segunda-feira, 22 de novembro de 2021

E no país dos cheques...

 


Blearghh! em uníssono

Leitores escreveram apoiando uma onomatopeia que usei outro dia (29/10) ao descrever a sensação de asco diante de alguma nova agressão de Jair Bolsonaro ao Brasil. A onomatopeia era "Blearghh!", criada por Jaguar no Pasquim dos anos 70 para identificar o som de um vômito. Jaguar, o maior cartunista brasileiro de todos os tempos e a quem devemos uma edição abrangente de sua obra, fez dela a trilha sonora de seu personagem Gastão, o Vomitador, que assim expressava sua reação ao que acontecia no Brasil da ditadura. O Brasil de Bolsonaro obrigaria Gastão a vomitar de hora em hora.

Não sei de onde Jaguar tirou o "Blearghh!", mas é perfeito. Parece inglês, mas dicionários como o "Webster" e o "Cambridge" não o registram. Donde poderia muito bem ser incorporado ao português, e com mais propriedade do que outras interjeições em inglês que estão indevidamente se impondo por aqui. Ninguém mais fala "Epa!" —fala "Oops!". Ninguém exclama "Pô!" ou "Genial!", mas "Uau!", tradução de "Wow!". E ouço dizer que, nas redes sociais, usa-se "Cof! Cof!" —"Cough! Cough!" mal pronunciado— para insinuar tosse no sentido de ironia.

É verdade que os gibis americanos sempre nos impuseram essas coisas. "Brrr!" é sentir frio. "Gulp!" é engolir em seco. "Boo!" é dar um susto. "Bang!" é um tiro ou explosão. "Hmmm..." é pensar, ponderar. "ZZZ" é dormir. Mas a submissão ao colonizador tem limites. Em breve estaremos gritando "Ouch!" [autch] e não "Ai!" a uma martelada no dedo e fazendo "Atchoo!" em vez de "Atchim!" ao espirrar.

Por que soluções com séculos de eficácia comprovada são substituídas por outras piores? O último brasileiro a se manter fiel a "Rá-rá-rá!" ao rir por escrito é o nosso José Simão. O pessoal hoje prefere "Rsrsrsrsrs", que para mim soa como um rosnado, ou cacareja em uníssono escrevendo "Kkkkkkkkkk!".

O uníssono deveria ser reservado ao "Blearghh!" e dirigido a —você sabe.

Amazônia morre diante de nós

Por mais tempo que eu viva, jamais esquecerei o líder indígena Piraima’á, da Aldeia Juriti, falando em tom aflito. “Eles estão matando as árvores, eles estão nos matando.” Foram 745 milhões de árvores que tombaram em um ano para que o número de 13.235 km2 desmatados fosse possível. No governo Bolsonaro foram derrubados um bilhão e novecentos milhões de árvores. Esse é o projeto Bolsonaro. A simbiose entre árvores e gente que eu ouvi do líder indígena, em 2012, explica o Brasil e sua tragédia. O que está ocorrendo não é tolerável. Diante dos nossos olhos Bolsonaro executa o projeto de destruição e morte. Este governo está matando as árvores, ele está nos matando.

Os cálculos de quantas árvores morreram neste ano e neste governo foram feitos por Tasso Azevedo, do MapBiomas. Assim fica mais fácil entender a imensidão da tragédia que vivemos. A informação da alta de 21,9% no desmatamento em um ano foi, além de tudo, ocultada. O mundo viu o ministro do meio ambiente falar manso na COP, como se fosse diferente do seu antecessor e mentor. O presidente voou para as arábias para mentir melhor no meio de ditadores e afirmar que a floresta está intocada.


A Amazônia sangra e morre diante de nossos olhos. E toleramos. Os indígenas têm as suas terras invadidas por garimpeiros que desmatam e contaminam as águas da maior bacia hidrográfica do mundo. E toleramos. O governo mente em nosso nome para o mundo. E toleramos. Dados são escondidos por ministros. E toleramos. Deputados e senadores legalizam o crime dos grileiros, ladrões da terra nossa. E toleramos. As Forças Armadas vão para dentro da floresta, a um alto custo, para combater o desmatamento, e ele cresce. Toleramos.

O projeto de destruição e morte de Jair Bolsonaro se espalha pelo Brasil e fulmina os seres vivos. Diante da pandemia, o presidente trabalhou para espalhar o vírus mortal. Bolsonaro debochou dos mortos e dos doentes. “Maricas”, ele disse. Conspirou contra a vida usando o aparelho do Estado. E toleramos. Políticos corruptos protegem o presidente porque estão na fila para receber o dinheiro dos nossos impostos em nacos do Orçamento através de emendas que legalizam a corrupção.

Para derrubar tanta mata assim em um ano é preciso ser um projeto de governo, ter a cobertura do Congresso em leis que estimulam isso, demolir o aparato estatal de proteção da floresta e dos indígenas, ter a ajuda de um procurador-geral. O Congresso é cúmplice. O Procurador-Geral da República é cúmplice. Os ministros são cúmplices. Os generais são cúmplices. Eles governam o Brasil para o despenhadeiro moral, ambiental, climático e humano.

As empresas pintam de verde as suas propagandas, mas elas estão neste país da morte da floresta. Se são todas sustentáveis, seriam as partes melhores do que o todo? É preciso que se levantem mesmo que seja em defesa de seus próprios negócios contra o governo que nos tira do mundo e transforma o Brasil em criminoso ambiental. Não haverá mercado para os produtos brasileiros. Uso esse argumento porque talvez funcione com o capital brasileiro. A Europa começou na última semana a se fechar para produtos que não estejam livres de desmatamento e degradação da floresta. Os Estados Unidos e a China assinaram um acordo se comprometendo a também seguir o caminho de banir produtos que venham do crime ambiental. O cerco está se fechando, senhores do capital.

As empresas colorem de preto as suas propagandas, fingindo terem em seus quadros de direção pessoas pretas. E não há uma única mulher negra na direção de qualquer empresa grande brasileira. Os homens negros são uma minoria ínfima. Enquanto isso o governo instala dentro do setor público, exatamente no órgão criado para a promoção da maioria discriminada, pessoa capaz de ofender diariamente os pretos e as pretas do Brasil. E toleramos.

A destruição da Amazônia é parte de um projeto muito maior que mata pessoas e sonhos e valores e árvores. Que exclui e regride. A letra da música “Maninha”, de Chico Buarque, tem um verso assim: “Pois hoje só dá erva daninha no chão que ele pisou.” Isso me lembra o atual governo. Meu irmão Cláudio, na ditadura, costumava me consolar cantando essa música. Em outro verso a música diz: “Se lembra do futuro que a gente combinou.” Não podemos esquecer do futuro que a gente combinou, no qual a floresta e seus povos seriam protegidos. Escrevemos isso na Constituição.

Governar

Os garotos da rua resolveram brincar de Governo, escolheram o Presidente e pediram-lhe que governasse para o bem de todos.


– Pois não – aceitou Martim. – Daqui por diante vocês farão meus exercícios escolares e eu assino. Clóvis e mais dois de vocês formarão a minha segurança. Januário será meu Ministro da Fazenda e pagará meu lanche.

– Com que dinheiro? – atalhou Januário.

– Cada um de vocês contribuirá com um cruzeiro por dia para a caixinha do Governo.

– E que é que nós lucramos com isso? – perguntaram em coro.

– Lucram a certeza de que têm um bom Presidente. Eu separo as brigas, distribuo tarefas, trato de igual para igual com os professores. Vocês obedecem, democraticamente.

– Assim não vale. O Presidente deve ser nosso servidor, ou pelo menos saber que todos somos iguais a ele. Queremos vantagens.

– Eu sou o Presidente e não posso ser igual a vocês, que são presididos. Se exigirem coisas de mim, serão multados e perderão o direito de participar da minha comitiva nas festas. Pensam que ser Presidente é moleza? Já estou sentindo como este cargo é cheio de espinhos.

Foi deposto, e dissolvida a República.
Carlos Drummond de Andrade. "Contos Plausíveis"

O governo Bolsonaro é uma fonte constante de más notícias

O governo Bolsonaro é uma fonte constante de más notícias. Se uma vacina contra a Covid-19 é um bem para todos, pois evita o contágio mesmo dos que não acreditam nele, é um contrassenso que se proíba o passaporte sanitário para aprovação de um projeto na Lei Rouanet. Pobres produtores de cultura do país! Além do desgastante conflito com os homens dos serviços de cultura, ainda terão que enfrentar agora os dispositivos tolos que vão impedir que façam o que desejam fazer com seus filmes, livros, poemas, canções, peças de teatro, novelas e tudo mais.

Como escreveu Gregório Duvivier, hoje não é exagerado dizer que o presidente não suporta os brasileiros. Não só ele nos odeia, como tenta acabar com a gente de todas as formas. É como se passasse o tempo pensando em como cortar nossa onda e zerar nosso entusiasmo, até que nos tornemos um núcleo de pensamento domesticado que não lhe dê mais trabalho como fonte de ideias novas. E essa campanha liderada pelo presidente contra a vacinação é simultânea à sua campanha pelo armamento civil. “O vírus pode estar partindo — os fuzis vão ficar”, diz Gregório Duvivier.


O ódio sem motivo evidente e, claro, típico da direita que se espalha pelo mundo, não é mais resultado de ideologia evidente e clara. Há poucos dias, soubemos de mais uma alegre aventura de jovens Talibãs, que mataram três músicos sem religião que tocavam no casamento de um casal de amigos de escola. Do jeito que estão indo essas ideias pelo mundo afora, temo pelo que pode acontecer no Brasil com o fim da pandemia além, espero!, do fim do governo Bolsonaro, outro criador (às vezes inconsciente) de certos mitos do mal.

Eurípedes Alcântara, aqui mesmo no Globo, escreveu que “temer o outro, maximizar os riscos trazidos pelo desconhecido, é parte de nossa natureza”. Por isso têm tanto valor religiões, filosofias e obrigações trazidas pelo convívio em sociedade quando ajudam a superar esse pecado original da espécie, fazendo da colaboração e não da competição, o grande recurso que nos trouxe até aqui como uma mesma gente.

Depois de uma pandemia em que nos afastamos compulsoriamente uns dos outros, durante tanto tempo, a volta será sempre a de uma magna e dolorosa dúvida sobre como trataremos e seremos tratados pelos seres humanos em volta de nós, mesmo aqueles que já foram nossos amigos de fé. Já escrevi aqui, nessa mesma coluna, que os dois sentimentos humanos que mais desenvolvemos, nesse período longe da ciranda humana que sempre nos cercou e nos tirou para dançar durante tempos “normais”, foram a solidão e a solidariedade. Foi a primeira que nos levou à segunda, como única forma decente de sobrevivência.

Faz parte da tradição utópica da humanidade pensar que, sempre que um galo canta, o sol vai se levantar para que o dia nasça. Porém, o mistério do galo não está na ilusão de que ele seja capaz de fazer o sol nascer; mas em que seu canto anuncia a existência do sol, que ainda está por nascer. A felicidade vai estar sempre no futuro e nós a encontraremos amanhã. Essa é a ideia básica da vida humana, é isso que nos faz ir em frente. O abraço de Bolsonaro ao casal von Storch, que veio da Alemanha para afagá-lo como novo líder de uma nova direita internacional nascente e vagabunda, é um sintoma desse futuro sem garantias.

Gosto de ler colunas de jornal com notícias do passado, elas podem nos ajudar a compreender o presente. Na primeira página do Correio da Manhã do dia 12 de agosto de 1937, podia-se ler que os fascistas haviam desfilado em Roma, sob cartazes em que Benito Mussolini, o líder do fascismo, declarava: “Só um povo armado é forte e livre”. O mesmo que Bolsonaro disse em Brasília, quando liberou a importação de armas no país.

A vaca do Brasil

 


Bolsonaro cortou despesa com servidor civil e gastou mais com militar

Jair Bolsonaro disse que reajustaria o salário de todos servidores federais. Ministros e governismo em geral disseram que não há dinheiro. Bolsonaro levou invertida até do centrão. Claro: se saísse o aumento, não sobraria nada para financiar emendas parlamentares extras.

Bolsonaro então quer dar aumento pelo menos para militares e policiais federais. Sempre teve mentalidade de vereador das milícias e sindicalista militar.

O gasto federal com salários de servidores civis (na ativa) caiu sob Bolsonaro. Desde o começo de 2020, quanto este governo passou a ter força maior sobre o Orçamento, essa despesa diminuiu 8% em termos reais (descontada a inflação; gasto anualizado), de fato um espanto. A despesa com o pessoal militar na ativa aumentou 5,5%, porém.

A baixa da despesa civil se deve à combinação de redução de quadros com congelamento salarial. Pode até ser que o enxugamento tenha a ver com algum plano de aumento de eficiência, não mero arrocho improvisado (este jornalista não encontrou análise independente que faça balanço do período).

Por que a despesa com o pessoal militar da ativa aumentou? Porque receberam aumento especial de Bolsonaro. Por que não houve enxugamento por outras vias? Cerca de 6 mil militares fazem um extra no governo. Não deve estar faltando gente nas Forças Armadas.

Bolsonaro cumpre partes essenciais de seu programa. Dá dinheiros e boca rica para militares. Faz propaganda da ditadura militar e de torturadores. Quer levar esse revisionismo bárbaro até para provas de vestibular.


Prometeu que ocuparia o governo com os bucaneiros da floresta, sua versão da doutrina militar da "soberania nacional" sobre a Amazônia. Missão cumprida. O país regrediu 15 anos no controle do desmatamento, fora a razia nas instituições de preservação ambiental.

Levou uma década para o país conter parte do bota-abaixo amazônico. Quando Lula da Silva (PT) tomou posse, 2003, iam para o chão 25 mil quilômetros quadrados de floresta por ano. Em 2014, eram 5 mil quilômetros quadrados, ainda um horror, mais que o triplo da área da cidade de São Paulo. Nos últimos 12 meses, se foram 13 mil quilômetros quadrados, outro ano de recorde bolsonarista. De quebra, o governo escondeu os números para Bolsonaro não causar ainda mais revolta na reunião do clima na Escócia.

Isso é coisa de ditadura, como foi coisa de ditadura esconder o número diário de mortes na epidemia por tempo bastante para que não aparecessem no "Jornal Nacional" da Globo, em 2020, ideia dos generais da morte do Planalto e da Saúde. Os meios de comunicação se juntaram e passaram a publicar a estatística, como fazem até hoje.

A educação está sob o comando de obscurantistas e fanáticos que desmontam o ministério e se dedicam a barrar perguntas de vestibular com motivos que parecem os dos censores da ditadura militar. O Ministério Público e o Tribunal de Contas da União enfim vão dar uma olhada nas atrocidades do ministério.

Quando se fala em polícia no governo Bolsonaro, ou se trata de incentivo a motim ou de investigação sobre interferências indevidas. Programa de segurança pública? É um cadáver que Sergio Moro levou consigo quando foi posto para fora do governo. Não nasceu outro.

Os oficiais-generais que ficaram nos quarteis agora se dizem "decepcionados" com Bolsonaro, que não eram bolsonaristas, apesar da esteira que leva generais do Alto Comando do Exército ao Planalto. Agora são moristas.

Sim, este é também um governo do partido militar, na boquinha e na ideologia, sócio do centrão. Os generais ficaram quietos. Tentam sair de fininho da casa que ajudaram a explodir. Levam intactos os aumentos de salário.

Bolsonaro e a extinção da espécie humana

Bolsonaro disse no Oriente Médio que a Amazônia não pega fogo porque é uma floresta úmida. E disse tranquilamente, apesar de tantas evidências colhidas por satélites e depoimentos visuais.

Em vez de repetir que Bolsonaro é cínico e mentiroso, continuo tentando entender como essas barbaridades acontecem.

Quando li “Guerra pela eternidade”, de Benjamin R. Teitelbaum, pensei em articular um roteiro de estudo que pudesse explicar para mim fenômenos como a vitória de Trump e Bolsonaro, para mencionar apenas dois nomes.

A impressão que tenho é que a extrema direita, apesar de ter apenas um milionésimo da capacidade de formulação da esquerda, compartilha com ela, ao que me parece, duas ilusões essenciais: que a História tem um sentido e que há atores predestinados a realizá-la. O sentido e os atores não coincidem, uma vez que uma se dedica a impulsionar o rumo da História; outra, a neutralizar sua trajetória materialista.

Steve Bannon manifestou sua simpatia pelos americanos do interior, como se houvesse nas suas convicções e modo de vida grandes qualidades a valorizar; Olavo de Carvalho, por sua vez, admiração por fervorosos grupos religiosos.</p>
<p>O ex-chanceler Ernesto Araújo defendia abertamente uma espécie de recomeço universal em que os valores espirituais prevalecessem e via em Trump a encarnação do herói que conduziria essa batalha.

Essas ilusões sobre o rumo da História acabaram romantizando o homem comum, marginalizado pela globalização e pela modernidade.

Não vou discutir o sentido da História. Mas a romantização do homem comum, “gente como a gente” que diz besteiras sinceras, é muito perigosa. Acaba confundindo o homem comum com o idiota que diz que a pandemia é uma gripezinha e que a Amazônia não queima porque é úmida.

Recentemente, Ernesto Araújo, numa alusão ao filme “Matrix”, disse que Bolsonaro tomou a pílula azul e se tornou base do Centrão. Tomar a pílula azul significa decidir viver com as ilusões do sistema. O ex-chanceler disse ainda que, nas eleições, a maioria tomou a pílula vermelha, o que significa enxergar a realidade e fazer a grande transformação.

Vermelha, Araújo? Por muito menos, os militares em 1964 mandaram queimar o romance “O vermelho e o negro”, de Stendhal.

Isso serve apenas para confirmar a hipótese que inspirou este texto.

Os que viam em Bolsonaro o líder de uma revolução espiritual que sacudiria as bases do materialismo na verdade não tomaram a pílula vermelha, mas sim um poderoso ácido amarelo, um Califórnia Sunshine, e começam a despertar de sua viagem.

Bolsonaro sempre foi um deputado fisiológico, e seus aliados no mundo religioso são vorazes pastores que, só em Angola, retiraram US$ 120 milhões por ano, transferindo-se para a África do Sul.

Bolsonaro designou um deles para gerir essa fortuna na África do Sul, na condição de diplomata brasileiro. Os sul-africanos simplesmente rejeitaram essa indicação.

Não me agrada criticar sonhadores que vislumbram um futuro luminoso, em que o homem não vai mais explorar o homem. O mesmo vale para aqueles que veem a glória nas tradições do passado, livres das amarras de um materialismo brutal.

Quando muito intensas, essas fantasias produzem aberrações como Kim Jong-un ou Bolsonaro.

É apenas muito preocupante ver tanta gente dançando diante do abismo, no momento em que não perderam o contato com a dura realidade. Lutam, sem grande êxito, não para levar a humanidade a uma dessas visões de paraíso, mas para salvá-la dos próprios erros acumulados.

Os seres humanos sempre foram limitados e não se deram conta dos limites dos próprios recursos naturais. As ilusões que levam idiotas ao poder simplesmente agravam seriamente o perigo real: a extinção de todos nós, sonhadores ou modestos realistas.
Fernando Gabeira

Brasil: a iminência do apocalipse ou a redenção democrática?

Era o segundo governo de Lula. Num almoço de mulheres no Fasano, a dona de uma rede nacional de shopping centers dizia que eles nunca haviam vendido tanto quanto naqueles anos. O governo era criticado pelos seus opositores por favorecer os bancos, e os banqueiros pareciam amar Lula, com quem confraternizavam onde estivessem. A indústria brasileira tinha seu representante na vice-presidência, José Alencar Gomes da Silva, e as federações patronais também pareciam contentes.

Lula não perseguia a mídia, seu governo anunciava, privilegiando os grandes grupos de imprensa, não havia retaliações aos divergentes, como hoje vemos acontecer. Nos governos de Dilma, sequer foi encaminhado ao Congresso o projeto de regulação da mídia, formatado por Franklin Martins ao fim do segundo mandato de Lula, condizente com o que é feito nos países do mundo todo.

Lula é um conciliador por natureza. É altamente considerado pelos chefes de estado do resto do mundo, é admirado, visto como um igual. Semana passada, em Bruxelas, ele mereceu aplausos de pé, longos e sucessivos, em encontro do Parlamente Europeu com lideranças latino americanas. Mereceu recepção de chefe de estado no Elysée, com a marcha da guarda do palácio, e o presidente Macron descendo os degraus para ir busca-lo (e uma hora depois levá-lo) no carro. É bem visto pela mídia internacional, inclusive pelas publicações de economia. Por que esse ódio da mídia corporativa brasileira contra ele? Esse apagamento? Esse silêncio a seu respeito? Por que estavam sendo destinados a ele apenas breves momentos, em canais por assinatura, às altas horas da noite, e quando isso acontecia? E isso só foi revertido no sétimo dia da agenda da viagem de Lula, depois da grande grita nas redes sociais, da indignação, e da chacota feita, comparando a vasta cobertura da visita pelos jornais estrangeiros e a cobertura Zero pela mídia brasileira.

Atribuem a Lula um radicalismo que ele, na prática, nunca demonstrou. Lula não é um radical. Não é comunista. É um liberal, falando francamente. Alguns o identificam como Liberal Periférico. Sua política externa é afinada com as dos demais países. Respeitado por todos. Até George W. Bush gostava dele! Em poucos dias na Europa, foi recebido pelo vencedor das eleições na Alemanha, Olaf Scholz, esteve com o líder da Social Democracia, Martin Schulz, foi aclamado no Parlamento Europeu, elogiado por Zapatero como “o que mais combateu a pobreza”, trocou ideias com o Nobel da Economia, Joseph Stiglitz, foi recepcionado com batucada brasileira pelos alunos do Instituto SciencesPo, em Paris, onde almoçou com a Prefeita. Depois da França, participa hoje de seminário de Cooperação multilateral e recuperação pós-covid, em Madri, e tem agenda com o primeiro-ministro.

Lula não sai procurando briga, não dá banana e joga a casca no chão, não desanca país dos outros, negocia com todos. Internamente, é bom para o nosso povo, se compadece dos pobres. Não politiza temas sérios, como Saúde, Cultura, Educação. Desenvolveu políticas socais mínimas, sem “exagero”, podia ser muito mais – o Bolsa-Família, como diriam os americanos, eram “peanuts” em nosso orçamento. E mesmo assim suas políticas públicas trouxeram notáveis benefícios sociais e econômicos, foram copiadas em vários países, se tornaram referência.

O saldo de seu Minha Casa Minha Vida foram casas para milhões de brasileiros, e novas grandes fortunas para poucos, como Rubens Menin, dono da MRV Engenharia, proprietário da CNN Brasil, o também mineiro Ricardo Gontijo, dono da Direcional Engenharia, os donos da Construtora Tenda, mineira também, os da Rossi Residencial, alguns desses empresários declarados admiradores de Bolsonaro.

As ditas pautas identitárias, responsabilizadas por parte da rejeição ao PT, foram muito mais de Dilma do que de Lula. Assim como foi o relatório da Comissão da Verdade, que tanto enraiveceu os militares de pijama do Clube Militar.

Lula jamais perseguiu os diferentes, nem exigiu fidelidade ideológica aos que prestam serviços ou vendem serviços ao governo. Muito menos àqueles que recorrem aos financiamentos e incentivos de bancos públicos.

É simplismo achar que essa aversão se deve ao preconceito da burguesia por Lula ter sido um sindicalista, operário, nordestino, de origem muito pobre?


A lenda de que o PT inventou a corrupção no Brasil foi tão repetida que se tornou verdade. Sabemos que os casos de corrupção no Brasil remontam a Pero Vaz de Caminha, quando os portugueses davam espelhinho e recebiam pepitas de ouro. E sabemos que, no ranking da corrupção dos partidos políticos brasileiros, o PT é um dos melhores colocados, isto é, está em penúltimo lugar. Sem esquecer que foi o PT que criou o Portal da Transparência e os mecanismos que permitiram investigações e punições de casos de corrupção. Por que isso é ignorado? Por que as impropriedades, vamos chamar assim, da Lava Jato, de Sergio Moro, do TRF-4 são ignoradas? As delações e provas falsas? Os processos contra Lula, comprovadamente mais ocos do que cheque voador? E ainda a ironia de as notas fiscais das reformas do dito “tríplex do Lula” e do sítio, ambos em São Paulo, serem do comércio de Curitiba…

Sergio Moro se lança como terceira via, fazendo soar as fanfarras de sua fada madrinha, a Globo, com o muito provável respaldo do alto oficialato das Forças Armadas, simpáticas ao ex-juiz sob suspeição e agastadas com Bolsonaro – o embrulho veio muito pior do que a encomenda.

Generais não deverão poupar apoio ao maringaense, até porque nesses casos há acordos de parte a parte. Dos militares, apoio do tipo que Villas Boas deu ao Mito. De Moro, provavelmente, a promessa de não lhes retirar regalias, cargos e rendimentos adquiridos nos últimos anos.

Moro surge na disputa para roubar parte do eleitorado de Bolsonaro, não a fatia dos fanáticos, mas a da burguesia cheirosa, que apertou 17 pela ojeriza ao PT. Todavia, com todo o foguetório global, o “juiz ladrão” (royalties para o deputado Glauber Braga) dificilmente chegará aos dois dígitos no percentual das urnas. E como os generais não são de terceirizar o poder (quando há “clima” para o golpe), quem subiria a rampa seria um deles.

E por que essa eleição de 2022 se reveste de cores dramáticas, como se fosse iminência de um apocalipse ou única possibilidade de redenção democrática para o Brasil?

Porque ainda há, porque nos assombra, a possibilidade de uma reeleição de Bolsonaro. Mesmo que sua popularidade decline, mesmo que ele carregue mais de 600 mil mortes nas costas, mesmo que ele nos submeta a vexames locais, internacionais, interestelares, até. Tudo é tão sem sentido no Brasil de hoje, tão ficcional, que até o impossível é possível. Vide a eleição do completo desconhecido Witzel, no Rio de Janeiro. Que forças subterrâneas se moveram para isso?

A atual polarização direita x esquerda esvaziou o raciocínio político dos brasileiros, tornando simplórias as suas mentes. A razão deu lugar à paixão. Essa radicalização não existia, surgiu a partir de Bolsonaro, fazendo, da escolha política, uma torcida de futebol. Torcem por Bolsonaro, como quem torce pelo Vasco. Ninguém deixa de ser Flamengo porque ele perde um campeonato. Ou dois, ou três, ou 10. A escolha do time “do coração” é um estado de espírito, é aleatória ou é por influência de terceiros. E depois que se decide por ele, esqueçam, porque o torcedor não muda de jeito nenhum.

Daí que os 20 e poucos por cento de fanáticos bolsonaristas não vão mudar de preferência, porque o que está posto não é a ideologia nem a coerência, é a camisa do time. E eles escolheram a da Seleção Brasileira de Futebol!

Não é o projeto de Bolsonaro para o Brasil que conta, porque nem projeto ele tem, jamais apresentou um, sequer isso lhe cobraram. Bolsonaro não precisa cumprir, porque nada prometeu. Nada de bom. Prometeu armar todo mundo, acabar com o horário de verão e retirar os “pardais” do trânsito. Isso ele fez. Declarou que os filhos vinham em primeiro lugar, e que o filet mignon seria pra eles. Isso também tem cumprido ao pé da letra.

Nós nos tornamos um país de ignorantões, liderado por um ignorantão mor. Para quê escolas, se a burrice se tornou padrão? Para quê Enem, se até ele, que é burro, entende mais do que a comissão de mestres? Pra quê verdade, se as fake news são muito mais saborosas? Pra quê livros de História, se livros têm letras demais?

Sabemos das pretensões de Bolsonaro apenas pelas declarações feitas à imprensa nos tempos de deputado. “Se eu fosse presidente da República daria golpe no mesmo dia”. “O Congresso não vale pra nada”. “Sonego tudo que for possível. Se puder não pagar nota fiscal eu não pago, porque o dinheiro vai para o ralo, vai para a sacanagem”. “O voto não vai mudar nada no Brasil. Só vai mudar quando partirmos para uma guerra civil, fazendo o que o regime militar não fez. Matando uns 30 mil. Vão morrer alguns inocentes. Tudo bem. Em toda guerra, morrem inocentes.”

Podiam ser piores as intenções? Depois da incitação ao uso de armas e da sua liberação, inclusive as de grande porte, em grande quantidade, a última novidade é a aprovação pela Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados de um Projeto de Lei que permite o porte de arma para os praças das Forças Armadas – suboficial, subtenente, sargento, cabo, soldado e marinheiro – representantes de forte extrato de fanatizados pelo Mito. Somem-se a eles os milicianos, os posseiros, os invasores de terras, os garimpeiros ilegais, e agora sabemos que até narcotraficante foragido, o “Grota”, ligado ao PCC, é favorecido pelo Governo Bolsonaro com 18 autorizações para garimpar. Quantos “Grotas” têm merecido favores desse governo? Dezenas? Centenas? Milhares? Quantos chefes de bando? Quantos “Comandos”, facções do crime? Já virou até meme nas redes sociais a quantidade de bandidos, contrabandistas, delinquentes, fraudadores, marginais, ladrões, pilantras flagrados, que, quando conferimos seus perfis nas redes sociais, são bolsonaristas declarados.

Dar um golpe, provocar uma “guerra civil” é declarada obsessão de Bolsonaro, para quem “só Deus” o tira da cadeira. Não é o voto, não são as urnas, não é a preferência da maioria. Só uma força superior. E se não houver nova fakeada? E se ele for obrigado a participar de um debate? E se, mesmo com toda a manipulação dos algoritmos, através das fake News, dos votos de cabresto dos milicianos, das ordens expressas dos padres e pastores aos fiéis ele não consiga ser eleito? E se Lula vencer, como tudo indica? Bolsonaro irá recorrer à “força superior” das armas desse exército de transviados e obcecados, que é de fato dele?

Talvez a saída seja colocar uma imaginária faixa amarela de “interditado”, dividindo a porção do Brasil doente, intoxicado pelo bolsonarismo, da porção do Brasil são, e tocar a vida e a campanha no país real, com propostas verdadeiras e factíveis, com projetos de amanhã. Acreditar que a ordem Democrática pode ser recuperada, as instituições resgatadas, e que o Brasil ainda pode ser reconstruído, sejam seus atuais controladores os milicianos ou o mercado financeiro, o narconegócio ou o agronegócio, a bancada evangélica ou a bancada da bala, os latifundiários grileiros ou as federações patronais com suas pautas anti-trabalhador, a mídia corporativa ou a indústria de fake News, o punitivismo lavajatista de falsos catões ou a esbórnia das malas de dinheiro, os entreguistas de nossa soberania ou os militares impatriotas, o PCC ou o Comando Vermelho.

Vamos colocar nossa energia no candidato de nossas esperanças, conscientes que, mais do que nunca, só sairemos desse impasse em que nos encontramos elegendo um Congresso comprometido com um projeto político que favoreça a Nação brasileira, não apenas as conveniências pessoais, paroquiais, e muito menos os compromissos religiosos obscurantistas de cada um.

O povo brasileiro é aberto e fraterno – a gente até deixou de acreditar nisso. O brasileiro abraça as novidades com ternura e fôlego. Assume agilmente as transformações sociais, tecnológicas, de costumes. O vento renovador que bate leve lá fora, aqui é ventania. Assim, fomos dos primeiros a oficializar as uniões homoafetivas, nosso ensino é aberto e criativo, assim como é a atividade cultural. A contribuição científica brasileira é reconhecida internacionalmente. Nos grupos sociais mais progressistas, caminhamos muito contra o racismo, o machismo, os preconceitos em geral. Nossa capacidade de trabalho é indiscutível.

Todos os dias, aprendemos no manual da sobrevivência. Não vamos mais delegar a uma burguesia preconceituosa, burra, inculta, iletrada até, o leme de nosso futuro. E vamos querer de volta tudo que foi construído pelo povo e vendido na bacia das almas.