria de religião, não se sabe se é católico ou evangélico.
As manifestações desse domingo têm a grife do guru virginiano e dos filhos olavistas (ou “olavetes”, como o filósofo gosta de chamar os alunos). Convocá-las foi uma iniciativa que não resiste a análises e soou falso desde o início.
A decisão de promover essas manifestações surgiu nas redes sociais que apoiam o presidente, desde sempre comandadas por Carlos Bolsonaro, o Zero Dois, que não dá uma tossida sem pedir orientação a Olavo de Carvalho.
Vaidosamente, o chefe do governo aceitou a homenagem, que tem o objetivo de esculhambar Câmara, Senado e Supremo, ao defender a Lava Jato e o pacote anticrime do ministro Moro. É uma versão bolsonarista do Samba do Crioulo Doido, e estrategicamente ficaram de fora a reforma da Previdência e a dívida pública, porque há dúvidas se o povo apoia o governo em relação a esses explosivos temas.
Mas de repente surgiu no noticiário um tsunami chamado Janaina Paschoal, que ousou dizer que o rei está nu, julga-se “enviado por Deus” e convoca uma manifestação para ser elogiado pelo povo. As pessoas então começaram a acordar.
Como é óbvio que a deputado Janaina Paschoal tem toda razão, a cúpula do PSL se reuniu nesta terça-feira e decidiu que não vai apoiar a manifestação – quem quiser ir que vá. Realmente, é coisa de louco, só pode ter partido das mentes olavianas, que vivem em permanente delírio teórico e não respeitam a realidade.
Os autores da ideia não percebem que, por mais pessoas que as manifestações coloquem nas ruas, o resultado será sempre zero. Ao incentivar ataques ao Congresso, o presidente não ganhará adesão de nenhum parlamentar indeciso – pelo contrário, pode até perder apoio.
Em tradução simultânea, pode-se dizer que o capitão passou 28 anos na Câmara e não entendeu como aquilo funciona. Pensa que pode fazer com que o povo pressione os parlamentares, mas isso “non ecziste”, diria Padre Quevedo a Bolsonaro, que é volúvel em matéria de religião, não se sabe se é católico ou evangélico.
Bolsonaro não sabe governar
A informação de que ele não sabe o que faz é possível notar até nos pequenos detalhes. Cercado de crianças, ontem, ele disse que elas sustentariam a aposentadoria dos adultos ali presentes. O ministro Paulo Guedes teve que lembrar que o próprio governo propôs criar um novo sistema que em tese mudaria a lógica da repartição. Mais importante do que saber se ele vai aprovar a capitalização é constatar que ele não sabe que a incluiu no projeto da reforma. O seu decreto de armas tem tantas inconstitucionalidades que contra ele se levantam desde governadores até as companhias aéreas estrangeiras. Quando perguntado sobre a reação ao projeto, Bolsonaro declarou: “se é inconstitucional tem que deixar de existir”. Ora, ele deveria ter procurado saber da constitucionalidade do seu ato antes de editá-lo. Para isso existem, ou deveriam existir, o Ministério da Justiça e a Casa Civil.
Diariamente, Bolsonaro diz algo que contraria o espírito dos projetos que seu governo defende ou contradiz o que disse. De manhã, afirma que a “classe política” é o grande problema do país, de tarde, a adula. Navega por qualquer tema com a mesma superficialidade que demonstrava no exercício dos seus mandatos de deputado. Nenhuma surpresa nisso. Por que mesmo ele seria presidente diferente do parlamentar que foi?
A direita que o defendeu, e se surpreende agora com o péssimo desempenho da sua administração, demonstra, no arrependimento, a qualidade do próprio voto. Houve opções à direita que não colocariam o país nesta brutal incerteza em que se encontra.
O fato é simples: o presidente Bolsonaro não sabe governar. É essa a razão da sua performance tão errática nestes quase cinco meses. Sua relação tumultuada com o Congresso não deriva de uma tentativa de mudar a prática da política, mas da sua falta de aptidão para qualquer tipo de diálogo. Não sabe ouvir, não entende os projetos, não tem interesse em estudá-los. Repete frases feitas, porque são mais fáceis de decorar, como: “Tirar o governo do cangote do empresário”, “empresário no Brasil é herói”. E outras monótonas repetições.
O jargão “Mais Brasil e menos Brasília” não é apenas oco. Ele tem sido negado na prática. Este governo quer decidir de Brasília qual é o método de alfabetização em cada município, e do Planalto qual é o marketing do Banco do Brasil. Não fez rigorosamente nada para descentralizar coisa alguma. Não conseguiu entender até o momento qual é a lógica da formação de preços da Petrobras. Quando ele e seu ministro da Energia, Bento Albuquerque, afirmam que os preços serão mais baixos quando o país for autossuficiente em petróleo demostram que desconhecem que a estatal segue preços internacionais. Portanto, nem se a empresa produzir toda a gasolina e diesel consumidos internamente o país estará protegido das oscilações.
O texto avalizado por ele na última sexta-feira tem uma mensagem implícita contra o Congresso e as instituições democráticas. Inclui também a afirmação de que o Brasil é um “cadáver”. Com esse sentimento confuso de oposição a tudo, o presidente e os seus convocaram uma manifestação a favor dele mesmo, Bolsonaro. Lembra o chavismo, movimento iniciado por um coronel autoritário e que governou sempre convocando manifestações a favor do seu governo e demonizando todos os que se opunham aos seus métodos e decisões. Nada mais parecido com Hugo Chávez, em seu início, do que Bolsonaro.
Como Chávez e seu sucessor Maduro, Bolsonaro quer seus seguidores nas ruas, e nas redes sociais, constrangendo os políticos, os juízes e a imprensa, para culpá-los pela própria incapacidade de governar.
Vivendo com inimigos
Quem tem Bolsonaro, Carlucho, Ernesto Araújo, Abraham Weintraub, Ricardo Salles, entre outros, não precisa de adversários e inimigos. Já está cercado delesReinaldo Azevedo
A sutil persuassão
Não sei se é uma tática clássica ou conhecida de persuasão. Mas é, em tudo, semelhante à forma de Bolsonaro governar, parecendo transferir responsabilidades. Em vez de cuidar da segurança pública, “sugere” ao cidadão se defender por conta própria, botando um "revólver" no cinto. Em vez de cuidar da educação fundamental —já que declarou guerra ao ensino superior—, estimula os pais a “alfabetizar” pessoalmente os filhos, longe da professorinha comunista. Em vez de disciplinar as estradas e vias públicas, desliga os radares, evapora as multas e deixa a cada motorista a responsabilidade de atropelar e matar ou não.
Uma das últimas manifestações dessa tática foi há poucos dias, quando Bolsonaro divulgou o texto então ainda anônimo sobre a sua “impossibilidade de governar”. Ao repassá-lo na rede e pedir que fizessem o mesmo, já estava implicitamente endossando-o. Mas, ao final de sua mensagem, dizia: “Com o texto abaixo, cada um de vocês pode tirar suas próprias conclusões”.
Oferecer ao povo a ilusão de “tirar conclusões”, “refletir” ou “analisar” é uma forma sutil e eficiente de Bolsonaro assegurar apoio para seu cada vez mais óbvio objetivo: jogar o povo contra o Legislativo, o Judiciário e quem mais se meter na frente para, finalmente, governar sozinho.
Perdão pelo plágio, mas cada um de vocês pode tirar suas próprias conclusões. Analisem. Reflitam.
Flerte de Bolsonaro com a rua é 'terceiro turno'
Desde que o Ministério da Educação reacendeu o pavio das ruas, Jair Bolsonaro só fez bobagens. Em poucos dias aprontou o seguinte: Chamou estudantes e professores de "idiotas úteis", endossou um texto que diz que o Brasil é "ingovernável", avalizou um vídeo no qual um pastor declara que ele foi enviado por Deus para consertar o país e empurrou seus seguidores nas redes para uma manifestação anti-Congresso convocada para domingo.
Apoiador de presidente convocando manifestação popular é parte do jogo democrático. Presidente da República atiçando as ruas contra o Congresso é coisa que beira a insensatez. É como se Bolsonaro quisesse introduzir no processo eleitoral brasileiro um terceiro turno. No primeiro, prevaleceu como candidato antissistema. No segundo, despachou o petismo. No terceiro, tenta encurralar o Congresso. A conjuntura, que já era confusa, ficou ainda mais atrapalhada.
Um presidente que acaba de ser eleito para implantar um projeto de regeneração econômica e moral, em vez de negociá-lo na instância competente, recorre às ruas para desqualificar um Legislativo que saiu das mesmas urnas que o consagraram. A manobra é burra e incoerente. Bolsonaro flerta com a burrice ao injetar turbulência numa conjuntura que pede tranquilidade. Revela-se incoerente porque a jogada o deixa muito parecido com gente que ele sempre abominou.
No plano nacional, dois presidentes tentaram emparedar o Congresso. Em 1964, o esquerdista João Goulart, com suas reformas de base. Deu em golpe e ditadura militar. Em 1992, o embusteiro Fernando Collor, com sua "ilicitocracia". Deu em impeachment. No plano internacional, Bolsonaro parece inspirar-se no modelo venezuelano, no qual o coronel Hugo Chávez e o pupilo Nicolás Maduro deram brilho aos seus pendores golpistas com o verniz extraído das manifestações de rua. Deu no que está dando: ruína e baderna.
Era só o que faltava: um Bolsonaro com cheiro de naftalina pré-64, aparência "collorida" e hábitos venezuelanos.
Retórica de Bolsonaro já afeta direitos humanos
A diretora executiva da Anistia Internacional no Brasil, Jurema Werneck, disse que os temores de desrespeito aos direitos humanos começam a se justificar. "O governo de Bolsonaro tem adotado medidas que ameaçam o direito à vida, à saúde, à liberdade e à terra de brasileiros que, estejam no campo ou na cidade, desejam uma vida digna e livre do medo", afirmou.
Já a especialista para as Américas no escritório alemão da Anistia Internacional, Maja Liebing, disse observar "com grande preocupação" algumas das mudanças legislativas que o governo Bolsonaro fez ou propôs nos seus primeiros cinco meses. "Além disso, o discurso contrário aos direitos humanos do presidente Bolsonaro poderia ser usado como uma legitimação para violações dos direitos humanos de determinados grupos da população."
"Pedimos ao governo brasileiro que respeite os direitos humanos no Brasil e, em particular, que proteja grupos vulneráveis, como os povos indígenas e os defensores dos direitos humanos", concluiu Liebing.
As medidas e ações do governo de Jair Bolsonaro listadas pela Anistia Internacional como fonte de preocupação na ação lançada nesta terça-feira são:
– A flexibilização da regulação sobre o porte e a posse de armas, que pode contribuir com o aumento do número de homicídios no Brasil.
– A nova política nacional sobre drogas, que eleva o caráter punitivo de tais políticas e atenta contra o direito à saúde.
– O impacto negativo sobre diretos de povos indígenas e quilombolas.
– A tentativa de ingerência indevida no trabalho das organizações da sociedade civil que atuam no Brasil.
– Diversas disposições do pacote anticrime (como, por exemplo, a flexibilização da regulação da legítima defesa para o uso da força e de armas de fogo por parte da polícia).
– Medidas contrárias aos direitos das vítimas à verdade, justiça e reparação pelos crimes de direito internacional cometidos pelo Estado durante o regime militar.
– Ataques à independência e autonomia do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
– A manutenção da retórica antidireitos humanos pelas autoridades de alto nível, incluindo o presidente da República, o que poderia legitimar diversas violações aos direitos humanos.
Segundo a organização, facilitar a aquisição de armas e de munição num país onde muitas pessoas já são mortas anualmente por armas de fogo representa um desenvolvimento preocupante.
A Anistia também criticou o pacote anticrime lançado pelo governo e disse que ele fomenta o uso da força e de armas de fogo pela polícia, o que pode gerar uma violência ainda mais letal.
A organização também denunciou decisões políticas que violam os direitos das populações indígenas e afrobrasileiras. A Anistia citou a transferência da responsabilidade pela demarcação de terras indígenas da Funai para o Ministério da Agricultura e alertou que a violação das terras indígenas pode resultar num aumento da extração ilegal de madeira na Amazônia.
Por fim, a Anistia afirmou temer um monitoramento injustificado do trabalho das organizações não governamentais. A primeira medida provisória assinada por Bolsonaro, a MP 870/2019, atribuiu ao governo federal a tarefa de monitorar e coordenar as atividades de ONGs e de organismos internacionais em território brasileiro.
A Anistia concluiu seu comunicado afirmando que o Brasil é um dos países mais perigosos para ativistas dos direitos humanos em todo o mundo, especialmente na área ambiental e em relação à posse de terras.
Quanto pior, melhor
Parece que este é o propósito do próprio governo: quanto pior, melhor. Pensa o governo que a vitória nas eleições de outubro de 2018 lhe dá respaldo a encher as praças, ruas e avenidas deste país, com manifestações em favor de Jair BolsonaroJorge Béja
A marcha da loucura
E eu acredito que não existem precedentes na história das democracias mundiais de um Governo que cinco meses após sua eleição e que deveria viver sua lua de mel decide mobilizar o país em sua defesa ao se sentir sitiado pelos que, segundo ele, tentam impedi-lo de governar.
As manifestações, normalmente, são organizadas pelas oposições para exigir que as promessas de suas campanhas eleitorais sejam cumpridas. Curiosamente, no Brasil, até agora, a oposição parece na verdade muda e desunida contra um Governo que se apresenta incapaz de entender o que a sociedade pede dele.
Não é de se estranhar que a manifestação que está sendo organizada nas redes sociais pelas hostes mais aguerridas e violentas de Bolsonaro seja batizada também como “a marcha do medo”. Parece que de repente os demônios foram liberados e se fala sem pudor de “incendiar Brasília”, de “fechar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal”, que seriam a grande meretriz da política. Há até um general da reserva, Luiz Eduardo Rocha Paiva, que acha natural que se não deixarem Bolsonaro governar “estaríamos dispostos a pegar em armas para defender a liberdade e a justiça”, incitando a uma guerra civil. Curiosamente o general destoa da atitude de moderação que até agora demonstrou o restante de seus colegas militares.
Essa ideia de incendiar os outros poderes que dividem com o presidente a liderança e governabilidade do país nos faz lembrar como, já entre os romanos, imperadores como Nero usaram da artimanha de provocar incêndios de verdade, como o que destruiu meia Roma, para jogar sua responsabilidade sobre seus supostos inimigos.
No caso de Nero, o imperador aproveitou o incêndio de Roma para acusar os cristãos de sua autoria, considerados como inimigos do Império. Conhecemos os resultados: aqueles cristãos, dentre os quais estavam os apóstolos, Pedro e Paulo, foram martirizados, queimados na fogueira, crucificados e jogados aos cachorros para que fossem devorados vivos.
É difícil encontrar no Brasil precedentes de uma alucinação semelhante à que esse Governo vive, que vê por todos os lados inimigos e intrigas para derrubá-lo antes ainda de ter iniciado seu caminho. É difícil encontrar no passado um clima de política baseado na negatividade, na raiva e no ódio, como se de repente o Brasil e os brasileiros tivessem se transformado em monstros irreconhecíveis e inimigos de seu próprio país.
É difícil encontrar um grupo político tão apaixonado pela força das armas em guerra contra inimigos imaginários. Sua bandeira é a da desconfiança e da caça aos que não se ajoelharem diante de seus novos preceitos mortificadores de liberdades, que pretendem calar os que tentam ver o mundo e a vida com olhos que não sejam os seus.
A manifestação prevista para 26 de maio não será mais uma. Deixará marcas profundas, triunfando ou fracassando. O Brasil ficará perigosamente dividido. No caso de o Governo conseguir encher as ruas do país gritando contra os pilares que hoje sustentam a democracia, não é difícil prever que os conflitos se agravarão. Seria um passaporte para que um Governo autoritário imponha suas leis com mão de ferro.
E se fracassar? Se não forem capazes de mobilizar mais gente do que o fizeram os jovens estudantes, e se não conseguir ser pacífica? Nesse caso, o mito Bolsonaro deveria ter a grandeza de admitir seu fracasso, de renunciar e passar o comando a alguém que seja capaz de reunificar um país cada dia mais perigosamente cético da política e da democracia.
Existe o perigo real de que essa guerra ideológica e essa desconfiança nas regras democráticas também acabem arrastando o país a uma crise econômica que quebraria a já martirizada caravana de milhões de pobres e desempregados que acabam sendo sempre o alvo das loucuras dos que deveriam protegê-los.
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