quarta-feira, 28 de julho de 2021

Bolsonaro e Ciro Nogueira fizeram um bom negócio para os dois

O senador Ciro Nogueira (PP-PI), novo chefe da Casa Civil da presidência da República, não chegará ao ponto de cobrar que Jair Bolsonaro passe a usar máscara, deixe de provocar aglomerações e pare de denunciar o voto eletrônico como instrumento de fraude. A ninguém se pede o que não pode dar, Nogueira aprendeu.

Mas que pelo menos Bolsonaro não entre mais em guerra direta com o Supremo Tribunal Federal, impeça que os militares continuem fazendo pronunciamentos políticos, e acredite que ele, Nogueira, dará conta da tarefa de falar pelo governo com o Congresso, os partidos e demais atores da cena nacional.

Não se trata, portanto, de calar o presidente da República. Isso seria impossível e mesmo indesejável. Mas sim de aparar arestas criadas por ele, e liberá-lo para que faça o que mais gosta de fazer – circular pelo país em campanha pela reeleição, pregar aos seus devotos e faturar as boas realizações do seu governo.


Que boas realizações foram essas até agora? Não caberá a Nogueira listá-las, mas ao ministro das Comunicações Fábio Faria (PSD-RN) e aos demais ministros. Se tudo correr assim, Bolsonaro recuperará parte da popularidade perdida e poderá disputar as eleições do ano que vem em pé de igualdade com Lula (PT).

Bem administrado, o negócio feito entre Bolsonaro e Nogueira pode vir a ser bom para os dois. Quem faz o cargo é quem o ocupa. O primeiro chefe da Casa Civil do governo Bolsonaro foi Onyx Lorenzoni, que fez carreira batendo nos políticos. O segundo e o terceiro foram generais sem preparo para a missão.

O governo terceirizou a articulação política, o que significa que por ela respondiam muitos nomes ao mesmo tempo. Não tinha como dar certo, como não deu. Por último, da articulação cuidou a deputada Flávia Arruda (PL-DF), ministra da Secretaria do Governo, sem experiência nem envergadura para tal.

Nogueira vai para a Casa Civil com a intenção de enfrentar os problemas que atormentam Bolsonaro, e não os que o atormentam como presidente nacional do PP que em 2018 elegeu 41 deputados federais e sete senadores. No Piauí, de um total de 224 prefeitos, quase 100 respondem ao seu comando.

Saciar o apetite por verbas de rebanho tão grande requer livre trânsito e muita influência dentro do governo. Isso pesou para que Nogueira aceitasse o convite de Bolsonaro de trocar o Senado pela chefia da Casa Civil. Se mais adiante ele concluir que não fez um bom negócio, sempre haverá tempo para desfazê-lo.

Tem ensaiado o que dirá ao presidente. Dirá que tentou resolver seus problemas, mas que as condições que lhe foram dadas não permitiram. Que voltará ao Senado onde poderá ficar ainda por mais quatro ou cinco anos. E que, de lá, seguirá o apoiando. A não ser que… Bem, essa parte não será adiantada.

Nem arroz, nem feijão, nem circo

Decerto é algum trauma de infância: nunca esqueci a musiquinha. Outro dia me peguei cantando: "Marco extraordinário/ Sesquicentenário da Independência/ Potência de amor e de paz/ Esse Brasil faz coisas/ Que ninguém imagina que faz". E fiquei imaginando a festa que o governo Bolsonaro, tão patriota, irá preparar para os 200 anos do Sete de Setembro.

Que tal outra Taça da Independência? A minicopa de 1972 contou com as seleções da Argentina, França, Iugoslávia e Irã, entre outras. Na decisão, o Brasil venceu Portugal com gol de Jairzinho aos 44 minutos do segundo tempo, tudo perfeito, como se tivesse sido combinado. Com os craques portugueses, visitaram o país os restos mortais de dom Pedro 1º.

As paradas militares reuniram multidões com bandeirinhas. Nos palanques, homens de casaca e mulheres de chapéu aplaudiram o "milagre econômico". O Hino do Sesquicentenário trazia a promessa de dias ainda melhores: "E vamos mais e mais/ Na festa do amor e da paz". Composto por Miguel Gustavo —o mesmo do hit "Pra Frente Brasil"—, foi gravado em duas versões, a da dupla Miltinho e Shirley e a de Ângela Maria. Tocado sem parar no rádio e na televisão, virou sucesso nos bailes de Carnaval. "É dom Pedro 1º/ É dom Pedro do Grito/ Esse grito de glória/ Que a cor da história/ À vitória nos traz", divertiam-se as odaliscas montadas nos ombros dos havaianos. Que farra, eu pensava com meus 10 anos, morrendo de inveja.

Mas parece que o regime atual, para variar, apronta mais um desgosto. Já não temos feijão e arroz no prato, e podemos ficar sem circo. Instalada em 2019, a Comissão Interministerial Brasil 200 Anos até agora não planejou a festa. Nem sequer uma reles motociata. Diplomatas portugueses têm estranhado o silêncio dos brasileiros.

Não há de ser nada. É capaz de o ministro-sanfoneiro compor uma sofrência. Ele não é Miguel Gustavo, mas não se pode querer tudo na vida.

Brasil bate no fundo do poço do isolamento internacional

No momento, praticamente não existe um chefe de governo democrático que queira se encontrar com Jair Bolsonaro. Na União Europeia, evita-se prudentemente o presidente brasileiro, pois isso não pegaria bem junto ao eleitorado. Nem mesmo os fãs do britânico Boris Johnson devem ter uma opinião muito boa de Bolsonaro, conhecido no exterior sobretudo por duas coisas: a devastação da Floresta Amazônica e sua catastrófica gestão da pandemia, com mais de 550 mil brasileiros mortos.

Como ninguém quer se encontrar com Bolsonaro, ele aceita o que vem. Nesse caso foi, justamente, Beatrix von Storch, deputada federal e vice-porta-voz da ultradireitista Alternativa para a Alemanha (AfD). Não se trata de um partido normal: o Departamento Federal de Proteção da Constituição – uma espécie de Abin alemã – levantou suspeitas de que a sigla abrigaria extremistas e impunha ameaças à ordem democrática, chegando a colocá-la sob observação do serviço secreto.

Além disso, o presidente do Brasil se encontrou com uma mulher que tachou a chefe de governo alemã, Angela Merkel, de "a maior criminosa da história da Alemanha do pós-guerra". O fato de ele se deixar ser visto ao lado dessa pária sublinha mais uma vez o desastre que o bolsonarismo perpetrou na política externa brasileira.


A perda de importância do país é dramática: Bolsonaro reduziu o Brasil de peso-pesado internacional a mero peso-mosca. É mais ou menos como se Merkel marcasse uma reunião com o deputado (e palhaço) brasileiro Tiririca, para discutir com ele o futuro da Europa e da América Latina.
O problema não são os avós

Como mostram as fotos do encontro, Bolsonaro e Von Storch se divertiram à beça. Poucas vezes se viu o presidente com um sorriso tão largo, e a ultradireitista alemã tão relaxada. O problema do encontro não é a ascendência de Beatrix von Storch – como enfatizaram diversos veículos de imprensa brasileiros. De fato, ambos seus avôs estiveram profundamente envolvidos nos crimes nazistas: um como ministro de Adolf Hitler (e criminoso de guerra condenado), e o outro como membro convicto do Partido Nacional-Socialista (NSDAP) e oficial da milícia SA.

Só que milhões de alemães têm antepassados que veneravam Hitler, injuriavam os judeus e se apoderaram de suas fortunas quando foram deportados e assassinados. Os avôs e bisavôs da maior parte dos alemães eram soldados da Wehrmacht, as Forças Armadas nazistas, ou até membros do NSDAP ou da força paramilitar SS.

Um de meus avôs viveu por um breve período num apartamento em Gleiwitz (hoje Gliwice, na Polônia) que pertencia a judeus deportados. A cidade fica próximo ao campo de extermínio de Auschwitz, e minha mãe se lembra até hoje que em certos dias "chovia cinza". Ninguém lhe explicava por quê.

Meu outro avô voltou para casa de um campo de prisioneiros soviético cinco anos após o fim da Segunda Guerra, mudo e sem reconhecer os filhos. Ele jamais falou sobre a guerra. Nós supomos que ele vivenciou coisas terríveis e talvez também tenha participado de atrocidades.

Não se pode condenar os alemães de hoje à punição coletiva. E tampouco se pode acusar Beatrix von Storch de ter a família que tem. O que pode lhe ser imputado é ela dar continuidade à ideologia criminosa de seu avô. Ela disse que é lícito atirar em refugiadas e seus filhos que tentem atravessar a fronteira para a Alemanha, e pertence a uma sigla, a AfD, cujos deputados e funcionários disseram coisas como estas:

"Afinal, agora nós temos tantos estrangeiros no país que valeria a pena mais um Holocausto."

"Eu desejo tanto uma guerra civil e milhões de mortos, mulheres, crianças. Para mim, tanto faz. Seria tão bonito. Quero mijar nos cadáveres e dançar em cima dos túmulos. Sieg Heil!"

"Esse tipo de gente [estrangeiros e esquerdistas], é claro que temos que eliminar."

"Quando a gente chegar, vai ter arrumação, vai ter purgação!"

"Homossexuais na prisão? A gente também devia fazer isso na Alemanha!"

"Precisamos atacar e acabar com os meios de comunicação impressos."

"Lares para refugiados em chamas não são um ato de agressão."

"Fuzilar a corja ou mandar de volta para a África abaixo de pancadas."

É possível que tais declarações nem soem tão estranhas para os leitores brasileiros. Seu presidente já soltou coisas do gênero, por exemplo: "Fazendo o trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil, começando com o FHC. Não deixar pra fora, não, matando. Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente."

Portanto, é inegável o parentesco de espírito entre Bolsonaro e Von Storch. Ambos são representantes da nova ultradireita global, que prega racismo, homofobia e autoritarismo, e para tal se serve de táticas, formulações e teorias de conspiração análogas. O mais absurdo que compartilham é a afirmação de que defenderiam "valores conservadores e cristãos". Eles não defendem valor nenhum!

Jair Bolsonaro e Beatrix von Storch são irmão e irmã no espírito. O fato de o presidente brasileiro – assim como seu filho Eduardo, ou o ministro da Ciência Marcos Pontes – se encontrar com essa pária da política alemã mostra, acima de tudo, quão solitário e absolutamente incompetente esse governo se tornou. Está isolado por ser incapaz de travar um diálogo com quem pense diferente. Diplomacia lhe é uma palavra desconhecida. Para o Brasil, que há poucos anos ainda tinha um peso no mundo como país de referência, é uma tragédia.
Philipp Lichterbeck